sábado, novembro 29, 2014

"Veja São Paulo" detona bomba semiótica na Cracolândia

Feios, sujos, malvados e viciados retornam à Cracolândia, levantando uma mini favela em plena rua do Centro. A grande mídia esfrega as mãos para denunciar uma suposto fracasso do programa da Prefeitura de São Paulo “De Braços Abertos”. Assim como os black blocs (úteis na oportuna criação de imagens midiáticas de caos no País em ano eleitoral) foram glamurizados através de Dani Pantera e Emma, agora o “fracasso” na Cracolândia é midiatizado pela personagem da “Cinderela às avessas”, a ex-modelo Loemy que se tornou viciada em crack e vaga pelas ruas do Centro. Matéria da "Veja São Paulo" a transforma em mais uma bomba semiótica, assim como foi a “musa” black bloc Dani Pantera: a bomba da “good-bad girl”.  A matéria se mostra menos uma reportagem e muito mais um sintoma do DNA dos cursos internos de jornalismo da Editora Abril: a frenética busca por personagens que confirmem narrativas que o próprio Jornalismo já tem de si mesmo.

- Olá, querida - gritou Joe Louis a sua mulher ao vê-la o esperando no aeroporto de Los Angeles. Ela sorriu enquanto aproximava-se e quando estava a ponto de ficar na ponta dos pés para lhe dar um beijo, deteve-se de pronto.
- Joe, onde está sua gravata? - perguntou.
- Ai, querida - ele desculpou-se encolhendo os ombros - estive fora toda a noite em Nova York e não tive tempo... (...)

Houve uma época em que jornalistas buscavam personagens (como o protagonista desse diálogo, o boxeador Joe Louis) para mostrar o lado humano de figuras que o tradicional texto jornalístico não permitia. Nesse texto da revista Esquire em 1962, Gay Talese (um dos precursores do chamado Novo Jornalismo – gênero jornalístico do início dos anos 60 nos EUA que misturava narrativa jornalística com estilo literário) procurava mostrar o lado humano de um campeão de boxe capaz de expressar fragilidade ao encolher os ombros em uma pequena discussão com sua mulher no aeroporto.


Hoje também repórteres vivem em busca de personagens. Mas não para mostrar a humanidade por trás das notícias. Ao contrário, os personagens agora servem somente para confirmar a pauta recebida pelas chefias de redação, discursos moralizantes e até preconceitos – se transformam em bombas semióticas.

Uma morte é tragédia, milhões é mera estatística

Repórteres buscam cada vez menos
notícias e muito mais personagens
           Somado ao mantra jornalístico de que noticiar a morte de uma pessoa é uma tragédia e a de milhões mera estatística, o personagem que decide se abrir e posar para fotografias vira uma notícia em si mesmo, sem permitir que o leitor entenda contextos ou processos.

Buscar o personagem típico, o excêntrico, o insólito ou o herói trágico sempre foi uma obsessão do Jornalismo.

Mas agora, os personagens se converteram em bombas semióticas. Desde as manifestações de rua do ano passado, ansiosamente repórteres procuram tipos exemplares que didaticamente ilustrariam a editoria “O Brasil é uma merda”: a família retirada do fusca incendiando no meio das manifestações em São Paulo, o desespero do jovem que chegou atrasado à prova do Enem, mulheres loiras de classe média resgatando beagles de um laboratório em São Roque/SP – sobre esses casos clique aqui. Para depois as revistas Veja e Época elegerem as musas dos black blocs: Dani Pantera e Emma.

A bomba semiótica da good-bad girl

Essas duas personagens femininas inauguraram um tipo de bomba semiótica especial, que agora a matéria de capa da Veja São Paulo reeditou: a good-bad girl – uma mulher que combina beleza e sensualidade com loucura e desajustamento, mas que no final descobrimos que é uma boa pessoa e que poderíamos até leva-la para casa para apresentarmos à nossa mãe – conceito criado pelo pesquisador alemão Dieter Prokop para definir a atual construção dos estereótipos femininos no cinema hollywoodiano – sobre isso clique aqui.
A good-bad girl: nova
bomba semiótica

Nesse momento, a grande mídia tenta histericamente provar que o retorno das barracas de lona e de dezenas de viciados em crack circulando como zumbis na chamada região da Cracolândia no Centro de São Paulo é a prova do “fracasso das políticas públicas da cidade”. Mas o alvo mesmo é o projeto da prefeitura chamado “De Braços Abertos”.

E como é recorrente, a cada notícia é necessário encontrar um “retrato triste e trágico” – e na edição da Veja São Paulo entre em ação a good-bad girl que, de quebra, ainda glamuriza a tragédia, transformando um tema intragável (pobres feios, sujos e malvados se drogando) para o leitor de classe média em notícia mais palatável, o suficiente para fazer a tradicional avaliação negativa de qualquer coisa que o prefeito Haddad faça – chegaram até a dizer que as ciclo-faixas pintadas de vermelho fazia parte de uma sinistra estratégia subliminar de Haddad para todos votarem no PT... – sobre isso clique aqui.

Mas como veremos, a matéria de capa da beleza da ex-modelo cujos traços ainda resistem à droga e miséria das ruas é curiosa porque apresenta um ato falho que deixa transparecer uma visão de jornalismo tautista (tautológica + autista – sobre esse conceito clique aqui) que é ensinada desde os cursos internos de Jornalismo da Editora Abril, como podemos verificar na edição de 2014 da revista Plug, publicação feita pelos alunos do curso da editora.

