sexta-feira, setembro 17, 2010

"Desconfie de Todos": A Sombra de um Arquétipo

O vídeo publicitário do chocolate Bis explora a sombra arquetípica do personagem picaresco: a paranóia. A virtude desse vídeo é apresentar a "paranoia institucionalizada" dos ambientes corporativos atuais. Mas também apresenta a dinâmica da Ad-Gnose: fixar o arquétipo para produzir identificação e, em seguida, confiná-lo numa representação regressiva da paranoia.

Em postagens anterioras (veja links abaixo) discutíamos o conceito de Ad-Gnose como uma nova fase em que entra a indústria de entretenimento em geral e a publicidade em particular. Como apontam todas as tendências (agenda tecnológica, temas das narrativas fílmicas desse início de século etc.), as estratégias publicitárias atuais estão para além do comportamental, subliminar ou da captura das fantasias compulsivas ou impulsivas. Busca-se um nível mais profundo: o repertório da simbologia arquetípica da espécie humana. A fase “Este é o produto, agora compre-o!” foi deixada no passado para, em seu lugar, consolidar-se a prospecção dos simbolismos mais profundos da alma humana que procura apresentar o consumo como uma experiência espiritual, de autoconhecimento.

A Publicidade parece que assimilou todas as críticas feitas a ela ao longo da história (consumismo, superficialidade, frivolidade, materialismo etc.) e procura demonstrar que mudou, se espiritualizou e não vê mais o consumo como mero ato de aquisição, mas de enriquecimento espiritual.

É claro que o propósito da Ad-Gnose é discutível e irônico: buscar a experiência espiritual (a transcendência) numa troca econômica (imanência) que pressupõe todo um sistema econômico e político que se impõe como um princípio de realidade que confina as aspirações contidas nos arquétipos.

Um exemplo atual dessa dinâmica está no recente filme publicitário do chocolate Bis intitulado “Baia” (da Olgivy & Mather). Em um ambiente corporativo, onde cada funcionário (ou “colaborador” como eufemisticamente se diz no jargão corporativo atual) está na sua baia, o protagonista come o seu bis em silêncio, encolhido, com um olhar perdido de tédio e fastio. Um pequeno prazer individual num ambiente de rigoroso controle e vigilância coletivas.

As divisórias da sua baia vão cada vez mais se deslocando, estreitando o espaço do protagonista, na medida em que os chocolates bis misteriosamente desaparecem dos cantos da sua mesa. Contrariado, ele olha por cima das divisórias e vê seus vizinhos também comendo bis. Resignado, abre a sua gaveta para pegar outro bis de uma nova embalagem. No final, o slogan conclusivo: “desconfie de todos!”

Nesse caso temos a utilização do personagem arquetípico do Pícaro. O personagem picaresco é representado por um palhaço ou qualquer personagem cômico que carrega dentro de si o desejo de mudança da realidade. Tal qual um Dom Quixote, o pícaro luta contra os moinhos de vento da realidade, criando situações tragicômicas, principalmente porque muitas vezes onde ele vê dragões ou monstros mitológicos nada mais são do que velhos moinhos. Sua sombra é a paranoia.

O filme publicitário do chocolate Bis explora, portanto, o simbolismo arquetípico da Sombra do personagem picaresco: a paranoia. E os moinhos de ventos são os modernos ambientes corporativos das administrações flexíveis, cujas estruturas de cargos e funções mudam repentinamente de acordo com as mudanças dos ventos da economia globalizada.

Gestão do Medo

Como alguém já observou, a administração corporativa do capitalismo globalizado pode ser definida como a “gestão do medo”.

Richard Sennett já observou que no novo capitalismo a cadeia e os elos da produção estão cada vez mais flexíveis, voltados para metas de curto prazo. Em termos sociais e de relações humanas isso altera a função do trabalho em conjunto. Sennet faz uma analogia da nova organização com o toca MP3: enquanto um aparelho de MP3 pode ser programado para tocar apenas algumas faixas de seu repertório, a organização flexível pode desempenhar a qualquer momento algumas das suas possíveis funções. A consequência é a exigência por parte da organização por uma predisposição mental capaz de adaptar-se a contínuas mudanças, sempre partindo do zero.

