sexta-feira, novembro 14, 2025

O caos controlado das bolhas digitais no filme 'Bugonia'


O novo filme de Yorgos Lanthimos, “Bugonia” (2025), sobre teóricos da conspiração que sequestram uma CEO de uma multinacional farmacêutica acreditando que ela é uma alienígena, funciona como uma ilustração precisa do "efeito fliperama" da guerra híbrida. O filme demonstra como o ressentimento pessoal, alimentado por bolhas digitais, é transformado em um caos controlado que, paradoxalmente, serve para manter o status quo e desviar o foco da verdadeira classe dominante. Lanthimos vem assumindo uma espécie de misantropia esclarecida, como ficou claro nos filmes anteriores “Pobres Criaturas” e “Tipos de Gentileza”: somos criaturas pobres e miseráveis, mas temos a capacidade de sermos belos e tolos, assim como assassinos e terríveis.

Este Cinegnose vem há algum tempo escrevendo sobre o que denominamos como “efeito pinball” ou “efeito fliperama” dentro da teoria da Guerra Híbrida – como produzir o máximo de efeito político com o mínimo de esforço.

Tal como no clássico jogo das máquinas de pinball, uma das estratégias principais da guerra híbrida “apertar botões” de uma determinada sociedade por meio de provocações para obter a resposta esperada de seus alvos.

Se no jogo temos uma bolinha metal que é rebatida por “flippers” (alavancas) para bater em pinos e placas numa mesa inclinada, as bolinhas rebatidas tornam-se uma “câmara de eco” na guerra híbrida: principalmente nas bolhas digitais das redes sociais narrativas fabricadas transformam ressentimento pessoal em atos coletivos de violência. Levando a desconfiança generalizada sobre instituições e facilitando leituras apocalípticas da realidade.

Temos então um caos controlado ou engenharia do caos.

Pode-se dizer que a luta de classes (o conflito fundamental da sociedade, cujo movimento dialético potencialmente levaria a superação do status quo) foi substituída pela cismogênese: conflitos fragmentados e dispersos (conflitos étnicos, movimentos de protesto, exacerbação de rivalidades regionais etc.) cujo efeito é o oposto: ao contrário da superação dialética, o reforço do status quo pelo caos, violência e niilismo político.

Pense em narrativas conspiratórias nas redes sociais que agradaria a qualquer um que assistiu ao programa " Alienígenas do Passado" do History Channel e acreditou no prólogo de "Prometheus", de Ridley Scott. Como essas narrativas encontram pessoas alienadas, solitárias e com problemas familiares e de relacionamentos suficientes para gerar ressentimentos e ódio. O combustível necessário para turbinar qualquer tipo de crença ou ativismo político que pelo menos justifique para si mesmo as mágoas e desventuras pessoais.

O filme mais recente de Yorgos Lanthimos, Bugonia (2025) é uma sátira da nossa verdadeira era das conspirações: o filme acompanha os primos Teddy e Don, obcecados por teorias da conspiração na Internet, que sequestram Michelle Fuller, CEO de uma corporação farmacêutica, acreditando que ela seja uma alienígena infiltrada entre os humanos com um sinistro projeto. Que começa pelo extermínio das abelhas...



Lanthimos vem assumindo uma espécie de misantropia esclarecida, como ficou claro nos filmes anteriores Pobres Criaturas e Tipos de Gentileza: somos criaturas pobres e miseráveis, mas, como revelam os finais de Tipos de Gentileza e de Bugonia, temos a capacidade de sermos belos e tolos, assim como assassinos e terríveis.

Lanthimos trabalha na tradição de diretores como Stanley Kubrick e Oliver Stone, de "Assassinos por Natureza", mas Lanthimos opera com sua própria comicidade sombria.

Bugonia é uma experiência intensa e envolvente, em grande parte porque assume a forma de um duelo — tático, filosófico, brutal — entre dois personagens (a CEO sequestrada e os primos conspiratórios) que poderiam estar em uma competição intitulada "Quem é o Sociopata Mais Escandaloso e Espetacular?".

Bugonia é vagamente baseado no filme sul-coreano de 2003 Save the Green Planet! de Jang Joon-hwan.

Lanthimos não tem medo de trazer a política da nossa época para o âmago da questão: Teddy exala um odor de incel (ele se castra quimicamente e castra o primo para ficarem mais “ficados” na missão), destilando ódio contra as elites.

Mas o roteiro tem o cuidado de não caricaturar o personagem, sugerindo um luto que se transformou em profunda mágoa. As lentes grande-angulares inquietantes do diretor de fotografia Robbie Ryan contrastam a sordidez da casa de Teddy com a frieza do mundo corporativo de Michelle, duas faces da mesma moeda decadente.



No final, Bugonia mostra didaticamente a manutenção do status quo por esse efeito fliperama alavancado pela câmara de eco das bolhas digitais. Teddy e Doni projetam todo o seu ódio e ressentimento numa CEO, uma alta assalariada. Enquanto a classe dominante, a proprietária dos meios de produção (a multinacional farmacêutica) passa ilesa.

