sexta-feira, setembro 30, 2016

Branca de Neve e a mídia em "Blancanieves y Los 7 Enanitos Toreros"


Como recontar nos tempos atuais a velha estória da Branca de Neve dos Irmãos Grimm? Paradoxalmente, o diretor espanhol Pablo Berger optou narrar o conto clássico através de um filme mudo e em preto e branco. E mais: ambientada na década de 1920 do século passado. Mas com uma forte atualidade: é a década do surgimento da cultura da celebridade onde a madrasta má não tem inveja da Branca de Neve pela sua beleza. Mas porque se tornou uma toureira que ocupa mais espaço nas colunas sociais do que ela, uma celebridade fútil e vazia. “Blancanieves y el 7 Enanitos Toreros” (Branca de Neve e os 7 Anões Toureiros, 2012) é a mais surpreendente adaptação do velho conto cujo modelo atual acabou sendo a versão da Disney de 1937. Mas Pablo Berger cria uma versão mais cáustica, transitando entre o humor negro e a tragédia – como a inocência de Branca de Neve se perde na evolução da indústria do entretenimento, dos “freak shows” do século XIX para a cultura das celebridades atual.

A história Branca de Neve, um conto da tradição oral alemã imortalizado pela versão dos Irmãos Grimm, é uma estória sombria das consequências da vaidade, da inveja e da cobiça nas relações humanas. Mas também fala da força da amizade e da união, personificados pelo companheirismo dos sete anões.

Com influência direta do filme de Walt Disney de 1937, o conto foi para além da narrativa de entretenimento: transformou-se em lição de moral ou mesmo uma mensagem de superação em um mundo tão competitivo como o atual.

Mas o diretor espanhol Pablo Berger apresentou a mais inusitada e estranha adaptação desse conto clássico: um filme mudo, em preto e branco, que fala de toureiros, cantoras de flamenco ambientado em Sevilha na década de 1920.

Assistir ao filme Blancanieves y los 7 Enanitos Toreros nos faz lembrar imediatamente do filme The Artist, oscar de melhor diretor em 2012. Imagino o susto de Pablo Berger ao saber do filme do diretor francês Michel Hazanavicius: Berger tinha um projeto em mente bastante parecido com o The Artist (fazer um filme mudo no século XXI) desde 2007.

Mas as semelhanças param aí. Enquanto The Artist era uma homenagem metalinguística a era do cinema mudo, em Blancanieves temos um filme mudo com os códigos cinematográficos contemporâneos. Do autêntico cinema mudo, Berger manteve a expressividade carregada dos rostos, as bocas em primeiríssimo plano e a estética do expressionismo alemão com muitas sequências em contra-campo e sombras ameaçadoras projetadas sobre personagens.


Mas o surpreendente é o apoteótico final que nenhuma versão de Branca de Neve poderia imaginar: um misto de Edgar Alan Poe e o clássico filme Freaks de 1932 com as monstruosas deformidades e aberrações exibidas em um parque de diversões.

Berger buscou na estética em preto e branco de um filme mudo mostrar a universalidade do mito e da estrutura narrativa, ao juntar referencias a outros contos como Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho e Pinóquio – mostrando que o diretor é um conhecedor do trabalho  de Vladimir Propp (1859-1970) e as suas pesquisas sobre a morfologia do conto fantástico.

Mas também, Berger encontrou uma leitura bem particular e atual de um conto clássico e arquetípico: agora toda a inveja e cobiça da madrasta não é mais pela beleza de Branca de Neve. Na verdade, a madrasta cobiça a sua fama e fuzila de ódio ao descobrir que ela, supostamente morta, ocupa mais espaço nas revistas de celebridades do que ela.

A mídia e a celebridade serão a origem de toda desventura de Branca de Neve quem, ingenuamente, procura seguir os passos do pai – um famoso e rico toureiro.

O Filme


A narrativa de Blancanieves acompanha toda a vida da protagonista chamada Carmen (Macarena Garcia), desde o ventre materno até a sua adolescência. Nas primeiras sequência acompanhamos o seu pai, Antônio Villalta (Daniel Cacho), na derradeira tourada em uma grande arena em Sevilha. No momento culminante da tourada, quando o toureiro aponta a espada para o touro e concentra-se para a estocada final, um flash da máquina fotográfica de um repórter o ofusca. E o touro avança e o fere violentamente, deixando-o tetraplégico.

Enquanto isso, sua esposa morre no parto de Carmen. Uma das enfermeira, Encarna (Maribel Verdú), vislumbra naquele momento a grande oportunidade da subir na vida. Ambiciosa, aproxima-se de Antônio para ser a sua enfermeira, até casar com ele, tornando-se a madrasta da menina Carmen.

