Mesmo confinado dentro dos limites de um gênero hollywoodiano, "Amor Por Contrato" (The Joneses, 2009) tematiza o resultado de táticas híbridas de publicidade que cruzam conceitos como de "marketing invisível" e "reality show": a privatização das relações humanas. Influenciar "alvos" sem parecer ser uma informação comercial por meio de "agentes" ("trendsetters", atores ou perfil fake), o chamado "marketing invisível" exploraria o endosso da credibilidade e autenticidades das relações pessoais em uma época onde os consumidores cada vez menos confiam na publicidade tradicional.
Leia essas duas afirmações abaixo:
(a) “Já estamos cansados de atores com
emoções falsas. Cansados de pirotecnias e efeitos especiais. Aqui não há
roteiros. Não é sempre um Shakespeare, mas é genuíno. É uma vida. Para mim,
vidas particular e pública são iguais. É tudo verdade, tudo real, nada aqui é
falso”
(b) “Sem colocar o produto na vida
real, não há marketing invisível que possa ajudar. Você verá pessoas reais
sendo patrocinadas por companhias. Elas não são superstars, mas pessoas comuns,
e isso será barato, efetivo e com mais credibilidade”
A afirmação (a) pertence ao mundo da ficção e a (b) ao mundo
real. Na primeira afirmação temos a fala de abertura do filme “Show de Truman”
onde Christoff, o produtor de um gigantesco reality show, justifica o programa;
e na segunda afirmação, temos a fala de Jonathan Ressler, pioneiro da
estratégia de “marketing invisível”. Apesar das afirmações provirem de mundos
diferentes, o leitor percebeu a semelhança entre elas?
Tanto e (a) quanto em (b) temos exemplos de “privatizações”
de relações humanas. A diferença está na escala: em Show de Truman, Christoff
privatiza a vida de um indivíduo (confina Truman em um “reality show desde o
seu nascimento) para conseguir audiência de TV; enquanto em (b) temos uma
estratégia de privatização de relações humanas em larga escala por meio de
redes sociais e relações sociais face-a-face para o lucro de empresas e
corporações.
Assistindo a uma revista de notícias na TV, Derrick Borte
(um artista plástico que virou jornalista e depois virou produtor e diretor de
comerciais) viu uma matéria sobre “marketing invisível”: pessoas não sabiam que
turistas mostrando uma nova câmera casualmente em abientes públicos ou uma
menina bonita pedindo determinada marca de vodka em um bar eram atores
contratados para expor produtos a clientes em potencial. Somado ao seu fascínio
por “reality shows”, Borte acabou tendo a ideia do roteiro e dirigiu o filme
“Amor por Contrato”, o seu primeiro filme.
Marketing invisível: agentes infiltrados para explorar a autenticidade das relações humanas |
Borte quis nessa comédia romântica explorar as consequências
de estratégias radicais de marketing e do consumismo nas relações humanas
presenciais, isto é, dentro dos limites das convenções do gênero que uma
produção hollywoodiana com atores famosos (Demi Moore e David Duchonovy) pode
oferecer. Por isso, a narrativa abre mão em dar um tom mais contundente, mas o
filme parte de uma ótima premissa para iniciar uma discussão.
O casal perfeito Steve e Kate Jones junto com seus lindos
filhos adolescentes Jenn e Mick mudam-se para um elegante subúrbio de classe
média alta com seus campos de golfe e requintados salões de beleza. Os Joneses
passam a ser vistos como o modelo de família perfeita, equipados com as grifes
mais caras e atuais (celulares, carros esportivos, roupas, móveis de estilo e
festas abastecidas com bebidas e comidas das melhores marcas e procedências).
Logo se tornam líderes e criadores de tendências, admirados pelo sucesso e
estilo de vida. Mas a vizinhança nem desconfia de que tudo nessa família é falso:
eles são “trendsetters”, isto é, empregados de uma empresa de marketing que
estão ali para simularem uma família perfeita. Na verdade os Joneses são uma
vitrine viva de produtos, estilos e atitudes para, através da aparente
espontaneidade e credibilidade desses “trensetters”, iniciar efeitos virais de
tendências e comportamentos.
Como em todo filme hollywoodiano, o contexto (Sociedade,
História e Cultura) são colocados entre parêntesis ou apenas como pano de fundo
para uma estória de amor dificultada pelo conflito entre a família simulada e o
afeto real entre Steve (ex-vendedor de carros e golfista fracassado) e Kate (workaholic
e líder da “célula familiar” que deve bater metas fixadas pela empresa).
A crise da "lógica do papai-noel"
O marketing invisível pode ser considerado a reta final de
uma longa história de técnicas publicitárias ao longo do século XX que se
iniciou nas estratégias de repetição de estímulos para alteração de
comportamento, passando pelas técnicas psicanalíticas para induzir a
viciosidade e compulsão até o “approach” cognitivo para a construção da imagem
de marcas e produtos.
Após toda essa longa trajetória, chega-se à seguinte
constatação: os consumidores não confiam mais na propaganda e nem na
publicidade tradicional. Isso não quer dizer que o ímpeto pelo consumismo e o
fascínio pelo fetichismo, viciosidade e compulsão tenham desparecido. Pelo
contrário, hoje esses traços são tão explícitos e desavergonhados que não
necessitam mais do verniz ou do álibi dos slogans e textos publicitários. Os
consumidores não necessitam mais de um suporte racionalizante que a instituição
Publicidade e Propaganda sempre ofereceram às pessoas: a chamada “lógica do
papai-noel”.