A construção de uma bomba semiótica

A construção linguística da bomba semiótica, na reportagem “Ex-modelo Loemy Marques luta contra o crack”, inicia com um clássico do etnocentrismo para ganhar o leitor classe média paulistana, público-alvo da publicação: “uma loira magra, de 1,79 metro de altura, no entanto, não consegue passar desapercebida. Alguns traços de beleza ainda resistem”. Em meio aos feios, sujos e malvados, surge uma espécie de anjo caído. Ela poderia ser você (quer dizer, o leitor da revista) – temos aqui o início de uma construção semiótica: o que não passa desapercebido deixa de ser uma triste realidade humana coletiva, para ser um signo estético que confirme um script midiático já pré-definido.

Fotojornalismo ou editorial de moda
de uma manequim
"heroin hero" ?
De bate pronto a personagem ganha um estereótipo (é a “Cinderela às avessas”) para evaporar o contexto e processos sociais por trás de um problema complexo. Aliás o contexto é apenas sugerido de forma maniqueísta: de um lado, o fracasso da política municipal e, do outro, o esforço heroico de ONGs e assistentes sociais – idealizar ONGs faz parte da ideologia neoliberal da “sustentabilidade sustentável”.

Para reforçar essa beleza indômita de um anjo decaído a reportagem ainda descreve como ela é agredida no meio da entrevista com uma “paulada na barriga” por um dos feios-sujos-e-malvados que circulam ao redor.

Todo o poder de persuasão da bomba semiótica da good-bad girl vem de como a matéria consegue isolar o personagem do contexto social.

Loemy é do Mato Grosso e foi descoberta por um caça talentos de modelos que se entusiasmou com a seu rosto “estilo anos 80”. Desembarcou em São Paulo em 2012 para ser encaminhada às principais agências de manequins. Mas “era chamada, começava o trabalho e no outro dia era demitida”. Em um meio profissional marcado por festas e drogas, a matéria dá destaque a avaliação dos produtores que a descobriram: “faltou foco e disciplina” para a garota.

Culpa é mais importante do que contexto e processos

Contexto e processos se evaporam na interiorização da culpa pelo fracasso. Loemy está na Cracolândia porque é uma loser. A personagem Loemy é o testemunho do terror paranoico da consciência meritocrática das classes média: a queda para a pobreza, onde lá estão os feios-sujos-e-malvados.

O meio da Moda e das “manecas” (sabidamente um meio, por assim dizer, moedor de carne de gente, explorador tal e qual as confecções que empregam mão de obra semi-escrava de bolivianos alí perto da Cracolândia, no bairro do Bom Retiro) é evaporado: o personagem tem que ser em si mesmo a notícia – o retrato acabado do fracasso do poder público e da derrota individual de alguém que não teve “foco e disciplina”.

Mas como toda personagem good bad girl, deve demonstrar disposição para o arrependimento e a vontade de dar a volta por cima, assim como reza o evangelho meritocrático das classes médias para as quais se voltam as publicações da Editora Abril: “Preciso de ajuda”, apela Loemy. “Quero voltar a estudar e ser engenheira”.

Revista "Plug": o DNA tautista
do jornalismo da Editora Abril
            A composição da personagem como “Cinderela às avessas” revela a secreta natureza da matéria: assim como os contos infantis, sempre com lições moralizantes sobre o bem e o mal, a reportagem também detém a mesma estrutura – virtude-queda-arrependimento-moral da estória.

O DNA tautista da Abril

Outro importante detalhe da matéria da Veja São Paulo também revela a própria natureza do atual Jornalismo: o tautismo – ao invés de procurar representar qualquer realidade externa a ela, a prática jornalística fecha-se em si mesma numa espécie de auto-referência sem fim. 

A matéria fala de “sessão de fotos” que a reportagem fez com Loemy. Sintomática definição para o “fotojornalismo” da matéria: as fotos que ilustram a reportagem se assemelham muito mais a um editorial sobre uma heroin hero do mundo da moda do que documentos jornalísticos brutos e espontâneos de uma triste realidade humana.

Também é sintomática porque revela o próprio DNA do curso de jornalismo da Editora Abril, como mostra a apresentação tautista da revista Plug (espécie de trabalho de conclusão do curso). O tema da revista era sobre a chamada geração millennial (jovens nascidos entre 1980-2000) onde os alunos tiveram que criar pautas e projetos jornalísticos sobre o tema para as revistas da editora: “A PLUG desse ano é um retrato deles mesmos [os aspirantes a jornalistas do curso] (...) Os textos carregam um tom autoral: quem escreve é como se fosse um personagem da história que está contando”.

Loemy foi, portanto, explorada pela segunda vez: depois das festas, drogas e sucessivas demissões na carreira incerta das manequins, agora se oferece como “evento-encenação” (para usar um conceito do semiólogo italiano Umberto Eco) para posar em um book perverso sobre uma “cinderela-heroin-hero”decadente e arrependida.


             A matéria da Veja São Paulo mostra muito menos a tragédia da vida desperdiçada de uma jovem, e muito mais a miséria do jornalismo atual onde a busca obsessiva por personagens serve apenas  para reforçar narrativas que a própria imprensa já tem sobre si mesma.


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