Lanthimos propõem uma simples ilustração de como os conflitos sociais estão se despolitizando com as narrativas caricaturais das teorias conspiratórias na Internet.

O Filme

Emma Stone interpreta Michelle Fuller, a CEO poderosa da Auxolith Biosciences. Assustadoramente felina, ela é uma verdadeira capitalista do desastre, daquelas que promove iniciativas de diversidade enquanto incentiva, de forma passivo-agressiva, os funcionários a trabalharem até mais tarde, "se precisarem".

Mas ela está prestes a ter um dia muito ruim. O excêntrico solitário e apicultor Teddy (Jesse Plemons) e seu irmão Don (Aidan Delbis), dois teóricos da conspiração que passam tempo demais na internet, bolam um plano maluco para sequestrar Michelle, raspar sua cabeça (Stone raspa a cabeça de verdade diante das câmeras) e trancá-la no porão. Seu crime? Ela é uma suspeita alienígena do planeta Andrômeda, enviada para destruir a raça humana — e matar as abelhas.

E por que raspar a cabeça dela? Porque é através dos fios longos do cabelo que ela se comunica com a nave mãe de Andrômeda, em órbita da Terra... Teddy aprendeu tudo isso na Internet!



 Estrela de vanguarda do novo mundo corporativo, presente nas capas da Time e da Fortune, Michelle é dotada de uma frieza implacável, uma loquacidade maníaca dedicada a explicar, justificar, comunicar e todas as outras coisas que uma executiva de terno e gravata do século XXI faz incessantemente para criar a imagem de "transparência". Mesmo que cada palavra sua sirva para obscurecer o fato de que a agenda da sua empresa não é o que parece.

Com sua arrogância de CEO sociopata, seus saltos Christian Louboutin de sola vermelha, sua casa espaçosa e seu intenso regime pessoal de treinamento em artes marciais, Michelle é uma personagem a que somos levados a querer desmascarar e desprezar. Já podemos imaginar que sua empresa está envolvida em atividades ilícitas.

Teddy busca algum tipo de justiça, e isso é em parte pessoal. Sua mãe, interpretada em flashbacks por Alicia Silverstone, está em coma, tudo como resultado do uso de um medicamento experimental defeituoso, criado para ajudar pessoas a se livrarem do vício em opioides. O medicamento foi lançado no mercado antes de ser devidamente testado, e adivinhe quem o fabricou? A Auxolith.

O plano deles, que executam com impressionante engenhosidade, consiste em ir até a casa de Michelle disfarçados com seus trajes de apicultores e agarrá-la na entrada da garagem. Depois que ela se defende com seus golpes de artes marciais, eles a perseguem e a subjugam perfurando-a com uma seringa cheia de sedativos; em seguida, a levam para a casa e a acorrentam no porão. 



Apesar da fúria que sente pelo que aconteceu com sua mãe, Teddy também é um esquerdista niilista, adepto de teorias da conspiração ecoterroristas, um jovem que absorveu todas as críticas ao capitalismo e denúncias da cultura político-corporativa existentes.

Ele é um lunático? Parece que sim, embora seja um lunático altamente inteligente e esclarecido. Muito do que ele diz sobre a nova cultura corporativa autoritária global — a nova desordem mundial — é verdade. No entanto, ele também parece ser um extremista com problemas mentais. Ele sequestrou Michelle porque está convencido de que ela é uma alienígena.

Feridas reais – Alerta de Spoilers à frente 

O filme funciona como espelho para problemas centrais do nosso tempo: a industrialização da credibilidade (algoritmos que amplificam narrativas extremistas), a transformação das crenças em identidades políticas e a erosão de confiança nas instituições científicas e midiáticas.

O final irônico que literaliza a teoria da conspiração (a figura alienígena que, afinal, existe), força o espectador a enfrentar a questão perigosa: mesmo que uma crença seja verdadeira, os mecanismos que a produziram — radicalização online, isolamento informacional, ressentimento econômico — continuam tóxicos e podem levar a desfechos catastróficos.

Bugonia é ao mesmo tempo condenação e retrato empático: condena a circulação indiscriminada de narrativas mortíferas e mostra como feridas reais (traumas causados por corporações, perdas pessoais) alimentam essas narrativas. Como a engenharia do caos da guerra híbrida torna feridas pessoais reais em combustível da credibilidade por caricaturas de teorias conspiratórias.

Lanthimos não oferece consolo — entrega uma fábula amarga sobre um século em que a informação virou arma e a crença substituiu prova — e, ao fazê-lo, transforma o filme como um dos títulos mais pertinentes do debate cultural contemporâneo.


 

Ficha Técnica

Título:  Bugonia

Direção: Yorgos Lanthimos

Roteiro: Will Tracy, Jang Joon-hwan

Elenco: Emma Stone, Jesse Plemons, Aidan Delbis

Produção: Focus Features

Distribuição: Universal Pictures

Ano: 2025

País: EUA

 

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