quarta-feira, janeiro 11, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Esqueça filmes como “Crepúsculo”
onde vampiros com “sex appeal” seduzem adolescentes. Aclamadíssimo em Festivais de cinema Fantástico,
o filme sueco “Deixe Ela Entrar” (Let The Right One In, 2008) igualmente narra
uma estória de amor impossível entre adolescentes, mas rompe com os principais cânones
do gênero ao apresentar o vampiro não mais como encarnação, mas como representação do Mal: o vampiro abandona a adolescência
dos “shopping centers” para ingressar na rotina da adolescência repleta de
ambiguidades, indecisões e desejos de vingança.
Os dois principais arquétipos dos contos góticos foram
criados por autores britânicos no século XIX: “Frankenstein” de Mary Shelley
(expressando os medos de um futuro onde a ciência usurparia o poder divino de
criar a vida) e “Drácula” de Bram Stocker (expressando o medo de supertições e
tabus do passado que invadem o presente para destruir a vida por meio da
contaminação).
Atualmente, o arquétipo do vampiro está em ascensão no
cinema. Em um primeiro momento tivemos as adaptações cinematográficas clássicas e fiéis ao livro de Bram Stocker (o
vampiro como encarnação do Mal que invade a sociedade vitoriana pela
contaminação do sangue) até os filmes ingleses de terror da Hammer nos anos 60. Mas a partir do filme “Entrevista com um Vampiro” nos anos de 1990, a figura do vampiro
começa a ser investida de "sex appeal" ao ser vivida por atores como Tom Cruise e
Brad Pitt: a sedução do vampiro através do olhar e a mordida e sucção do sangue
como uma metáfora erótica e sexual.
A partir daí temos duas linhas cinematográficas pelas quais
o mito do vampiro é atualizado: de um lado a vertente cômica como, por exemplo,
o horror cômico-trash inglês “Matadores de Vampiras Lésbicas” (Lesbian Vampire
Killers, 2009); do outro, o blockbuster “Crepúsculo” (Twilight, 2008) onde uma
adolescente mortal apaixona-se por um vampiro que consegue andar à luz do dia,
pálido e com um estranho ar perdido e frágil (fascinante para adolescentes
pois, afinal, é assim que eles se veem). Seja por um caminho ou pelo outro, o
Mal é erotizado e o ataque sanguinário vira uma espécie de cópula
sado-masoquista.
Apesar disso, ambas as correntes respeitam o principal
código estabelecido sobre vampiros: eles continuam sendo a encarnação do Mal,
ou pela culpa (a imortalidade como uma maldição) ou como a própria encarnação
da maldade (matar como manifestação do prazer pelo Poder). Essa é uma visão religiosa do Mal presente
desde Bram Stocker: o vampiro como uma tentação demoníaca que, por meio da
hipnose, vem despertar nos seres humanos (e principalmente mulheres) seus
impulsos mais primitivos seja na época vitoriana ou na dos shopping centers:
entregar o próprio pescoço para ingressar no imortal reino do Mal. Em outras
palavras, entregar-se ao pecado e ser punido por isso.
Porém, um filme vai desafiar esse código estabelecido sobre
o Mal. É o filme sueco “Deixe Ela Entrar” (Let The Right One In, 2008) uma
adaptação do livro homônimo de John Ajvide Lindqvist e dirigido por Thomas
Alfredson. Não é à toa que o filme foi aclamadíssimo pela crítica e pelos fãs
do cinema Fantástico: embora seja comparado com “Crepúsculo” por incorporar o
amor entre adolescentes mortais e imortais, o filme subverte a convencional
visão religiosa do Mal: o vampiro é retratado apenas como sintoma do Mal
diluído nas relações humanas e na própria sociedade. Ele não é mais uma encarnação, mas uma representação do Mal.
O Filme
Passado no começo da década de 1980 conta a estória de
Oskar, um adolescente de 12 anos que vive em Blackberg, uma cidade-dormitório
nos subúrbios de Estocolmo. Esquálido e introvertido vive em um pequeno
apartamento com sua mãe divorciada. Vítima de constantes “bullyng” na escola,
passa o restante do dia imaginando formas de vingança enquanto desfere golpes
com uma faca no tronco de uma árvore.
O apuro estético em apresentar a paisagens geladas da
pequena cidade na proporção da tela em “scope” é ideal para apresentar a aridez
gelada tanto da neve quanto das relações humanas. Como cidade-dormitório,
Blackberg é destituída de vida comunitária. Predomina a solidão e tédio: os
pais pouco se interessam pela vida de Oskar, as relações na escola são
humilhantes e cruéis, um pequeno grupo de alcoólatras reúne-se em um bar e
homem vive solitário em um apartamento cheio de gatos.
Até que o dia em que Oskar conhece Eli, garota que se mudou
para o apartamento ao lado cujas janelas são estranhamente encobertas por
papelão. Ela também tem doze anos, só que “há muito tempo” e adianta: “eles não
poderão ser amigos”. Para a vida de Oskar naquele lugar, tudo parece normal,
afinal, ela é tão introvertida quanto ele e avessa à socialização como todos.
Mas o silêncio da aridez gelada do subúrbio é quebrado por
uma série de brutais assassinatos. Um idoso senhor que acompanha Eli (seu pai?)
tem o hábito de assassinar pessoas para retirar o sangue. A última tentativa é
fracassada quando é quase flagrado por duas mulheres. Retorna ao apartamento de
Eli, faminta à espera do sangue. Descobrimos que Eli é uma vampira e aquele
senhor um guardião que está cansado de matar pessoas para alimentá-la. Ele vem
falhando constantemente, obrigando Eli a sair para a caça para alimentar-se por
conta própria.
