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Rotular o filme como “gnóstico” ou “religioso” revela uma generalização conceitual existente entre o filme gnóstico, filme religioso ou sobre o sagrado e filme sobre religião.
Filmes sobre religião seriam aqueles cujo tema religiosidade, religião, organizações religiosas, igrejas etc. são meros pretextos ou pano de fundo para o exercício dos clichês ou convenções de um determinado gênero (policial, thriller, suspense, histórico etc.). O Código Da Vinci se enquadraria facilmente nessa categoria ao fazer um pastiche de elementos históricos e religiosos, reais e ficcionais, tudo mesclado numa narrativa clássica hollywoodiana (que possibilita a identificação com os protagonistas e a forte esquematização entre bem/mal, danação/salvação). Filmes sobre religião não têm a menor pretensão em representar experiência do sagrado, iluminação ou transcendência que envolva seja o protagonista ou seja o espectador. Por possuir uma narrativa sem ambigüidades e fortemente esquemática, não permite nenhuma tensão entre forma e conteúdo que permitiria vazios ou interstícios através dos quais poderia surgir uma experiência de transcendência ou transformação.
Já o filme religioso ou sobre o sagrado já trás o problema do conteúdo e da forma. Por procurar formas imagéticas que procurem se aproximar das experiências de transcendência, seja mística ou religiosa, já experimentam o princípio da tensão entre forma e conteúdo, como coloca Lemos Filho:
“O filme religioso traz problema de conteúdo e de forma. Lumiére desejou simplesmente a realidade sem nenhuma preocupação formal. Meliées, ao contrário, preocupou-se demais com as estruturas formais. De então para cá, o filme religioso tem se inclinado ora para um ora para outro . Determinados elementos formais podem modificar o sentido do conteúdo religioso. Às vezes, a qualidade da obra sob o ponto de vista religioso depende muito menos de seu conteúdo estrito do que de sua forma. A correlação entre valores estéticos e valores religiosos é de fundamental importância para se analisar um filme e encontrar nele a evocação do sagrado”. (LEMOS FILHO, Arnaldo Cinema e o sagrado. IN Comunicarte, v.7/8, n.13/14, p. 6-20. 1990).
É o exemplo
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Outra corrente é aquela que podemos denominar como de “formalismo espiritual”, inspirada na possibilidade da exploração das potencialidades formais do cinema tais como a abstração e simbolismo da montagem, do surrealismo e do camp.
Um exemplo dessa vertente está no filme 8 e Meio (8 ½, 1963) de Fellini. Um filme auto-referente: há um filme a ser feito e Oito e meio constrói-se a partir dessa necessidade. Oito e Meio começa com um sonho. Depois, o filme volta a uma estrutura mais coerente, realista, condizente com uma descrição da realidade. Mas trata-se de uma coerência relativa. As situações muitas vezes são verossímeis, porém não são "razoáveis". Há uma confusão constante, um entrar e sair incessante, em meio a imagens quase oníricas. O filme é a exploração de uma estrutura complexa de auto-referencialidades: um filme autobiográfico de Fellini, com uma narrativa sobre a produção de outro filme onde o protagonista embaralha seus sonhos com a realidade. Através de recursos formais como a auto-referencialidade e narrativa ambígua, o filme drena a solidez da realidade para fazer o espectador transcender a realidade dada.
O filme gnóstico detém uma substância esotérica contida em um pacote exotérico, isto é, trabalha com o tema da ilusão da realidade dentro de um produto comercial determinado por uma ilusão: as convenções comerciais do gênero e o próprio caráter ficcional da representação fílmica. Este tipo de filme parece estar consciente dessa condição ao propor, como saída para essa tensão, experiências formais que explodem a expectativa do espectador pelos clichês do gênero.
O filme gnóstico parece seguir o sentido contrário desse prazer cinematográfico. A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem etc., dificultam essa identificação primária.
A Especificidade do filme gnóstico
O segundo aspecto é de que a jornada pela qual o protagonista percorre não é uma expiação, mas uma “cura”, Em outras palavras, toda a provação não é conseqüência de pecados ou deformações do caráter do protagonista, mas, antes, decorre de uma realidade corrompida que o aprisiona. Todas as dúvidas e sofrimentos não são castigos por alguma transgressão ética ou moral do protagonista. Pelo contrário, é o trajeto mítico gnóstico de Emanação-Queda-Ascensão onde o protagonista é resgatado do cosmos material ao despertar a Luz interior por meio de situações que o ajudam a revelar o véu da ilusão. Isso é o que distingue os filmes gnósticos de filmes como O Advogado do Diabo (The Devil’s Advocate, 1997), onde o protagonista é seduzido pelo diabo por meio do pecado da vaidade. Apesar do discurso final de Milton (o diabo que vem ao mundo sob a forma de um advogado performado por Al Pacino) tentando convencer o protagonista Kevin (Kaenu Reeves) a ser seu sucessor ter um sabor gnóstico, o drama do protagonista centrado em um recorrente pecado da vaidade configura um típico filme de temática religiosa conservadora. O protagonista é punido pelo seu pecado capital.
O terceiro aspecto é uma decorrência do segundo: nos filmes gnósticos o protagonista não é punido pela transgressão da ordem. Ao contrário das exigências decorrentes dos gêneros comerciais onde o clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem é dominante, no filme gnóstico a quebra da ordem não é punida, isto é, não há um restabelecimento da ordem (seja social, política, institucional, familiar, moral ou pessoal) com a punição das pretensões de ruptura das ilusões da realidade material. Isso distingue, por exemplo, o salto final em filmes como Telma e Louise (Thelma e Louise, 1991) com o do filme Vidas em Jogo. Se no primeiro filme todo o processo de questionamento da sociedade machista pelas protagonistas é punido pela morte com o salto final no abismo, em Vidas em Jogo o salto no vazio do protagonista é a quebra da ordem, o resultado da jornada do Viajante cujo processo de reforma íntima significa a quebra de toda uma ordem de papéis sociais. Ou ainda, a diferença de desfecho em um filme como Click (Click, 2006). Apesar do sabor temático gnóstico, apresenta um protagonista punido pela sua ambição materialista (workholic cujo objetivo é o de tornar-se sócio de uma empresa) e um final que restabelece a ordem familiar quebrada pelo pecado.