Explicando
melhor, o termo “lógica
do papai-noel” foi criado pelo pensador francês Jean Baudrillard no seu livro
“Sociedade de Consumo”. Para ele, toda a lógica de persuasão publicitária
estava numa espécie de alívio do sentimento de culpa por meio de álibis
sutilmente sugeridos ao consumidor para que pudesse exercer livremente sua
impulsividade e compulsividade. Não cremos em Papai Noel, mas, ao menos, a sua
figura nos serve com álibi para justificar o consumismo natalino. Da mesma
forma, nenhum consumidor crê em slogans, mas eles são ótimos para justificar
(para si mesmo e diante dos outros) como álibis nossos impulsos.
"Amor Por Contrato": abre mão da contundência para dar lugar ao romantismo |
Pois é esse mecanismo subjacente aos filmes publicitários
que entrou em crise. O consumismo deixou de ser envergonhado pela sua inutilidade
e superficialidade: transformou-se em “estilo de vida” e “identidade” Por
exemplo, as chamadas “patricinhas” e “louras burras”, símbolos máximos da
futilidade e consumismo, deixam de se esconder sob o manto dos álibis
publicitários (compro porque “preciso”, “está na promoção” ou “está na moda”)
para assumirem-se de forma desavergonhada e sem culpa que, na verdade, tornaram-se um “estilo de
vida” ou “uma tribo” em redes sociais e blogs.
Orgulhosas dessa condição, deixaram de ser “vítimas da
moda” para se tornarem “trendsetters” ou criadoras de tendências.
Mas se os consumidores deixam de “acreditar” (na verdade
deixam de necessitar) no discurso publicitário tradicional, ainda acreditam nas
pessoas, na espontaneidade de semelhantes que assumem sua espontaneidade, seja
ela brega, chique, excessiva, fútil, esquisita ou dispendiosa. Consumidores que
assumem sem culpa e ostentam isso nas relações sejam virtuais ou presenciais.
Privatizar as relações humanas
Por isso, a Publicidade e o Marketing pressentem os novos
tempos: não adianta mais apenas privatizar espaços de concessões públicas como
as ondas eletromagnéticas do rádio e TV e os espaços urbanos e de vendas como
outdoors, busdoors ou displays em supermercados. É necessário algo mais radical
e arriscado: a privatização das próprias relações humanas, parasitar a credibilidade e
espontaneidade que ainda restam nos lugares em que vivemos.
Ou como alerta Kalle Lasn, editor da “Adbusters Magazine”
(ONG preocupada com a crítica da forma como os fluxos de informação e
significados mantêm e reforçam o poder das corporações):
“o marketing viral e invisível é uma forma de corrupção a partir do instante em que invade a nossa paisagem cultural. É muito mais insidioso porque o Marketing está criando uma estranha forma cultural em um nível mais básico, nas ruas e lugares onde nós vivemos” (HOWARD, Martin. We Know What You Want. New York: Desinformation Co.: 2005, p. 124).
A premissa
interessante do filme “Amor Por Contrato” foi a ideia Derrick Borte associar o
marketing invisível com o reality show:
“pensei que a situação de intimidade forçada onde estranhos são confinados em uma casa poderia combinar muito bem com o tema do marketing invisível. Quando se trata de um tema assim você tem que se decidir – vou para o campo da comédia ou vou para o thriller? Pensei em um ângulo mais interessante. Quis explorar a dinâmica de uma família falsa” (veja Interview: “Derrick Borte of the Joneses” em “Movie Mom”).
O fetichismo da influência: inveja de estilos de vida e identidades trazidos pela posse de objetos |
Nesse ponto
percebemos que “Amor Por Contrato” abre mão de um tom mais contundente, afinal
se a intimidade forçada dos membros da família Jones tinha os seus dias de
folga onde cada membro podia abandonar seus papéis e “voltar para a realidade”,
o mesmo não se pode dizer dos incautos vizinhos daquele subúrbio de classe
média alta. Com o investimento privado nas relações sociais e afetivas dos
Joneses (os adolescentes tinham que arrumar namorados para ampliar suas
influências na comunidade), para os vizinhos não havia “suspensão da
irrealidade” ou um “Day off” para a simulação: tudo era vivido 24 horas como um
insidioso horizonte cognitivo de construção da realidade.
Com esse aspecto
cognitivo de construção da realidade a partir da privatização das motivações
das relações humanas, o marketing invisível parece resolver o grande problema
histórico para a publicidade e para o próprio Capital: a materialidade ou o
valor de uso do produto. Toda a história da publicidade é a história do
convencimento do consumidor de que ele deve comprar o produto pela sua
inutilidade e não pelo valor de uso. Se fosse o contrário, o consumo estancaria
pela satisfação plena de uma utilidade real.
Com os “trendsetters”
teríamos o descolamento total do consumo em relação à materialidade do produto:
o consumo não mais da mercadoria, mas do “estilo de vida”, “atitude” e
identidade” de um líder aparentemente igual a você. Em síntese, o fetichismo da
influência: você espera ter o que determinada pessoa tem porque percebe o
efeito que os produtos tem nos outros e em você mesmo.
Ficha Técnica
- Título: Amor Por Contrato (The Joneses)
- Diretor: Derrick Borte
- Roteiro: Randy Dinzler e Darrick Borte
- Elenco: Demi Moore, David Duchonovy, Amber Heard, Ben Hollingsworth
- Produção: Echo Lake Productions
- Distribuição: Califórnia Filmes
- Ano: 2009
- País: EUA
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