sábado, fevereiro 13, 2010

Fonte da Vida surpreende ao utilizar uma simbologia Gnóstica e Alquímica

Fonte da Vida (The Fountain, 2006) surpreende ao apresentar a jornada de elevação espiritual com simbolismos do Gnosticismo Hermético e Alquimia, diferenciando-se dos clichês dos filmes de espiritualismo New Age e de auto-ajuda.

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Não conhecia esse filme. Zapeando a TV de madrugada, minha esposa descobriu o filme “A Fonte da Vida” em um desses “corujões”. Sabendo das minhas pesquisas em torno de cinema e religião, ela falou: “eu acho que esse filme é gnóstico!”. Confesso que assisti ao filme com um pé atrás: achava que um filme com esse título só poderia ser mais um filme New Age sobre espiritualismo, autoconhecimento, auto-ajuda... Mas acabei sendo surpreendido. Darren Aronofsky, diretor e autor da estória, trabalha com profundos simbolismos gnósticos e alquímicos, tornando um filme diferenciado em relação à onda atual de filmes “espiritualistas”.

O filme se inicia com uma citação da bíblia, uma epígrafe relativa à árvore do conhecimento e à árvore da vida.

O enredo se desenvolve em três épocas, sem definição nítida de limites entre realidade e ficção. Na Espanha do século XVI, o conquistador Tomas Creo parte para o Novo Mundo em busca da lendária árvore da vida que salvará a a rainha Isabel da fúria do Inquisidor da Igreja que vê heresia nessa busca.

Nos tempos atuais a mulher do pesquisador Tommy Creo (Izzy) está morrendo de câncer, mas ele procura desesperadamente a cura. Sua esposa, fascinada pela civilização maia, está escrevendo um manuscrito que conta a história de Tomas Creo e da Rainha Isabel.

Uma terceira história une as duas primeiras: no século XXVI, o astronauta Tom finalmente consegue a resposta para as questões fundamentais da existência.
O astronauta realiza durante sua jornada diversas posturas de meditação associadas às práticas de Yoga e pratica Tai Chi Chuan.


Toda a jornada espiritual do protagonista é estimulada é dirigida pela rainha Isabel e pela esposa Izzy de uma forma paradoxal. Se no século XVI a rainha da Espanha comete heresia contra a Igreja ao enviar seu “conquistador” para a América Central para buscar a mítica árvore da fonte da vida para alcançar a imortalidade (para o Inquisidor devemos morrer para nos libertarmos dos grilhões do corpo), nos tempos atuais, ao contrário, Izzy tenta convencer se marido Tommy de que a fonte da vida é a morte, que devemos aceitá-la em paz para conseguirmos a ascensão espiritual. Inconformado, e usando todos os recursos da Ciência, Tommy acredita que a morte é uma doença, precisa ser “curada”.

Esse paradoxo está relacionado com um profundo simbolismo que o filme trabalha: o “casamento alquímico”. Tanto a Rainha Isabel como Izzy revelam a Tomas/Tommy que no final (ao encontrar a árvore da vida ou após a morte) se unirão em um casamento eterno.

Matéria e espírito, indivíduo e totalidade não são colocados no filme como opostos ou em um nível hierárquico. No final, ambos se casam, a matéria é redimida e não simplesmente liquidada. O processo de evolução espiritual não é um simples processo de descarte do corpo em busca da Totalidade, mas de elevação no corpo, a partir de todas as suas experiências sensoriais.



Casamento Alquímico


O que é o simbolismo do “casamento alquímico”? Alquimistas medievais e renascentistas basearam suas idéias na tradição gnóstica, porém com uma diferença: enquanto os antigos gnósticos queriam transcender a matéria os alquimistas queriam redimi-la. O processo alquímico clássico envolve a dissolução de elementos até o caos para, por meio desse estado, separar massas indiferenciadas em espírito e matéria, unindo essas oposições em uma espécie de casamento alquímico – do qual surge a pedra filosofal. Essa atividade alquímica reencenaria a atividade de Deus que separou o caos em elementos distintos para, mais tarde, reunificar essas antinomias na Revelação. Estes aspectos simbolizariam o processo através do qual o adepto consegue refinar a sua alma.

Temos aqui os passos para a transformação psicológica por meio da narrativa mítica da transformação por meio de uma jornada cíclica: Plenitude gnóstica, Queda e Retorno; Matéria Primal, a Divisão e o Casamento. Não há transcendência sem a redenção da matéria.

Magistralmente, “Fonte da Vida” desenvolve esses aspectos. E, mais do que isso, o filme trabalha o profundo significado do personagem gnóstico de Sophia. Contraponde-se ao conhecimento da Religião e da Ciência (que estruturam o cosmos material que aprisiona o protagonista) Sophia/Rainha Isabel/Izzy oferece um outro conhecimento: a gnose. O protagonista aprenderá que a matéria/corpo não deve ser negada ou descartada (como quer a Religião – corpo como grilhão – ou como quer a Ciência – corpo que necessita de uma cura para escapar da morte). A verdadeira elevação espiritual está no aprendizado com o corpo e a matéria, tanto no caos, prazer e morte. A elevação através de experiências que somente a existencial material pode proporcionar.

Dessa forma “Fonte da Vida” demonstra ser um filme surpreendente. Embora trabalhe com muitos elementos iconográficos clichês dos filmes que pretendem ser espiritualistas (nebulosas, pessoas em posição de lótus, elementos flutuando, cabeças raspadas, trajes de monges e posturas de Tai-Chi-Chuan), o fnilme vai muito além da dualidade corpo/matéria, indivíduo/cosmos, parte/todo. Aliás, coerente com o ponto de vista gnóstico, o moneto final do casamento alquímico, as núpcias, é representado no filme como não sendo nesse cosmos ou universo conhecido. Vai além da Totalidade da Religião e da Ciência, para além do nosso cosmos que aprisiona o protagonista.



O Princípio da Correspondência


O filme apresenta um curioso recurso fílmico que, claramente, constitui-se num simbolismo alquímico que, afinal, parece estruturar toda a narrativa. A câmera parte de um close em um detalhe para avançar e, depois, inverter e seguir em frente, mostrando que o primeiro detalhe, aparentemente correto, estava de ponta-cabeça.

A narrativa faz uma simbólica referência a um dos princípios do Gnosticismo Hermético de Hermes Trimegisto: “O que está em cima é como está embaixo, e o que está em baixo é como está em cima”. É o princípio da Correspondência aplicado tanto na Astronomia na antiguidade como na Alquimia. Na verdade, um princípio hermético influenciado pela metafísica platônica (para Platão, o mundo percebido pelos sentidos é uma reprodução distorcida das formas puras existentes no mundo das Idéias).

Hermes Trimesgisto, “sábio três vezes”, foi quem primeiro transmitiu o conhecimento divino e celeste por escrito: Filosofia, Química e Cabala. Alguns afirmam que ele teria sido faraó egípcio. Outros que ele teria escrito seus ensinamentos em hebraico, o que faz com que se suponha que fosse hebreu.

