quinta-feira, agosto 21, 2014

Bonner e Poeta expõem o desespero tautista da TV Globo

A verborragia estudada e simulada de William Bonner e Patrícia Poeta (perguntas quilométricas e fisionomias treinadas em longos anos de experiência olhando para “teleprompters” nos estúdios de TV) na suposta entrevista com a candidata Dilma Roussef não quis dizer apenas que a TV Globo “não gosta dela”. A dupla de apresentadores do Jornal Nacional involuntariamente expôs a dramática situação atual da emissora: o desespero “tautista” (tautologia + autismo) – ter que ao mesmo tempo assumir o papel de oposição política servindo de câmara de eco da pauta da grande mídia e institutos de pesquisa e ter que demonstrar histericamente que ela é imparcial para tentar recuperar uma audiência em queda pela perda de credibilidade e relevância.  A resposta da emissora para seu dilema existencial não poderia ser mais autista quando utiliza a técnica de dissociação psíquica na entrevista, velha tática do Manual Kubark de Interrogatório e Contra-inteligência” da CIA.

Em 1985, no último bloco de debate dos candidatos à Prefeitura de São Paulo, o jornalista Boris Casoy disparou uma pergunta a Fernando Henrique Cardoso: “Senador, o sr. acredita em Deus? A reposta dessa pergunta simples e direta fez ele perder uma eleição que parecia ganha.

Um ano depois, durante a Copa do Mundo no México, o dublê de ator e jornalista Marcelo Tas, na pele do personagem cínico Ernesto Varela, conseguiu invadir a concentração da seleção brasileira para dar de cara com o cartola Nabi Chedid, então chefe da delegação. Varela foi direto: “depois da Copa, qual será a sua próxima jogada?”. Transtornado com a pergunta maliciosa, Nabi expulsou ele e o câmera Toniko Melo da concentração.


No passado, perguntas simples e diretas eram
capazes de desconstruir entrevistados
Esses foram tempos onde a televisão ainda possibilitava a abertura de espaços para a realidade do mundo exterior, a realidade de um país que se abria politicamente depois duas décadas de regime militar. Uma década onde uma série de programas televisivos utilizavam uma linguagem experimental assentada na metalinguagem como possibilidade de desconstruir todos os chavões, clichês e estereótipos da grande mídia. Assim como o personagem Ernesto Varela, que através de perguntas diretas e inesperadas desmontava todos os clichês do jornalismo televisivo e, ao mesmo tempo, conseguia se sintonizar com a realidade de um país que mudava.

O que testemunhamos no último dia 18 na espécie de “pinga fogo” da bancada do Jornal Nacional da TV Globo com a candidata à reeleição Dilma Roussef foi o sintoma de toda uma reversão que a televisão brasileira mergulhou em duas décadas depois dos experimentos televisivos radicais como Fábrica do Som, Perdidos na Noite, Goulart de Andrade e o próprio repórter amalucado Ernesto Varela da produtora Olhar Eletrônico.

Os 40% de tempo de fala que os “entrevistadores” William Bonner e Patrícia Poeta ocuparam na sabatina à candidata Dilma demonstraram não só como a metalinguagem e a autorreferência que domina hoje a TV deixou de ser radicalmente crítica como nas experiências descritas acima, para se tornar um sintoma de uma espécie de desespero tautista em que a TV Globo se encontra.

Na verdade, Bonner e Poeta não estavam ali para entrevistar a candidata, mas para desesperadamente falar de si mesmos, como em todo programa do gênero talkshow da TV pós-moderna, ou “Neotevê” como dizia Umberto Eco. a atração já não é tanto as ideias ou a personalidade do entrevistado mas o estilo ou as idiossincrasias do entrevistador: suas conversas com os câmeras, as brincadeiras com o boom operator, as piadas e gozações com membros da banda musical de apoio etc. É como se a Neotevê fizesse um constante making-off. O mundo exterior é um mero pretexto para ela se desnudar na frente do telespectador.

Simulação de imparcialidade com
fisionomias aprendidas em anos
olhando para
os teleprompters dos estúdios
Mas no caso de Bonner e Poeta há um ingrediente a mais, o desespero tautista: eles precisam simular o quanto eles são implacavelmente críticos e objetivos (supostamente estão ali para dar paulada em todos) e, ao mesmo tempo e de forma paradoxal, têm que se tornar uma espécie de câmara de eco da própria agenda criada pela grande mídia e pelos institutos de pesquisa nessas eleições: corrupção, mensalão, crise da saúde, crise econômica e inflação.

Suas verborragias estudadas e simuladas (dedos em riste, soquinhos na mesa, os olhos apertados de Bonner sugerindo argúcia e gravidade e as expressões de ojeriza ou repugnância de Poeta – sobrancelhas erguidas e lábios apertados) expressam uma situação desesperadora para a grande mídia, mas em particular para a TV Globo: ela tem que assumir o papel de oposição (desde a convocação de Maria Judith Brito, em 2010 presidente da Associação Nacional dos Jornais) e, ao mesmo tempo, aparentar imparcialidade e credibilidade numa situação atual de curva descendente de audiência.

