domingo, fevereiro 11, 2018

O homem é um hamster andando em uma roda no "VirtuSphere"


Um perfeito conto sobre tecnologia atual. Dois engenheiros, Jim Damascio e Ray Latypov, criaram uma empresa chamada VirtuSphere. E o seu produto também se chama VirtuSphere: uma bola de metal gigante, na forma de uma roda de hamster. Aquela dentro da qual os alegres roedores prisioneiros correm. As pessoas podem colocar seus óculos de realidade virtual, entrar na VirtuSphere e simular qualquer coisa que elas quiserem, andando, correndo e pulando como um hamster real. Um conto no qual a metáfora passou para a literalidade – para muitos pesquisadores as metáforas da bolha (o “filtro-bolha” de Eli Pariser) e da inércia (a “inércia polar” de Paul Virilio) são aquelas que melhor descreveriam a relação atual do homem com as máquinas. E um hamster correndo sem sair do lugar no interior de uma esfera é um exemplo de como a atual imaginação tecnológica não esconde mais suas pretensões tecnognósticas: de viajantes, nos transformar em passageiros, como apêndices de uma máquina.

O professor e teórico da comunicação canadense Marshall McLuhan (1911-1980) dizia que tudo que o ser humano é capaz de produzir são extensões do seu próprio corpo. Rodas, automóveis, bicicletas são extensões dos pés; cadeiras, das nossas pernas e coluna; e recipientes extensões das nossas próprias mãos.

Até chegar aos meios de comunicação, verdadeiras extensões dos nossos sentidos: o rádio como extensão da voz para quem fala e dos ouvidos para quem ouve; a TV a extensão dos nossos olhos, ouvidos e voz, e assim por diante.

Mas ainda McLuhan partilhava de um ponto de vista ainda bem antropocêntrico. Não viveu o suficiente para testemunhar o surgimento dos sistemas tecnológicos autopoiéticos (auto-referenciais, auto-reprodutivos e fechados em si mesmos), cuja distopia figurada na Trilogia Matrix no cinema foi a maior metáfora – o homem deixa de ser o centro para se submeter a um sistema tecnológico autônomo que ironicamente faz uma parodia virtual da sociedade humana.

Em outras palavras, a tecnologia deixa de ser uma extensão do corpo humano para produzir gadgets que se tornam verdadeiras metáforas do imaginário tecnognóstico que anima o atual desenvolvimento tecnológico. Um imaginário que pode ser descritos pelos seguintes princípios: eliminação do corpo (temporalidade, animalidade, finitude e limitação existencial) e a virtualização da subjetividade.

Um exemplo flagrante na qual a metáfora transforma-se em literalidade é o sistema de hardware de Realidade Virtual chamado VirtuSphere, que pretende dar um maior realismo e experiência imersiva para os usuários de games e outros programas informáticos – simuladores de finalidade militar, desportiva, turismo virtual etc.


Trackball


O equipamento consiste numa grande esfera que funciona como um trackball (semelhante ao disposto dos nossos prosaicos mouses de computadores) instalada sobre uma plataforma especial que permite ao jogador andar, correr, caminhar ou girar no interior do sistema para qualquer direção. Quando o utilizador entra dentro da esfera, sensores internos detectam todos os movimentos e transmitem as informações para o computador. Utilizando os óculos 3D, ele é inserido num ambiente de realidade virtual, tendo total controle dos movimentos do personagem dos jogos em que participa.

Ou seja, além do uso meramente lúdico ou pessoal, o sistema pode ser utilizado para finalidades policiais ou militares, em simulações de atividades perigosas ou missões de resgate.

Olhando o conjunto, parece uma bola de hamster gigante, aquelas nas quais os pequenos roedores correm e giram alegremente nas suas gaiolas.

Para pesquisadores e ciberativistas como o francês Paul Virilio e o norte-americano Eli Pariser, uma das metáforas para descrever a Internet e o ciberespaço atuais é a inércia e a bolha – o tempo real à velocidade da luz que paradoxalmente produz a inércia física e mental ou a criação do “filtro-bolha” pelas moderações algorítmicas em torno dos usuários dos sites de busca e redes sociais.