Viveu durante a época de Moisés, e sendo faraó, foi iniciado nos mistérios do sacerdócio, preparado para exercer as funções de rei. Também Hermes é associado à Thot, deus egípcio que era representado por um íbis. Thot simbolizava a escrita, o dom da fala e tinha também o dom de vivificar, pois teria curado o olho do deus Horus.

Ficha Técnica

  • titulo original: (The Fountain)
  • lançamento: 2006 (EUA)
  • direção: Darren Aronofsky
  • Roteiro: Darren Aronofsky e Ari Handel
  • Atores: Hugh Jackman , Rachel Weisz , Marcello Bezina , Alexander Bisping , Ellen Burstyn
  • titulo original: (The Fountain)
  • duração: 96 min
  • Estúdio:Warner Bros. Pictures / Protozoa Pictures / New Regency Pictures / Epsilon Motion Pictures
  • Distribuidora:Warner Bros. / Fox Film do Brasil

    Trailer do filme Fonte da Vida

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Grupo de Pesquisas sobre Cinema e Audiovisual realiza seu primeiro encontro



O Grupo de Pesquisas sobre Religião e Sagrado no Cinema e Audiovisual, da Universidade Anhembi Morumbi, realizou seu primeiro encontro que definiu as linhas de pesquisa, a sistemática de trabalhos e forma de publicação dos resultados das pesquisas




Realizou-se no dia 06/02 a primeira reunião do Grupo de Pesquisas formado na Universidade Anhembi Morumbi sobre “Religião e o Sagrado no Cinema e Audiovisual”. Contou com a participação do Prof. Dr. Luiz Vadico do Programa de Mestrado da Universidade (expondo seu tema sobre o desenvolvimento dos filmes sobre Cristo e o desenvolvimento do conceito de “filme religioso”, da Profa. Ilca Moya da UAM (apresentando sua proposta de estudos sobre as relações entre o Sagrado e o Sexo a partir das idéias de Bataille),da mestranda da UAM Karyna Berenger (expondo sua proposta de aprofundar as relações da religião e do sagrado na obra cinematográfica de Andrei Tarkovsk), do aluno do curso de Rádio e TV da UAM Clever Cardoso Teixeira de Oliveira (que expôs a sua proposta sobre uma ontologia do cinema a partir de Gilles Deleuze e, também, uma discussão teológica a partir de Santo Agostinho e a relação com o cinema de Win Wenders – principalmente “Asas do Desejo”), Marcos Aleksander Brandão (apresentando sua proposta a partir da sua dissertação defendida no mestrado da UAM – “Transtextualidade Remixada em Moulin Rouge” – com a discussão da aceleração das imagens no cinema e o sagrado e o profano, e Wilson Roberto V. Ferreira (expondo as pesquisas em torno do tema Gnosticismo e Cinema e suas relações com a Teologia Negativa em T. Adorno).

Até o final do ano, o grupo de pesquisa pretende reunir o resultado das pesquisas individuais dos componentes em uma coletânea a ser publicada.

Como proposta de sistemática de trabalho, a cada encontro mensal ocorrerá a apresentação de dois seminários com os participantes do Grupo. Para o próximo encontro, dia 06/03, Clever de Oliveira e Wilson Ferreira farão as primeiras exposições e discussões dentro do programa de seminários.

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domingo, fevereiro 07, 2010

O Gnosticismo pop em Philip K. Dick

Reproduzimos nesse espaço o texto da postagem de Larissa Douglass, professora e escritora da Universidade de Oxford, publicado no site de estudos e pesquisa inglês "Intute”. O texto desenvolve as conexões entre o escritor de ficção-científica Philip K. Dick com o gnosticismo e o cinema. Esse texto é de 2006, quando foi lançado o filme A Scanner Darkly (no Brasil, O Homem Duplo). Podemos localizar na obra de K. Dick a recorrência de muitos temas gnósticos: o absurdo (malícia, crueldade, perversidade) do mundo; o desejo de fugir (através do amor, da morte, etc.) da infernal permanência terrestre; a sensação de ser um estranho entre semelhantes; a viscosa presença do mal; a redenção pelo pecado; o tempo como o resultado de um cosmos defeituoso que confina o espírito, etc.

Philip K. Dick e Gonosticismo
Por Larissa Douglass, Oxford University


A Scanner Darkly, recente filme baseado na sombria visão de futuro de Philip K. Dick, aborda a discrepância entre a experiênciasubjetiva ou pessoal e a experiência objetiva. Esta última forma de experiência seria fornecida por meio de câmeras que observam processos.
Essa discrepância é uma característica de uma série de histórias e romances de Philip K. Dick, jogando com a noção de que os meios que utilizamos para aprimorar a compreensão da realidade também podem minar e obscurecê-la. Essa confusa realidade subjetiva é, então, associada a um exterior, uma perspectiva objetiva (por meio de scanners: um espelho, uma câmera ou outro meio de vigilância ou dispositivo de gravação) que relaciona-se com a “verdadeira” realidade. O choque resultante aguarda o espectador quando é revelada a discrepância existente entre a narrativa do protagonista e a que aparentemente é a real. O uso de câmeras como um “terceiro olho” tem sido cada vez mais empregado em filmes recentes para revelar uma desconexão entre a percepção dramática dos personagens e acontecimentos reais. Em última análise, que a perspectiva objetiva deve ser colocada em dúvida.


Philip K. Dick, autor

Embora a narrativa subjetiva de Scanner Darkly e em outro romance, The Three Stigmata of Palmer Eldricht, tenha origem no vício por drogas, em outras histórias Dick oferece cifras alternadas num jogo simultâneo de expansão e distorção da percepção. Quando apressentadas em conflito com uma narrativa objetiva, força a consciência humana a níveis cada vez mais altos de vigília do espaço e tempo. Por exemplo, Dick utilizou:

• Robôs em Do Androids Dream of Eletric Sheep? (que deu origem ao filme Blade Runner) para comparar a relatividade humana sobre o “real” e “falsos” seres humanos;
• Colonização de outros planetas, isolamento e doença terminal na história “Chains of Air, Web of Aether”;
• Precognição confundida com autismo ou esquizofrenia em “Martian Time-Slip e a história “A World of Talent”;
• Sono criogênico de humanos em máquinas sencientes e espaçonaves em “Divine Invasion” e na estória “I Hope I Shall Arrive Soon”.

