domingo, junho 17, 2012

Reflexões sobre um filme da Sessão da Tarde

Uma cidadezinha chamada Redbud tenta imitar os personagens e cenários das famosas capas da revista "The Saturday Evening Post" feitas pelo conhecido ilustrador Norman Rockwell. Objetivo: transformar a cidade num cartão postal para atrair incautos compradores de uma fazenda. "Uma Fazenda do Barulho" (Funny Farm, 1988) é uma das típicas comédias românticas de Sessão da Tarde da TV, mas encontramos na sua narrativa uma sequência antológica que apresenta de forma hilária e sintética todas as discussões acadêmicas sobre a contaminação da realidade pelos simulacros e hiper-realidade da civilização das imagens. Redbud tenta tornar-se nostálgica de uma época que jamais existiu.


“Uma Fazenda do Barulho” é uma dessas comédias românticas que passavam nas sessões da tarde da TV brasileira. O ator Chevy Chase, famoso na TV americana trabalhando no “Saturday Night Live” durante os anos setenta, já era um astro que tentava repetir com esse filme o sucesso de “Férias Frustradas”. Mas acabou sendo um fracasso, embora dirigido por George Roy Hill de “Butch Cassidy” e “Golpe de Mestre”.

Porém, em “Uma Fazenda do Barulho” há uma sequência ao mesmo tempo hilária e antológica onde, para tentar desesperadamente atrair compradores para sua fazenda, o casal de potagonistas Andy (Chevy Chase) e Elizabeth (Madolyn Osborne) elabora um irônico plano baseado no hiperrealismo das ilustrações do famoso artista plástico Norman Rockwell, autor das célebres capas da revista norte-americana “Saturday Evening Post” (veja video abaixo). Essa sequência acabou tornando-se um didático exemplo para ilustrar as discussões acadêmicas em torno dos conceitos de “simulacro” e “hiper-realismo” e como, na prática, essas noções invadem o cotidiano.

Mas antes uma breve sinopse da narrativa para que possamos compreender essa sequência. O filme narra as desventuras de um casal bem sucedido de Manhattan que tem um sonho: Andy quer escrever um romance e Elizabeth quer tentar escrever um livro infantil. Largam suas vidas na cidade grande e compram uma linda fazenda em uma pequena cidade chamada Redbud. Lá, esperam encontrar a paz e o sossego do que eles imaginam ser a típica cidadezinha do interior tal como eles conheceram através de fotografias, revistas e filmes.

"Uma Fazenda do Barulho": Revista
"Saturday Evening Post" como
a base da estratégia Hiper-real
para a venda da fazenda
Mas aos poucos o casal começa a tomar pé da realidade: descobrem que o antigo proprietário está enterrado na fazenda. A cidade é habitada por um bando de matutos mal educados, trapaceiros, bêbados, arruaceiros, agressivos e nem um pouco hospitaleiros. Resultado: Andy briga com todos tornando-se o inimigo público número um de Redbud, não consegue encontrar a paz para escrever seu livro e, ainda por cima, vê sua vida conjugal entrar em crise irremediável ao ponto de decidirem pelo divórcio. Por isso, precisam vender urgente a fazenda. Mas quem vai querer morar naquela cidadezinha horrível?

A solução é, no mínimo, irônica: se eles chegaram a Redbud iludidos pelas imagens publicitárias sobre o que supostamente seria a vida perfeita de uma típica cidadezinha do interior, então porque não poderiam fazem a mesma coisa com incautos candidatos a fazendeiros? Andy e Elizabeth decidem reunir os moradores e o Conselho de Redbud para propor um negócio onde todos ganhariam dinheiro com a venda. Elizabeth apresenta uma pilha de revistas “Saturday Evening Post” das décadas de 1930-40. A estratégia é convencer a cidade inteira de Redbud a performar os personagens arquetípicos da típica vida idílica do interior, tal como imaginada pelo ilustrador Norman Rockwell, autor das capas das revistas.

Redbud deve se converter em um autêntico cartão postal de natal com patos e cervos soltos correndo livremente na neve e os moradores com bochechas rosadas e risadas francas, entoando cânticos de natal. A estratégia dá certa e atrai os primeiros candidatos a comprar a fazenda, mas a mal humorada cidade conseguirá manter a farsa por muito tempo?


Simulacros e Simulações


O pensador francês Jean Baudrillard (cujas reflexões sobre o impacto dos simulacros e simulações na vida real impressionaram até os irmão Wachowski nas quais e sbasearam para construir o argumento do filme “Matrix” de 1999) falava do “assassinato do real”. Descontando o que há de retórico e exagero nessa afirmação, Baudrillard queria nos alertar sobre o momento “fatal” onde os simulacros se materializariam e substituiriam progressivamente a realidade

"Uma Fazenda do Barulho": Redbud
converte-se ao Hiper-realismo
Se em toda a História o homem se esforçou a captar a realidade através da imagem artística e de dispositivos técnicos, agora, dentro do regime de produção de imagens eletrônico e digital onde a imagem parece superar a realidade, a situação se inverte: é a realidade que tenta imitar a imagem.