Como demonstram as sucessivas novas ondas em gestão e administração, os aspectos objetivos de avaliação (técnico-profissionais) são colocados em segundo plano. O mais importante é a “inteligência emocional”, potencialidade e capacidade de adaptação. Para Sennett esses critérios subjetivos e sujeitos a constantes mudanças e valorações tornam a organização ambígua e misteriosa para o indivíduo:
“Isso dá a entender que as relações humanas abertas são mais importantes nas organizações flexíveis (...) nas estruturas fluidas, a sensibilidade substitui o dever. (...) a organização flexível deixa claro por que a conscientização recíproca vem a ser impregnada de ansiedade e, com demasiada frequência, paranoia institucionalizada” (SENNETT, Richard. A Cultura do Novo Capitalismo. São Paulo: Record, 2006, p. 52)

Sem os critérios objetivos da antiga meritocracia, a necessidade sempre renovada de adaptação e de entender a pragmática das relações interpessoais cria uma progressiva atmosfera de ansiedade e medo. A própria arquitetura dos ambientes corporativos torna-se móvel, flexível (baias, divisórias etc), para adaptar-se aos repentinos desaparecimentos e criação de novos cargos e funções. A ansiedade e medo gerado por essa atmosfera móvel, fluída e,ao mesmo tempo, viscosa, vai produzir a forma mais acabada de reação do indivíduo: a paranoia.

O momento de verdade da paranoia: o arquétipo

A paranoia tem o seu momento de verdade. Como falha da razão, resulta da percepção do absoluto non sense da realidade, ansiando pela mudança. O arquétipo do Pícaro ou do personagem tragicômico simboliza essa gnóstica percepção de que, no final, a realidade não tem sentido: a lógica do sistema se volta contra ele próprio e os efeitos coleterais explodem no protagonista aturdido, pego em situações cômicas e irônicas.

Mas esse momento arquetípico da paranoia pode se transformar em algo regressivo, aprisionando esse momento de verdade na lógica absurda do sistema que o produziu. A paranóia pode se transformar na “tirania da unificação ou a maldição do Um”
(QUINTAES, Marcus.” Hilman Revendo Hilman: Polêmica e Paranoia” disponível em http://www.jungianstudies.org/publications/papers/quintaesm3.pdf).

A realidade (posta anteriormente em suspeita pela paranoia) passa, então, a se unificar e é introjetada pelo indivíduo: como resultado todo o sistema passa a ser visto como um gigantesco complô contra o protagonista. Desconfia de que cada pessoa próxima, cada situação ou cada evento seja parte de uma gigantesca engrenagem que se movimenta para destruí-lo.

A Sombra no sentido Junguiano, representada aqui pela paranoia, é um importante elemento para a individuação (diferente da estrita concepção narcísica de paranóia – a idéia de que o sujeito tem de que o mundo está focado em uma perseguição contra si próprio) ao fazer o sujeito questionar o princípio de realidade. Ao contrário, a regressão da paranóia na introjeção destrói a aspiração arquetípica por mudança, produzindo confomismo, resignação e, mais tarde, ressentimento, ódio e vingança. Se na paranóia arquetípica a racionalidade do real é questionada, na introjeção paranoica temos, ao contrário, o delírio da racionalidade com a imagem de uma maquinação precisa que quer destruir o sujeito.

O filme publicitário do chocolate Bis é emblemático por três razões: primeiro, por representar tão bem os ambientes corporativos atuais fluidos, móveis dispostos em baias com pessoas entediadas. Segundo, ao representar a “paranoia institucionalizada” desses novos ambientes corporativos; e, terceiro, por apresentar o dinamismo da Ad-Gnose: o confinamento do arquétipo. O filme atrai a identificação do espectador ao apresentar esse momento de verdade, mas, ao mesmo tempo, regride o arquétipo ao reduzir a paranoia à “tirania da unificação”.

Um contraponto dessa utilização regressiva da paranoia pode ser visto em “Brazil, o filme” (Brazil, The Movie, 1985) de Terry Gilliam. Nele, vemos uma sequência que lembra muito o filme publicitário do chocolate Bis (veja essa sequência abaixo). Diferente do vídeo publicitário, Gilliam apresenta a paranoia em traços épicos e gnósticos. O protagonista Picaresco, tal qual como Dom Quixote, enfrenta monstros imaginários, fruto da sua paranoia. Mas, aos poucos, vai descobrindo a absoluta ausência de sentido num mundo dominado pela burocracia total. A paranoia vira instrumento de mudança e libertação.

Ao contrário, na Ad-Gnose do vídeo do Bis, o momento de verdade do arquétipo é fixado para produzir identificação e familiaridade (“é igual na empresa onde trabalho!”) para, em seguida, confiná-lo no slogan regressivo que introjeta a realidade que queria questionar: “Desconfie de Todos!”



Brazil, O Filme (1985)



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