Gnosticismo
Não importa o expediente utilizado, essas estórias, especialmente a última de Philip K. Dick, “Valis”, inspiram-se em no moderno renascimento da antiga heresia cristã do Gnosticismo. Ela pode ser definida mais simplesmente pela Catholic Encyclopedia como “a doutrina da salvação através do conhecimento”. A única verdadeira religião gnóstica que sobreviveu diretamente da Antiguidade tardia é a seita Mandean no Iraque (ou madianitas Mandaeism). Mais ligações tênues são rastreadas na Idade Média, Renascimento e na história do Iluminismo. Um sentido de continuidade histórica foi reforçada pela descoberta arqueológica do século em torno de 1945 de cerca de quatro textos gnósticos em Nag-Hammadi, no Egito.
Com esse pano de fundo, o moderno gnosticismo popular refere-se,a grosso modo, as idéias que incluem:

• Alienação espiritual no mundo material
• Um conhecimento especial, “gnosis”, que pode despertar os seres humanos do estado atual, a falta de consciência semelhante ao sono;
• Uma separação entre os aspectos divinos da existência espiritual e a realidade material, caracterizado por qualidades femininas e masculinas;
• E uma hierarquia de expansão do entendimento através desse conhecimento especial, que pode finalmente curar a cisão entre divindades masculinas e femininas.
Literatura Comparada e Lingüística

Da obra de Dick se originou um mix de novelas, pulp fiction, música popular, vídeo games, animação e filmes cujas referências baseiam-se em muitas idéias gnósticas. Os filmes mais conhecidos incluem a trilogia de Matrix, Dark City (Cidade das Sombras), Vanilla Sky e eXinsteZ e novelas que incluem O Código Da Vinci de Dan Brown. Autores como Umberto Eco e Jorge Luis Borges trouxeram este tema para as fronteiras da literatura comparada e lingüística.
Gnosticismo (Variantes modernas)

Tais exemplos contemporâneos têm raízes culturais no século XIX e no fin-de-siècle, com os aficionados mais notáveis como o psicólogo Carl Jung e o ocultista Aleister Crowley. Crowley se refere ao Gnosticismo, Alquimia, Maçonaria e Cabala para formar suas teorias ocultas, que por sua vez influenciaram L. Ron Hubbard, o fundador da Igreja da Cientologia. Mais provocativo, o cientista político Eric Voegelin, em sua obra “Science, Politics and Gnosticism” (1958), sugeriu que as ideologias do comunismo e do nazismo eram gnósticas, com efeito, heresias cristãs. O escritor Tobias Churton alegou que as idéias gnósticas foram sendo reveladas no campo da física quântica. E com focos sobre o "real" e o "artificial", e os do sexo masculino e feminino, o gnosticismo pode ter uma influência sobre as teorias pós-modernas e feministas. Assim, o gnosticismo demonstra ser uma gama sincrética de "espiritismo", Nova Era ",de teorias de conspiração e investigação séria. Tais idéias manifestando-se em tantos campos diferentes sugere que a era moderna tem testemunhado um ressurgimento dessa heresia na cultura ocidental e política.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

"Somos Todos Um": o totalitarismo por trás do humanismo New Age

Somos Todos Um (One: The Movie, 2005) sob a aparência humanista do Espiritualismo, New Age e Auto-Conhecimento perpetua a liquidação do indivíduo lá onde pretende acabar com todos os dualismos.
“Se o sentido da vida existisse não estaríamos formulando essa pergunta”(T. Adorno)
“Às 6:45 A.M. em 13 de Abril de 2002 um pai de meia idade de três filhos do centro-oeste dos Estados Unidos desperta de um sono profundo com uma estranha idéia de fazer um filme independente explorando a questão do sentido da vida”. Assim inicia o documentário “Somos Todos Um”. Com o apoio da esposa Diane e a e a participação de alguns amigos, Ward Powers organizou um questionário com "as maiores perguntas relativas à vida, a todo tipo de pessoas" (perguntas como “para onde vamos quando morremos?”, Por que estamos aqui? etc.) com o grandioso objetivo de demonstrar a "unicidade da humanidade".

O que começou como brincadeira logo ganhou força, com a participação de líderes religiosos, arquitetos sociais, místicos, monges, ateus, nobres e filósofos, representando uma gama completa de tradições espirituais, num amálgama de opiniões que se fundiam às do povo nas ruas. Todos receberam 20 perguntas sobre questões profundas como o sentido da vida, o conceito de Deus, o motivo do sofrimento e a justificativa da guerra.

A questão que inicia e sustenta todo o documentário (qual o sentido da vida) lembra a fala de Theodor Adorno: “Se o sentido da vida existisse não estaríamos formulando essa pergunta”. Essa resposta de Adorno no seu livro Dialética Negativa é mais do que uma afirmação irônica ou retórica. Há um sério pressuposto crítico nessa afirmação: a imanência desse discurso que pretende se perguntar sobre o sentido da existência. Isto é, essa pergunta não é “desinteressada” ou neutra, mas parte de uma ideologia historicamente determinada. A pergunta já contém em si a resposta que procura.

A questão sobre o sentido da vida parte do pressuposto de todos os discursos totalizantes e totalitários: quem formula a questão ignora o sentido da vida. Sua ignorância decorre do fato de o emissor ser um simples indivíduo, sendo que a verdade lhe escapa, pois está no TODO. Desgraçadamente pelo fato do indivíduo ser uma pequena parte, nunca apreenderá a verdade pois ela está além do particular, está na totalidade. Portanto, essa questão reproduz as velhas dualidades da Teologia, matriz tanto da Religião quando da Ciência: parte/todo, particular/universal, matéria/espírito e assim por diante.

Se a Verdade está no Todo (Absoluto, Espírito, Infinito etc.) o indivíduo só pode ser ignorante por não conseguir apreender as conexões em torno dele. O documentário “Somos Todos Um” bate exaustivamente nessa mesma tecla: a experiência individual é a fonte dos erros e conflitos (medo, egoísmo, materialismo) que impedem a paz mundial e a revelação da Unidade. O pressuposto teológico é que essa insuficiência individual decorre ou pela imersão do espírito na matéria (pecado) ou pela ignorância das conexões do todo, somente esclarecidas por um discurso “técnico” (espiritualista ou científico).

O desprezo pelo indivíduo e o potencial perigosamente totalitário pode ser percebido em frases do documentário como essa: “Qual o sentido da vida? Você começa a lembrar e começa a ver...as nebulosas do pensamento, moléculas e átomos nascendo...essa teia dourada da vida. É silencioso, é eterno, é cintilante. Você e eu não passamos de uma tapeçaria de sonhos.” 

Nessas afirmações parece haver o esforço de construir um novo paradigma de união entre Religião e Ciência que acabaria com todos os dualismos (afinal, o discurso utiliza termos científicos como “nebulosas”, “moléculas” e “átomos” ao lado de termos místicos como “eterno”, “cintilante”), mas o problema é falso. Ciência e Religião secretamente já estão unidas há muito tempo a partir da mesma matriz teológica que liquida a experiência individual como fonte de erro, insuficiência ou pecado.
O momento de verdade

Mas, parafraseando Adorno, em toda ideologia há um momento de verdade. Essa angústia pelo sentido da vida é real. Se a pergunta é formulada é porque a percepção de um sentido desapareceu ou nunca existiu. Tal angústia é um sintoma da dor e do sofrimento que essa totalidade (social, histórica ou espiritual) impõe ao indivíduo, e não o contrário – pelo anseio por uma transcendência à totalidade.