Paralelo a isso, desenvolve-se uma relação ambígua entre
amor e amizade de Oskar com Eli. É sintomático que, mesmo descobrindo que Eli é
uma vampira, sua admiração e afeto crescem por ela: parece que a figura
sobrenatural de Eli não abala nada, mas parece se encaixar perfeitamente num
contexto de uma sociedade tensa, cruel e fria.
“Eu preciso de sangue para viver, você por vingança”, diz
Eli. Aqui temos a primeira ruptura do filme com o gênero: não temos a clássica
relação que pressupõe um vampiro ciente do fardo da imortalidade e um mortal
que inveja o poder do outro. Pelo contrário, Oskar e Eli são apresentados como
adolescentes, os dois desejosos por sangue (seja por sobrevivência ou
vingança). O que parece só aumentar o afeto ao reconhecerem-se um no outro.
Esqueça filmes como “Crepúsculo” onde mortais adolescentes ficam fascinados
pelo poder e imortalidade dos seres das trevas.
O Vampiro como Representação
do Mal
Essa estória de amor e amizade entre um vampiro e um mortal
conduz a outra, e definitiva, ruptura com o principal código do gênero: a do
vampiro como encarnação do Mal. Oskar e Eli identificam-se um com o outro: Eli
vê em Oskar sentimentos de “pureza” ou de “amizade desinteressada” que há muito
um ser das trevas perdeu, e Oskar vê em Eli a força e coragem que ele necessita
para por em prática seu projeto de vingança. É perturbador ver que Oskar pouco
se abala com a descoberta de que sua vizinha estava por trás da série de
assassinatos em Blackberg: Eli parece se enquadrar perfeitamente naquele
ambiente gelado de pessoas solitárias e emocionalmente frias.
A narrativa não informa a origem de Eli: de onde ela veio?
Como se tornou um vampiro? Uma maldição? O último e solitário ser de uma
espécie? Eli é atemporal, vinda de lugar nenhum: chegou naquele pequeno subúrbio
como uma representação de um Mal que já está há muito tempo entranhado naquela
sociedade.
O mito do vampiro como encarnação do Mal, pelo menos tal
como apresentado desde Bram Stocker até o cinema e cultura pop, é um mecanismo
de defesa para a sociedade expurgar (por meio de cruzes, réstias de alho e
estacas), racionalizar (por meio da Ciência e Religião) ou simplesmente negar
(como em “Crepúsculo” onde darks e vampiros estão perdidos em “lugar de gente
feliz”). O Mal pode ser isolado na figura do vampiro que tenta nos induzir ao
pecado através do desejo de querermos nos tornar vítimas do poder hipnótico de
um ser das trevas.
Ao contrário, “Deixe Ela Entrar” apresenta o Mal ontológico
onde o pecado e a Queda são elementos estruturantes da própria sociedade. O
vampiro é mais um ser infeliz prisioneiro dessa condição decadente que
constitui o cosmos físico.
Ao contrário dos cânones do gênero onde o vampiro é o Mal
encarnado que enfrenta uma sociedade racionalista e organizada com seus
mecanismos de defesa (Ciência e Igreja), em “Deixe Ela Entrar”, Blackberg nem
uma Igreja possui: o pequeno subúrbio é anômico e praticamente inexiste uma
vida comunitária.
Para reforçar essa estranha normalidade de um ser como Eli
naquele subúrbio, a narrativa é minimalista, com efeitos especiais econômicos e
com interpretações contidas dos atores, sem deixar de ser um filme de horror
com boas doses de sangue. O ritmo contido da narrativa sugere uma estranha
atmosfera de normalidade e rotina: para os moradores do subúrbio todas as mortes
não passam de obra de um serial killer, e para Oskar, Eli é mais uma pessoa tão
estranha e introvertida como ele.
Sexo ambíguo
Eli faz uma pergunta recorrente a Oskar, carregada de
ambiguidade: “Você gostaria de mim, mesmo que eu não fosse uma menina?” O
elemento do sexo e erotismo também está presente, mas de uma forma que
possibilita uma terceira ruptura com os cânones do gênero: o erotismo não é
construído pelo fascínio dos mortais pelo poder fálico do vampiro (poder,
força, sedução etc.), mas por uma ambiguidade construída na igualdade entre
Oskar e Eli: ambos adolescentes, com aspecto andrógino, vivendo incertezas
inclusive em relação à sexualidade; mais uma incerteza que torna a adolescência
tão carregada de problemas e indecisões.
Este filme de Thomas Alfredson foi vencedor de cinco prêmios Golden
Bug (o Oscar da Suécia), do festival Tribecca, do festival Gerardmer e do
reputadíssimo Meliés D’Or (ciclo de prêmios do qual integra o Fantasporto). É o reconhecimento de um dos filmes que
consegue revolucionar códigos de um gênero tão em evidência comercial com o
sucesso do filme “Crepúsculo”. Porém, em “Deixe Ela Entrar” o vampiro abandona
a adolescência dos “shopping centers” para ingressar na rotina da adolescência
repleta de ambiguidades, indecisões e desejos de vingança.
Ficha Técnica
Título: Deixe Ela Entrar (Let The Right One In - Låt den rätte komma in)
Diretor: Tomas Afredson
Roteiro: John Ajvide Lindqvist
Elenco: Kare
Hedebrant, Lina Leandersson, Per Ragnar
Produção: EFTI, Filmpool Nord, Sveriges Television (SVT)
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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