Este movimento pode ser detectado historicamente com o surgimento da primeira cidade pós-moderna: Las Vegas. Essa cidade pode ser considerada o ponto inaugural do pós-modernismo por vários motivos, mas o principal é que foi uma cidade cujo visual inaugural da imagerie americana foi inspirado no brilho catódico da tela de TV. A profusão estonteante de letreiros luminosos, néons fazem da cidade não um objeto arquitetônico, mas cenográfico. À noite ela brilha como uma tela de TV para, de dia, retornar ao deserto. Ou seja, uma construção real inspirada na imagem.

Disneylândia pode ser considerada a segunda cidade pós-moderna na história. Cidade inaugural por criar o conceito de parque temático, essência do hiper-realismo pós-moderno. Nos anos 50 Walt Disney teve um sonho que, para muitos ainda dentro da mentalidade modernista, era uma loucura: trazer para a realidade Mickey, Pato Donald e toda a sua galeria de personagens dos desenhos animados.

O hiper-realismo do parque temático passa a ser o próprio paradigma das cidades pós-modernas onde arquitetura e cenografia, realidade e ficção, representação e estilização misturam-se. Vejamos o caso da cidade turística de Campos de Jordão em São Paulo. Diferente da sua parte central (o bairro de Abernéssia) composto por construções antigas que datam do início da edificação da cidade, o bairro de Capivari é um verdadeiro shopping center a céu aberto. As fechadas são representações tão exageradamente perfeitas de vilas suíças ou alemãs que temos a sensação de estarmos num filme publicitário sobre chocolate. São vilas hiper-reais: não representações realistas das vilas reais européias mas cópias de cópias, ou seja, cenografias montadas a partir de modelos midiáticos publicitários e dos cartões postais.


O hiper-realismo de Norman Rockwell


Através das 323 capas da revista “The Saturday Evening Post” em 47 anos (1916-1963), Rockwell criou um simulacro da América ao representar cenas das vidas das pequenas cidades. A partir de fotografias, elaborava ilustrações com meticulosa precisão traços, cores e texturas que iam além tanto do modelo fotográfico quanto da própria realidade. Através dessas ilustrações criou o imaginário de pequenas cidades inocentes, pacatas e hospitaleiras habitadas por pessoas religiosas, ordeiras e de valores idealistas e nobres. O verdadeiro “sal da terra” que a vida das grandes cidades supostamente teria perdido.

Norman Rockwell e uma
das suas capas na
"Saturday Evening Post"
Os rostos de bochechas rosadas e sorridentes e dos olhares que inspiravam idealismo e pureza seriam o paradigma publicitário norte-americano das próximas décadas, irradiado para todo o planeta. Imagens fascinantes, porque mais perfeitas que a própria realidade.

As imagens de Rockwell, somados ao hiper-realismo de Las Vegas e Disneylândia criam essa curiosa inversão (o real que copiar a imagem) em que toda a tecnologia digital seria uma continuidade ou o aprimoramento dessa sensibilidade pós-moderna.

Isso vai alterar progressivamente a nossa própria estrutura de percepção cotidiana: tomar o real não a partir dele mesmo, mas a partir do seu simulacro. Em uma feira livre chegamos a uma barraca de frutas e vemos uma linda maçã vermelha, brilhante e suculenta. Tão perfeita que não nos conformamos de ser real. “Que maçã linda. Parece até de plástico!” E temos a necessidade de tocá-la para nos certificarmos da sua existência. É a inversão perceptiva do pós-moderno. Não percebemos que é o plástico que imita a perfeição da natureza, mas invertemos os referenciais: parece que é a maçã real que imita a sua cópia de plástico.

Voltando ao filme “Uma Fazenda do Barulho”, percebemos que os habitantes de Redbud ainda mantêm um distanciamento em relação aos personagens de Rockwell que eles têm que performar. Afinal, eles fazem tudo aquilo apenas pelo interesse na parte do dinheiro da venda da fazenda. Eles não creem naquelas capas de revistas. Mas Andy e Elizabeth, como habitantes vindos de Nova York, no fundo ainda acreditam em tudo aquilo, acham que Redbud é uma exceção e que Normal Rockell ilustrava a vida de uma cidadezinha “normal”.

Elizabeth diz amar cantigas de natal (que os moradores de Redbud entoam até a exaustão pensando no prêmio em dinheiro) e Andy define-se como um homem não exatamente sentimental, mas, no fundo, sente-se tocado pela materialização da utopia das capas da “Saturday Evening Post”.

Andy e Elizabeth são os cidadãos pós-modernos, nostálgicos de uma época que nunca existiu.

Ficha Técnica

  • Título: Uma Fazenda do Barulho (Funny Farm)
  • Direção: George Roy Hill
  • Roteiro: Jeffrey Boam baseado em livro homônimo de Jay Cronley
  • Elenco: Chevy Chase, Madolyn Osborne, Kevin O’Morrison
  • Produção: Cornelius Productions, Warner Bros. Pictures
  • Distribuição: Warner Home Video
  • Ano: 1988
  • País: EUA




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