O mal-estar do indivíduo nesse mundo é desprezado por esse discurso espiritualista (na verdade uma teologia secularizada) como medos que limitam o potencial espiritual. É a mensagem de todos os vídeos de auto-ajuda ou espiritualistas: liberte-se de si mesmo e venha para o TODO. Dessa forma é descrito como se inicia uma jornada espiritual pelo padre Thomas Keating, líder do Movimento Interdenominacional para revitalizar a prática contemplativa cristã:
“O início da jornada espiritual é o reconhecimento...não apenas a informação, mas a real convicção interior..de que há uma força superior, ou Deus. Ou, para facilitar ao máximo para todos...de que há um Outro, com "O" maiúsculo. Segundo passo: tentar se tornar o Outro. Ainda com "O" maiúsculo. E finalmente, o reconhecimento de que não há Outro. Você e o Outro são um só. Sempre foram. Sempre serão.Você simplesmente acha que não é.”

À dor e sofrimento concretos nesse mundo, esse discurso oferece a racionalização e o desprezo pela percepção individual: você com sua dor não existem! Venha para o Todo e esqueça seus problemas mesquinhos!

Porém esse todo não é algo tão rarefeito ou metafísico. Tem uma identidade bem concreta: é o meio corporativo por trás da Globalização política e financeira, os principais consumidores interessados por esses tipos de vídeo, para aplicar em estratégias motivacionais em grupos de dirigentes a vendas. Tal como Deepak Chopra (entrevistado em “Somos Todos Um”): de místico e filósofo a um dos principais palestrantes motivacionais em organizações nos EUA.

Somente uma Dialética ou Teologia negativas podem se contrapor a essa teologia secularizada: fazer justiça à verdade da dor e sofrimento do indivíduo ao conseguir inverter o sentido da transcendência – não é do todo para a parte. Ao contrário, é a carne, a parte, o singular que aspiram à transcendência. Ou, como conclui emblematicamente Adorno, “ O que há de doloroso na dialética é a dor em relação a este mundo, elevada ao âmbito do conceito"

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segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Duncan Jones escreve e dirige filme com atmosfera gnóstica

Escrito e dirigido por Duncan Jones, "Lunar" constitui-se num dos poucos filmes europeus com temática inspirada na mitologia do Gnosticismo.

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O diretor Duncan Jones tem motivos para dirigir um filme que respira uma atmosfera gnóstica. Seu pai, o artista multimídia David Bowie, tem sua obra fortemente assentada nos referenciais míticos do Gnosticismo, como demonstra o artigo de Peter-R. Koenig “The Laughing Gnostic: David Bowie and the Occult”

A estória narrada em "Lunar" lembra, em certos aspectos, o filme O Pagamento (Paychek, 2003) ao lidar com as questões da identidade, memória e a corrupção corporativa.

Sam Bell (Sam Rockwell) tem um contrato de três anos de trabalhos para a Lunar Industries Ltd. Por toda a duração do contrato, ele é o único empregado na estação lunar. Sua responsabilidade principal é a colheita e, periodicamente,o envio para a Terra de foguetes com remessas de hélio-3, o combustível limpo e abundante usado na Terra. Por não haver mais comunicação direta com a Terra por problemas técnicos com um satélite, a única interação em tempo real passa a ser com Gerty, o computador inteligente, cuja função é atender às suas necessidades do dia a dia. Tudo o que ele quer é retornar à Terra e à sua esposa Tess e sua jovem filha Eva, que nasceu pouco antes de sua partida para este trabalho. Faltando duas semanas para retornar, envolve-se em um acidente com uma das colheitadeiras mecânicas e fica inconsciente. Acorda na enfermaria sem saber como chegou lá. Após sua recuperação, contraria as ordens de Gerty e sai da nave para consertar a colheitadeira danificada onde faz uma descoberta inesperada: encontra no veículo acidentado quem, supostamente, seria seu clone. Por isso começa a duvidar de sua sanidade mental e da sua verdadeira identidade. Qual é o verdadeiro Sam Bell? E se ambos forem clones, onde está o Sam original. Qual o envolvimento dos interesses corporativos da Lunar Industries LTD nisso tudo?

Embora não aborde temas religiosos ou metafísicos, a atmosfera de um filme gnóstico está lá: a solidez a da realidade e das memórias aos poucas vai se diluindo ao ponto do protagonista não conseguir mais distinguir o real das projeções psíquicas; o protagonista que encarna o personagem gnóstico do “detetive” (a solução do enigma conduz ao questionamento radical de si mesmo, da própria identidade); a perda da memória e, simultaneamente, o roubo das memórias por um Demiurgo (a Lunar Industries Ltd) para a manipulação ao seu bel prazer e a paranóia crescente do protagonista como o estado alterado de consciência que rompe com a regularidade e constância que o computador Gerty (sempre com um Smile no seu monitor) tenta manter na base lunar (à pergunta que ambos fazem ao computador sobre quem é, afinal, o clone, Gerty responde inabalável: alguém está com fome?).

O clima de conspiração e paranóia predomina com a presença do logo e do nome da empresa Lunar Industries Ltd em todos os detalhes da base lunar. Mas é justamente aí que o filme se mostra incompleto: este clima poderia ser melhor desenvolvido por meio de uma narrativa ambígua e irônica, que aprofundasse a incerteza do protagonista e do próprio espectador - será que Sam dialoga com um clone ou com um alter-ego criado por alucinações de alguém que está há três anos solitário numa base no lado escuro da Lua? O filme até ensaia criar essa incerteza, mas desiste e retorna a uma narrativa convencional.

Apesar da narrativa convencional, os personagens e temas se inserem no paradigma dos filmes gnósticos: O Demiurgo representado pela corporação Lunar Industries Ltd., o Arconte o computador Gerty, Sophia a esposa Tess (ela é o elan para Sam lutar contra o Demiurgo e desmascarar a trama corporativa).

Ficha Técnica

Diretor: Duncan Jones
Elenco: Sam Rockwell, Kevin Spacey, Dominique McElligott, Rosie Shaw, Adrienne Shaw, Kaya Scodelario, Malcolm Stewart, Robin Chalk.
Produção: Stuart Fenegan, Trudie Styler
Roteiro: Nathan Parker, Duncan Jones
Fotografia: Gary Shaw
Trilha Sonora: Clint Mansell
Duração: 97 min.
Ano: 2009
País: Reino Unido
Gênero: Ficção Científica
Cor: Colorido
Distribuidora: Sony Pictures Home Entertainment
Estúdio: Liberty Films UK


Trailer do filme "Lunar"



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Um "Homem Sério" perdido num mundo aparentemente sem Deus

O que acontece quando Ciência e Religião falham como instrumentos de explicação ou conforto para um homem comum imerso em uma sequência de desgraças que peversamente se sincronizam? Onde falham a Ciência e a Religião ao tentar dar conta da presença do Mal no cotidiano? Esses são os temas centrais do intrigante e provocativo mais recente filme dos irmãos Coen “Um Homem Sério” cuja estréia nos cinemas brasileiros está prevista para este mês.