As perguntas quilométricas de Bonner e Poeta, muito mais a repetição dos mantras estampados nas perguntas dos institutos de pesquisas, é o sintoma desse tautismo global, tendência generalizada da chamada Neotevê, mas que se torna dramática na atual condição esquizofrênica em que se meteu a Globo.

O que é tautismo?


Conceito criado pelo francês Lucien Sfez, o tautismo tem a ver com o que ele chamava de “comunicação confusional”, traço dominante contemporâneo onde o processo comunicacional teria se tornado um diálogo sem personagem. Só leva em conta a si mesmo, isto é, a comunicação como seu próprio objeto. (veja SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2000).

Sfez: o tautismo é uma
"comunicação confusional"
Sistemas de comunicação que se tornam expansivos e complexos tenderiam às características de auto-organização e fechamento: de um lado a característica da tautologia (repetição lógica onde o resultado é igual a sua proposição; soma-se a isso o autismo onde o sistema de comunicação cria um mundo próprio com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior.

As redes das grandes mídias acabaram criando uma verdadeira câmara de eco onde seus experts, editores, chefes, colunista e executivos criaram uma agenda cujos temas são confirmados pelos números e estatísticas de pesquisas cujas perguntas tendenciosas acabam confirmando proposições e hipóteses. Tautismo, em síntese: discurso autorreferencial, delirante, neurótico.

Da neurose televisiva à esquizofrenia


Mas no caso da TV Globo vai além da neurose: evolui para a patologia da esquizofrenia. A emissora ainda tem que enfrentar a queda de audiência e credibilidade. Como lidar com esse duplo vínculo de servir de oposição política e câmara de eco da grande mídia e lidar com descrédito e queda no ibope? Sua reposta não poderia ser mais tautista: a simulação de independência crítica através dos “pinga fogos” no Jornal Nacional. Isso sem falar nas simulações de reunião de pauta no programa Fantástico (simulando para o público transparência na produção de notícias) e o estúdio de vidro no Rio de Janeiro do SporTV durante a Copa do Mundo. Desesperados simulacros para tentar convencer os telespectadores de que a Globo é “transparente”.

Pelo menos o Pinga Fogo
da extinta TV Tupi
tinha charme e estilo
Mas chamar de “pinga fogo” é até desmerecer o antigo programa homônimo da extinta TV Tupi que foi ao ar de 1955 a 1980. Pelo menos lá havia toda uma referencia da linguagem e estética dos filmes clássicos noir e se suspense norte-americanos, com pitadas de expressionismo alemão: contrastes fortes de claro e escuro, sombras, a fumaça dos cigarros criando uma atmosfera de tensão e suspense a cada pergunta, os silêncios que produziam expectativa etc.

Hoje o que testemunhamos é simulação, canastrice e até arrogância (sintoma do tautismo) e desrespeito, como o dedo em riste levantado contra a candidata.

Tautismo e dissociação psíquica


E quando a realidade teima em contrariar o script tautista criado pela grande mídia? Presenciamos a resposta que a grande mídia dá a esse tipo de situação, ao vivo, no Jornal Nacional: o clássico mecanismo de defesa esquizofrênico quando o paciente não quer enfrentar a realidade que o contradiz, a dissociação – mecanismo de defesa onde a ansiedade ou certas sensações físicas ou emocionais são separadas do restante do psiquismo.

Esse mecanismo acabou se transformando em método para muitos vendedores que querem tornar os consumidores vulneráveis aos apelos de vendas. Por exemplo, durante test drives um vendedor pode lhe perguntar “esse não é o tipo de veículo que você gostaria de ter?”. Isso pode parecer inofensivo, mas é dito para criar um momentâneo lapso de concentração. Distrai o consumidor ao criar um breve momento de devaneio o que o faz desconectar da situação presente.

A vítima acaba se sentindo embaraçada e se tornará vulnerável às próximas sugestões (leia HOWER, Martin. We Know What You Want – How they change your mind. New York: Desinformation, 2005).

Ansioso e irritado diante da linha de argumentação de Dilma, Bonner seguidamente interrompia a fala da candidata. O auge foi próximo ao final, quando a entrevistada discorria sobre a saúde diante das sobrancelhas levantadas e ar de ojeriza de Poeta, quando Bonner interrompeu: “E tem a economia...”, inexplicavelmente antecipando à candidata o tema do bloco de perguntas enquanto Dilma respondia sobre o tema saúde.

A tentativa é não só interromper o raciocínio, mas desconectá-la do presente por dissociação em relação ao futuro.


O mais irônico em tudo isso é que essa técnica de dissociação foi largamente descrita no Manual Kubark de Interrogatório e Contra-inteligência da CIA para induzir desorientação, regressão, transferência e cumplicidade em prisioneiros – sobre isso leia RUSHKOFF, Douglas. Coercion: Why we listen to what they say. New York: Riverhead Books, 1999. 

E sabemos que Dilma enfrentou interrogatórios e torturas nos tempos do regime militar e certamente deve ter se defrontado com esse tipo de técnica. 

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