E é essa a grande ironia do sistema VirtuSphere: seus criadores, Jim Damascio e Ray Latypov, conseguiram transformar a metáfora em literalidade – o usuário no interior de uma esfera como se estivesses em uma bolha solipsista (de “solipsismo” – doutrina filosófica no qual o sujeito é o único ser do mundo; aliás, esse “mundo” nada mais seria do que o filme das próprias representações do sujeito); e ao mesmo tempo inerte enquanto sua imaginação virtualmente corre, pula e anda num espaço imaginário. Assim como o pobre hamster corre numa roda sem conseguir escapar da sua prisão.


Por que a Realidade Virtual nunca “pegou”?


“Realidade Virtual”, “Virtual Reality”, VR, “cyberspace”, são conceitos antigos com algumas décadas de existência. Mas que ganhou ressonância mundial nos anos 1980 com o escritor canadense William Gibson que descreveu mundos futuros nos quais a “realidade artificial” criada por computador seria praticamente indistinguível da realidade “real”.

Mas fora da ficção, a Realidade Virtual nunca “pegou”: sempre foi uma ideia à espera de uma tecnologia que a transformasse em algo mais “amigável” – até aqui, os hardwares disponíveis no mercado tornavam o usuário uma figura bem ridícula, na maioria das vezes. Um conjunto de óculos enormes e algum tipo de luva para controlar o mundo virtual, cabeça levantada movendo-se nervosamente de uma lado para o outra com as mão em imensa luvas negras tocando o vazio.

Esse conjunto inspirava muito mais o cult imaginário cyberpunk do cinema e literatura do que a imaginação de pessoas comuns com os seus PCs.

Mas o VirtuSphere pretende mudar isso, fazendo o utilizador correr no interior de uma esfera, mantendo seus movimentos no mundo real em sincronia com o seu ambiente virtual para criar uma experiência mais imersiva e realista.


Inércia Polar


Certamente o pesquisador Paul Virilio observa perplexo a literalidade irônica de um humano correndo em uma bola de hamster gigante: confirma o seu conceito de “inércia polar”, a dimensão desconhecida da atual tecnologia – o encolhimento do espaço por meio das máquinas de visão, a colonização absoluta do tempo e a atrofia do corpo.

Se a velocidade é o motor da História, é no atual turbo-capitalismo (das praças financeiras conectadas em tempo real no qual a lucratividade do capital não está mais na esfera da produção, mas na circulação financeira especulativa) que a velocidade se impõe para os sujeitos como paradigma da vida feliz: corpos velozes e dinâmicos.

Para Virilo o resultado é paradoxal: o esgotamento ou a expropriação do tempo, do espaço e das relações sociais. Enquanto as máquinas e a informação aceleram, o corpo tende à inércia. Há um movimento intenso, como quer produzir o VirtuSphere, mas dentro de um tempo morto. Deixamos de ser viajantes para nos tornar passageiros, como apêndices de uma máquina.

Um hamster prisioneiro em uma gaiola que corre em uma roda na sua cela é a metáfora perfeita da “inércia polar” de Virilio. Cujos engenheiros Damascio e Latypov transformaram em literalidade tanto para o lazer como para a guerra.


Filtro-bolha


Mas a imagem de um usuário no interior de uma esfera conectado a hardwares guarda outra ironia: a literalidade o efeito “filtro-bolha” denunciado pelo ciberativista norte-americano Eli Pariser.

Segundo Pariser, a Internet hoje torna-se cada vez mais uma rede semântica que busca evoluir no sentido de identificar o comportamento dos usuários a partir de equações que irão classificar o conteúdo supostamente mais relevante nos resultados de sites de busca e nas time lines das redes sociais. De forma imperceptível, estamos cada vez mais nos isolando em bolhas de interesses. Um verdadeiro lacre informacional criado pelos algoritmos que quantificam e qualificam a vida online dos usuários, criando um mundo onde a Internet nos mostra aquilo que “ela pensa que queremos ver, mas não necessariamente o que precisamos ver”.

A síntese desse paradigma que atualmente orienta a Internet (filtros que criam para cada usuário seu próprio universo personalizado de informação) pode ser encontrada nessa afirmação de Mark Zuckerberg, o criador do Facebook: “Saber que um esquilo está morrendo no seu quintal pode ser mais relevante para seus interesses nesse momento do que saber que pessoas morrem na África”.

De janelas abertas para o mundo como sonhavam os precursores da TV e Internet, hoje as janelas eletrônicas se transformaram em bolhas solipsistas dentro das quais corremos sem sair do lugar como os adoráveis roedores de pet shops.

 

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