O protagonista do filme, Larry Gopnik, é um homem decente. Mas ele é também um homem incerto. Ele deseja ser "um homem sério", mas parece incapaz de encontrar a certeza espiritual necessária. Quanto mais ele procura esta certeza, mais evasivo ela se torna, criando uma série de situações tragicômicas.

Larry é um professor de Física que depois de receber um suborno de um aluno insatisfeito pela reprovação nas provas descobre que sua esposa infeliz faz planos de deixá-lo. Sua casa está sobrecarregada pela presença do irmão de Larry, Arthur, que, quando não escreve espécies de algoritmos em um caderno, laboriosamente drena um quisto sebáceo de seu pescoço. Os dois filhos de Gopnik são auto-absorvidos e sem inspiração, para dizer o mínimo, e Larry está sofrendo crescentes despesas por conta dos adolescentes. A saúde e carreira de Larry estão em perigo. E, no cúmulo da injustiça, Larry se vê obrigado a pagar as despesas do funeral do amante da sua esposa, falecido num acidente automobilístico.

É a história do homem moderno a procura de sentido em um universo indiferente, aparentemente ausente de Deus.

A miséria de Larry é dividida em três capítulos que correspondem às três tentativas tragicômicas de encontros com rabinos para buscar um significado divino para tudo que lhe acontece. Mas a Larry é sistematicamente negado o acesso final aos contos sem sentido que os rabinos narram como uma metáfora da inacessibilidade de uma experiência religiosa esclarecedora.

Ao mesmo tempo a Ciência de Larry (Física e Matemática) é paradoxal e frustrante. Larry informa aos alunos, após fazer em um enorme quadro negro a longa demonstração matemática do Princípio da Incerteza de Heisenberg, que a única coisa que podemos ter certeza é a incerteza.

Dybuk e o Mal


O filme faz um paralelo entre o prólogo que abre o filme (a história de um homem judeu passada a cem anos atrás que convida inadvertidamente o Mal – um Dybuk ou demônio - para entrar na sua casa) e as desventuras de Larry que por estar imerso em suas elocubrações matemáticas não consegue dar conta do progressivo desarranjo que invade sua vida (“mas eu não fiz nada”, tenta sempre justificar Larry).

Tanto a Ciência como a Religião partem de uma mesma matriz Teológica: a certeza de que a Totalidade (seja divina ou científica) é perfeita e de que o homem é a parte mais fraca, ou pelo pecado ou pela ignorância. O Mal, portanto, só pode estar presente no homem.

O que o filme dos irmãos Coen nos apresenta através de um humor negro é a falsidade das perguntas sobre o sentido da vida, o propósito ou o sentido para o cotidiano. Quanto mais o protagonista busca uma totalidade que dê sentido ao particular, mais ele se depara com a presença do Mal, isto é, com o imperfeito, o precário, o inefável, aquilo que escapa a qualquer racionalidade ou fé.

Imperfeição marcada simbolicamente na sequência em que, após uma longa demonstração matemática em um imenso quadro negro, Larry conclui que a única certeza de que dispomos é a de que tudo é incerto (a confirmação por meio do Princípio da Incerteza de Heisenberg da velha suspeita do Gnosticismo de que o Universo é corrompido nas suas origens). Ou as evasivas tragicômicas dos rabinos através de contos sem desfechos, como a analogia que o rabino Junior faz da vida com o estacionamento lotado de carros.

O protagonista não consegue contrapor a essa Teologia Positiva uma" "negatividade": procurar não a Totalidade, mas, ao contrário, encontrar a iluminação ou a experiência do Sagrado no particular, no precário, no efêmero, no cotidiano. O Sagrado não está numa suposta conexão com uma Totalidade que, repentinamente, descobriríamos em um momento místico ou de fé. A aspiração pelo Absoluto talvez encontra-se nas experiências mais banais, rotineiras e enfadonhas, como na sequência em que Larry sobe no telhado para consertar a antena (aliás, imagem emblemática do próprio pôster promocional do filme). Do alto do telhado, o protagonista, em contraste com um profundo céu azul, se detém por alguns momentos e contempla a banal beleza da vizinhança com seus prosaicos personagens e extensas áreas de grama em um típico subúrbio norte-americano. Ele parece se deter diante de uma beleza que nunca tinha dado conta. Mas uma beleza não conformista: o belo que de tão pequeno, mísero e precário somente pode aspirar a algo totalmente outro, a transcendência. Não é a Totalidade que detém o Absoluto, mas o singular que aspira ao transcendente.

Por isso a excelente epígrafe que abre o filme escrita a centenas de anos pelo rabino medieval Rashi: “Receba com simplicidade tudo o que acontecer com você”.

Ficha Técnica

Um Homem Sério (A Serious Man)
Diretor: Joel Coen, Ethan Coen
Elenco: Michael Stuhlbarg, Sari Lennick, Richard Kind, Fred Melamed, Aaron Wolff, Jessica McManus, Adam Arkin, Simon Helberg, Adam Arkin, George Wyner, Katherine Borowitz.
Produção: Joel Coen, Ethan Coen
Roteiro: Joel Coen, Ethan Coen
Fotografia: Roger Deakins
Trilha Sonora: Carter Burwell
Duração: 105 min.
Ano: 2009
País: EUA

Trailer do filme "Um Homem Sério"

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quarta-feira, janeiro 27, 2010

Código Da Vinci é Gnóstico? Algumas confusões conceituais


Muito se fala sobre o Gnosticismo em O Código Da Vinci (The Da Vinci Code, 2006) por apresentar uma versão heterodoxa ou mística de Jesus Cristo, supostamente próxima dos evangelhos apócrifos do gnosticismo. Mas certamente o seu “gnosticismo” é menos pelo conteúdo religioso e muito mais pelos estereótipos pop em torno do tema (sociedades secretas, teorias conspiratórias etc.).

Rotular o filme como “gnóstico” ou “religioso” revela uma generalização conceitual existente entre o filme gnóstico, filme religioso ou sobre o sagrado e filme sobre religião.