 Arrasado com a perda da esposa, Antônio recusa ver a sua filha e manda-a para viver com sua avó, uma cantora de flamenco.


Os dias passam e Encarna se dedica a exclusivamente ocupar espaço nas revistas de celebridades com fotografias e matérias sobre as roupas de seu closet e a nova decoração da sua grande mansão. Enquanto trata de forma humilhante o seu marido Antônio, entrevado em uma cadeira de rodas.

Com a morte da avó, Carmen retorna à casa da madrasta, que a transforma em uma serviçal, tão humilhada como o seu pai. O dias passam e Encarna vê Carmen crescer até se tornar uma bela mulher. Mas Encarna não tem nenhuma vocação para ser madrasta: seu plano secreto é matar tanto o marido como a filha e reinar sozinha naquela mansão, fotografada por paparazzos e ocupando as colunas sociais da mídia.  

Carmen foge de casa, para encontrar uma trupe dos sete anões, com um show itinerante de touradas que viaja por toda a Espanha. Em pouco tempo Carmen (agora chamada de “Blancanieves” pelos anões, em referencia “àquela velha história”, como falam) torna-se a estrela da companhia, virando uma toureira famosa como foi um dia seu pai.

A mídia e o espelho mágico


O curioso no filme é como o espelho mágico, que na versão de 1937 da Disney confirma em rimas que a madrasta é a mulher mais bela do reino, é substituído pelas revistas de celebridades. Encarna sempre se vê nas matérias de amenidades e futilidades. A beleza é substituída pela celebridade midiática.

Até o momento em que, em desespero, descobre que Carmen começa a ocupar mais espaço na mídia do que ela: Carmen transforma-se também numa famosa toureira, liderando a trupe de anões que encena engraçadas touradas.


Dessa maneira, Pablo Berger consegue transformar uma narrativa arquetípica e universal em um conto moderno. Dentro de um filme mudo e em preto e branco: a mídia é o elemento central do conto, o leitmotiv, a motivação de todos os acontecimentos.

Desde o fatal acidente de Antônio provocado pelo flash do repórter fotográfico, passando pela ambição e inveja de Encarna (o medo de perder espaço nas colunas sociais) e o destino final de Carmen/Branca de Neve – a celebridade e a indústria do entretenimento serão os diretos responsáveis pelo seu destino.

Do freak show à indústria das celebridades


Por que Berger foi ambientar o conto na década de 1920 do século passado? Porque no chamado “loucos anos 20” (“The Roaring Twenties”) começa a surgir a noção moderna de “celebridade” associada à indústria do entretenimento, diferenciando-se das pessoas “famosas” ou “notórias”. Enquanto os “famosos” tornavam-se notórios por descobertas, obras ou contribuições para a posteridade (cientistas, empresários ou escritores), o “célebre” era um novo fenômeno sócio-midiático – pessoas que tornam-se conhecidas e invejadas pela mera exposição midiática. Não fazem nada de concreto ou deixam alguma obra para a posteridade, além de se expor para a mídia por meio de escândalos ou futilidades.


Mais ainda: enquanto as pessoas “famosas” eram admiradas (sentimento positivo através de um modelo para si mesmo), as celebridades são invejadas - sentimento regressivo e destrutivo. No fundo sabemos que são vazios e fúteis e invejamos o seu senso de oportunismo. São modelos regressivos de caráter.

De forma inteligente, Pablo Berger liga essa incipiente indústria das celebridades com o freak show dos antigos parques de diversões: feiras itinerantes onde eram apresentados, além de malabaristas e acrobatas, pessoas com doenças raras, aberrações genéticas ou com alguma característica física incomum.

A trupe dos sete anões toureiros, com o seu pérfido empresário, faz a ligação com o conto Pinóquio – Branca de Neve será a inocente criança explorada por um maldoso empresário de um circo. Ele quer que o drama de Branca de Neve se torne mais um espetáculo bizarro em seu show de aberrações.

Com tudo isso, Blancanieves consegue transitar muito bem entre humor, tragédia, romance e drama épico. Além de ser uma excelente reconstituição histórica do surgimento da moderna indústria do entretenimento: dos freak shows às colunas sociais. Que, no fundo, mantém o mesmo espírito – expor anomalias, sejam elas físicas ou de caráter, para o deleite regressivo do público.


Ficha Técnica


Título: Blancanieves y los 7 Enanitos Toreros
Diretor: Pablo Berger
Roteiro:  Pablo Berger
Elenco:  Maribel Verdú, Macarena Garcia, Ángela Molina, Daniel Cacho, Sergio Dorado, Emilio Gavira
Produção: Arcadia Motion Pictures, Nix Films
Distribuição: IFA
Ano: 2012
País: Espanha, Bélgica, França

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