Filmes sobre religião seriam aqueles cujo tema religiosidade, religião, organizações religiosas, igrejas etc. são meros pretextos ou pano de fundo para o exercício dos clichês ou convenções de um determinado gênero (policial, thriller, suspense, histórico etc.). O Código Da Vinci se enquadraria facilmente nessa categoria ao fazer um pastiche de elementos históricos e religiosos, reais e ficcionais, tudo mesclado numa narrativa clássica hollywoodiana (que possibilita a identificação com os protagonistas e a forte esquematização entre bem/mal, danação/salvação). Filmes sobre religião não têm a menor pretensão em representar experiência do sagrado, iluminação ou transcendência que envolva seja o protagonista ou seja o espectador. Por possuir uma narrativa sem ambigüidades e fortemente esquemática, não permite nenhuma tensão entre forma e conteúdo que permitiria vazios ou interstícios através dos quais poderia surgir uma experiência de transcendência ou transformação.

Já o filme religioso ou sobre o sagrado já trás o problema do conteúdo e da forma. Por procurar formas imagéticas que procurem se aproximar das experiências de transcendência, seja mística ou religiosa, já experimentam o princípio da tensão entre forma e conteúdo, como coloca Lemos Filho:


“O filme religioso traz problema de conteúdo e de forma. Lumiére desejou simplesmente a realidade sem nenhuma preocupação formal. Meliées, ao contrário, preocupou-se demais com as estruturas formais. De então para cá, o filme religioso tem se inclinado ora para um ora para outro . Determinados elementos formais podem modificar o sentido do conteúdo religioso. Às vezes, a qualidade da obra sob o ponto de vista religioso depende muito menos de seu conteúdo estrito do que de sua forma. A correlação entre valores estéticos e valores religiosos é de fundamental importância para se analisar um filme e encontrar nele a evocação do sagrado”. (LEMOS FILHO, Arnaldo Cinema e o sagrado. IN Comunicarte, v.7/8, n.13/14, p. 6-20. 1990).



É o exemplo de um filme como Diário de um Padre (Journal d’um Cure de Campagne, 1951) de Robert Bresson que nos fala sobre experiências religiosas por meio de um viés realista que imprime banalidade e sensualidade bruta aos objetos e rotinas para revelar, através deles, inesperadas experiências de transcendência (“não importa, tudo é graça”, afirma o protagonista no final). Podemos denominar essa teoria cinematográfica como “realismo espiritual”.

Outra corrente é aquela que podemos denominar como de “formalismo espiritual”, inspirada na possibilidade da exploração das potencialidades formais do cinema tais como a abstração e simbolismo da montagem, do surrealismo e do camp.
Um exemplo dessa vertente está no filme 8 e Meio (8 ½, 1963) de Fellini. Um filme auto-referente: há um filme a ser feito e Oito e meio constrói-se a partir dessa necessidade. Oito e Meio começa com um sonho. Depois, o filme volta a uma estrutura mais coerente, realista, condizente com uma descrição da realidade. Mas trata-se de uma coerência relativa. As situações muitas vezes são verossímeis, porém não são "razoáveis". Há uma confusão constante, um entrar e sair incessante, em meio a imagens quase oníricas. O filme é a exploração de uma estrutura complexa de auto-referencialidades: um filme autobiográfico de Fellini, com uma narrativa sobre a produção de outro filme onde o protagonista embaralha seus sonhos com a realidade. Através de recursos formais como a auto-referencialidade e narrativa ambígua, o filme drena a solidez da realidade para fazer o espectador transcender a realidade dada.

Por sua vez o filme gnóstico experimenta a tensão entre forma e conteúdo por meio da ironia, no sentido dado pelos teóricos do Romantismo literário: procura conferir à narrativa um caráter de ambigüidade através de paradoxos, contradições e negações, pois os recursos formais disponíveis através da linguagem (seja ela fílmica ou literária)são insuficientes para expressar o inominável.

O filme gnóstico detém uma substância esotérica contida em um pacote exotérico, isto é, trabalha com o tema da ilusão da realidade dentro de um produto comercial determinado por uma ilusão: as convenções comerciais do gênero e o próprio caráter ficcional da representação fílmica. Este tipo de filme parece estar consciente dessa condição ao propor, como saída para essa tensão, experiências formais que explodem a expectativa do espectador pelos clichês do gênero.

O filme gnóstico parece seguir o sentido contrário desse prazer cinematográfico. A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem etc., dificultam essa identificação primária.

A Especificidade do filme gnóstico



O primeiro elemento que define o filme gnóstico é o aspecto da gnose que poderia ser sintetizada na seguinte frase: tudo do que o protagonista necessita já está no interior da sua mente. A gnose é apresentada como uma reforma íntima através de uma superação de limites pessoais (medos, traumas, apego aos valores do mundo físico etc.). O processo de transformação é rigorosamente pessoal e interior. O protagonista não necessita de nenhum instrumento exógeno para conseguir a transformação (livros, manuais, técnicas, guias, mentores, Deus, magia etc.) Apenas encontramos personagens que acompanharão o protagonista para ajudá-lo a criar situações que despertem nele a necessidade da reforma íntima.


Em geral, a gnose é iniciada a partir de sensações ou sentimentos íntimos do protagonista (paranóia, melancolia, déjà vus, lapsos temporais, estranhamento etc.). Isto é, a gnose não é episteme. Ela não é iniciada a partir de um conhecimento racional ou sistematizado. A jornada gnóstica deve conduzir à revelação, ao inesperado e, às vezes, a um violento insight que conduz o protagonista à percepção do todo. Muitas vezes a gnose não é uma experiência que o sujeito alcance intencionalmente. Ele é tomado por ela. Isso é que difere os filmes gnósticos de filmes como O Último Portal (The Ninth Gate, 1999) em que o protagonista percorre o caminho em direção à revelação através de conhecimentos ocultistas sistematizados em livros.

O segundo aspecto é de que a jornada pela qual o protagonista percorre não é uma expiação, mas uma “cura”, Em outras palavras, toda a provação não é conseqüência de pecados ou deformações do caráter do protagonista, mas, antes, decorre de uma realidade corrompida que o aprisiona. Todas as dúvidas e sofrimentos não são castigos por alguma transgressão ética ou moral do protagonista. Pelo contrário, é o trajeto mítico gnóstico de Emanação-Queda-Ascensão onde o protagonista é resgatado do cosmos material ao despertar a Luz interior por meio de situações que o ajudam a revelar o véu da ilusão. Isso é o que distingue os filmes gnósticos de filmes como O Advogado do Diabo (The Devil’s Advocate, 1997), onde o protagonista é seduzido pelo diabo por meio do pecado da vaidade. Apesar do discurso final de Milton (o diabo que vem ao mundo sob a forma de um advogado performado por Al Pacino) tentando convencer o protagonista Kevin (Kaenu Reeves) a ser seu sucessor ter um sabor gnóstico, o drama do protagonista centrado em um recorrente pecado da vaidade configura um típico filme de temática religiosa conservadora. O protagonista é punido pelo seu pecado capital.

O terceiro aspecto é uma decorrência do segundo: nos filmes gnósticos o protagonista não é punido pela transgressão da ordem. Ao contrário das exigências decorrentes dos gêneros comerciais onde o clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem é dominante, no filme gnóstico a quebra da ordem não é punida, isto é, não há um restabelecimento da ordem (seja social, política, institucional, familiar, moral ou pessoal) com a punição das pretensões de ruptura das ilusões da realidade material. Isso distingue, por exemplo, o salto final em filmes como Telma e Louise (Thelma e Louise, 1991) com o do filme Vidas em Jogo. Se no primeiro filme todo o processo de questionamento da sociedade machista pelas protagonistas é punido pela morte com o salto final no abismo, em Vidas em Jogo o salto no vazio do protagonista é a quebra da ordem, o resultado da jornada do Viajante cujo processo de reforma íntima significa a quebra de toda uma ordem de papéis sociais. Ou ainda, a diferença de desfecho em um filme como Click (Click, 2006). Apesar do sabor temático gnóstico, apresenta um protagonista punido pela sua ambição materialista (workholic cujo objetivo é o de tornar-se sócio de uma empresa) e um final que restabelece a ordem familiar quebrada pelo pecado.

segunda-feira, janeiro 25, 2010

"Quem Somos Nós": a estupidez da Auto-Ajuda em uma teologia secularizada



O documentário “Quem Somos Nós” (What the Bleep, 2005) sob o pretenso objetivo de unir Ciência e Religião, nada mais faz do que perpetuar o pior de ambas (a liquidação do particular e do indivíduo pela Totalidade) na secularização da Teologia por meio do discurso do espiritualismo e auto-ajuda.


Se no documentário O Segredo (The Secret, 2006) tínhamos uma abordagem mais direta ou grosseira do velho tema da auto-ajuda sobre o poder da mente (com esse poder você seria capaz, por exemplo, de fazer chegar até cheques pelo correio!), pelo menos em "Quem Somos Nós" a abordagem é “filosófica” ao tomar, como ponto de partida, a discussão da união Ciência e Religião por meio da Física Quântica, Neurologia e Neurofisiologia. As perguntas clichês de uma teologia secularizada estão presentes: de onde viemos? Quem somos nós? Para onde vamos? Qual o propósito da nossa existência?... e assim por diante. Mas o ponto de chegada é o mesmo: pérolas motivacionais especialmente elaboradas para o mundo corporativo e de vendas (no final, os grandes consumidores deste tipo de vídeo para motivar equipes de vendas, gerencias e chefias), noções filosóficas e científicas fragmentadas e arbitrariamente associadas ao temas de auto-ajuda etc.

Muitos fóruns, blogs ou sites (como, por exemplo, http://gnosticteachings.org/forum/index.php?showtopic=716&mode=threaded ou http://www.religionnewsblog.com/14722) acabam se impressionando com a pretensa discussão filosófica do vídeo e acabam associando-o ao Gnosticismo, principalmente pelas críticas à religião. Puro engano, pois “Quem Somos Nós” perpetua o pior tanto da Ciência quanto da Religião: o esmagamento da importância do indivíduo diante de uma totalidade (seja natural ou divina). Ou seja, vai num sentido oposto do Gnosticismo.

Se não, vejamos. O filme parte do princípio que a cisão entre Ciência e Religião parte de uma percepção limitada do indivíduo. Os sentidos são fonte de erros porque a nossa consciência é a ínfima parte das informções que o cérebro processa (analogia do cérebro com o computador). Partindo da física quântica descobrimos que a nossa percepção cotidiana é falsa: não há matéria (grande parte do átomo é composto de vazio), objetos e eventos não estão isolados no tempo e no espaço, mas conectados entre si numa rede de interferências, da qual o Observador faz parte.

Por isso, o indivíduo é limitado por não conseguir se conectar com o “Ser Abstrato Puro”, com a “Consciência Abstrata Pura”, com o “Ser Transpersonal Único”. A consciência seria limitada por ser “um subproduto do Espírito quando entra na Matéria”. As velhas dualidades teológicas são atualizadas, até chegar a liquidação total do indivíduo: a secularização do pecado. Essa limitação do Espírito confinado na Matéria propicia a limitação da percepção e do pensamento, preso que está a esquemas viciosos (melancolia, depressão, tristeza e “negatividades” em geral). Esquemas que produzem fracasso, derrota etc.
A verdade está no Todo e jamais no indivíduo, persistentemente limitado e em queda numa nova forma de pecado: a do desconhecimento da “Consciência Abstrata Pura”. Seu pecado é o da ignorância.

O documentário não consegue superar a dualidade Ciência/Religião por estar presa a uma Teologia Positiva que, afinal, é a matriz epistemológica de ambas: o sacrifício ritual do indivíduo diante do Absoluto e o Infinito. Mas, e se esta melancolia, depressão e tristeza do indivíduo forem estados críticos de consciência contra esta Totalidade? Em outras palavras, e se for a Totalidade Natural, Divina ou Social (no final, todas a mesma coisa) a fonte do sofrimento individual?
Este é o caminho de uma Teologia Negativa ou “Herética” como fala T. Adorno: a verdade esta no particular, no indivíduo, no singular diante de uma Totalidade autoritária, origem de toda dor. Toda a literatura e videografia Espiritualista ou de Auto-ajuda nada mais faz do que atualizar este ritual cotidiano de sacrifício da parte pelo Todo.

Há uma sequência no filme Beleza Americana (American Beauty, 1999) que sintetiza essa problemática da Teologia Positiva na Auto-Ajuda. É quando Carolynn (corretora de imóveis e voraz consumidora de literatura motivacional para negócios), frustrada por não ter conseguido vencer naquele dia uma casa após uma exaustiva maratona de clientes, encosta na parede e reprime o choro e a frustração, batendo a mão no próprio rosto: “Cale-se. Pare, sua fraca, infantil!” (veja a sequência abaixo). É a repetição de um mantra dessa espiritualidade que reprime o momento de verdade contida na dor individual em nome de uma Totalidade da qual ela se origina.
Teologia Positiva como
Tecnologias do Espírito
Esta secularização teológica surge no século passado através daquilo que Lucien Sfez (Veja o livro "Crítica da Comunicação" da editora Loyola) chama de “Tecnologias do Espírito”, um discurso científico sintetizado pelos seguintes conceitos: Rede, Paradoxo, Simulação e Interação. É o modelo das ciências computacionais aplicados autoritariamente ao Espírito: indivíduo, cérebro, percepção, sentidos etc., funcionam de forma análoga aos computadores no sentido mais paradoxal e interativo.

Como nos informa “Quem Somos Nós,” a realidade não existe (tal informação confere um ar “espiritualizado” e “místico” à teologia da Auto-Ajuda). Ela nada mais é do que conceito, informação, idéias processadas pelo nosso cérebro. Se, então, isso for verdade, confere um surpreendente livre-arbítrio para o indivíduo (negado até hoje pelas religiões): a realidade é aquilo que queremos que seja, é a força do nosso pensamento (concentração, meditação). E como alcançar essa liberdade? Abandonando “vícios, medos e limitações” (os novos pecados) para, assim, entrarmos no reino da “Consciência Abstrata Pura”.
Diante desse híbrido de Ciência e Religião devemos confrontar uma Teologia Negativa que encontra na dor individual os elementos críticos da Transcendência. É a ressureição da carne: o que anseia o Absoluto não é o Espírito, mas a Carne com toda a sua dor e sofrimento impingidos pela História.
Filme Beleza Americana (American Beauty, 1999)

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Paradoxo, Contradição e Ironia: a Teologia Negativa no Filme Gnóstico

Como expressar o indizível por meio da linguagem? Através do caráter paradoxal da linguagem mística que fere as regras da lógica e do entendimento, os textos místicos tentam exprimir a sublimidade da experiência. Na arte moderna (da literatura romântica até o cinema) a Ironia será a estratégia que dá continuidade à Teologia Negativa.

A linguagem mística com o caráter de negatividade (a Teologia Negativa) tem em Dionísio Aeropagita (entre os anos 484 e 532) o seu principal introdutor. Considerado por muitos o pai da mística ocidental, seus textos são especulações teológicas onde procura comprovar a existência de Deus pela via negativa, ou seja, por meio de paradoxais negativas infindáveis. Veja este trecho do livro chamado De Mystica Theologia:


“Elevando-nos mais alto, dizemos agora que esta causa não nem alma nem inteligência; não tem imaginação, nem expressão, nem razão nem inteligência; que ela não pode se exprimir nem conceber; que ela não tem nome, nem ordem, nem grandeza, nem pequenez, nem igualdade, nem semelhança, nem dessemelhança (...) Não é móvel nem imóvel, nem descansa. Não é luz, nem vive, nem é vida (...) Quando negamos ou afirmamos algo de coisas inferiores ‘a Causa suprema, dela mesma não afirmamos nem negamos nada, porque toda afirmação permanece mais aquém da causa única e perfeita de todas as coisas, pois toda negação permanece mais aquém da transcendência daquilo que está simplesmente despojado de tudo e se situa mais além de tudo” (AEROPAGITA, Dionysius. Ouevrea completes Du Pseudo-Denys/Aeropagite Apud: LOSSO, Eduardo Guerreiro. Teologia Negativa e Theodor Adorno-a secularização da mística na arte moderna, Tese de Doutorado, Faculdade de Letras da UFRJ, 2007.
Esta linguagem paradoxal quer comprovar que há uma experiência além da inteligência, da linguagem, dos sentidos e das emoções. Tenta-se comprovar o indizível e o inconcebível por meio do esvaziamento da sensação e do conhecimento. Dionísio introduz na tradição ocidental essa retórica de negação incondicional de todo ente ou ser somentepara afirmar que o inconcebível é a causa suprema:


“Logo, Deus não é negado, não é posto em dúvida. O que ocorre é o contrário: é a existência indubitável e inconcebível de Deus que nega todos os atributos, pois Deus é, em terminologia medieval, o ens realissimum, o que há de mais real” (LOSSO, Eduardo Guerreiro, IDEM)

Portanto, o caminho para se tentar expressar a experiência metafísica não há outro caminho senão usar e abandonar a linguagem na ânsia pelo absoluto através do paradoxo e da contradição.

Esta teologia negativa aproxima-se de uma “teologia herética”, muito próxima do gnosticismo, ao criar dissensão com a doutrina católica: enquanto Dionísio coloca que a revelação não pode ser compreendida por qualquer um (somente por meio de uma disciplina esotérica) para católicos o amor e vida moralmente correta dão condições para qualquer um encontrar Deus.

Na arte moderna, o romantismo literário do século XIX vai dar continuidade a esta tradição mística por meio da “ironia transcedental”. É através do Romantismo, nos séculos XVIII e XIX que o Gnosticismo deixa o submundo para ascender à literatura e à cultura através de nomes como William Blake, Percy Shelley, Gerard de Nerval, Baudelaire, Rimbaud. Em todos eles encontramos a redescoberta da atitude e das imagens do pensamento gnóstico. A abordagem do gnosticismo pelo Romantismo é nitidamente sincrética, associando o gnosticismo cristão com o hermético (alquimia e cabala). Figuras como Nerval e Goethe, por exemplo, beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas. Enquanto Goethe trabalhava com complexos simbolismos iniciáticos derivados da alquimia, Nerval estudou profundamente livros de esoterismo, magia e metafísica.

A ironia surge na lacuna entre aparência e realidade, representação e presença. Pensadores do fim do século XVIII, principalmente Friedrich Schlegel, acreditavam que essa lacuna era constitutiva da natureza humana proveniente do antagonismo entre o desejo de representar o mundo e a impossibilidade de fazê-lo. O grupo de Iena (formado pelos irmãos August e Friedrich Schlegel, Novalis, entre outros) começa a teorizar sobre a ironia como um procedimento auto-reflexivo a partir da leitura de Cervantes, Shakespeare e Diderot. A moderna concepção da ironia tematiza o intervalo entre a linguagem e a experiência empírica. A ambição pela imediatez dos modernos parece ser uma procura sempre renovada de uma linguagem absoluta, pela busca de uma palavra definitiva que dê nome às coisas.

As dimensões estéticas desse tipo de ironia são muitas: a fragmentação como forma preferida de representação, isto é, como um consciente elemento de uma completude jamais alcançável; o narrador autoconsciente que expõe as próprias construções da realidade para, dessa forma, explicitar suas limitações; a mistura entre texto primário e comentário em uma mesma página; a descrição não-conclusiva de pontos de vista inconciliáveis que deixa o leitor em um limbo interpretativo; o poema que se consome em dois significados contraditórios que se co-habitam e se anulam.

O romantismo cria um anseio pelo absoluto, uma espécie de busca religiosa que, de um lado, toma seriamente as percepções fragmentárias do mundo material como forma de revelação do espírito e, do outro, toma essas mesmas percepções como formas inferioras que encobrem como um véu o invisível. A ironia transcendental do romantismo exemplifica este irônico questionamento religioso próximo da tradição gnóstica.

Ironia e Negatividade no Filme Gnóstico

Ao explorar o tema da transcendência onde os protagonistas lutam para ascender de um mundo ilusório e corrompido (por ser uma construção artificial, obra de um demiurgo) o filme gnóstico vai explorar a ironia como caminho para evitar cair na dualidade falso/verdadeiro, espírito/matéria, ilusão/realidade etc. o caminho é o da negatividade: nem uma coisa nem outra, mas a busca de um tertium quid, uma outra via posta em suspensão pelo vazio cognitivo que a ambigüidade da narrativa fílmica procura criar.
A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem, desfechos narrativos que se anulam, narrativas em abismo etc.

Dois Exemplos da Ironia no Filme Gnóstico


Podemos apresentar dois exemplos de filmes gnósticos que partilham desse caminho da negatividade do sentido por meio de narrativas cujos desfechos são paradoxais por apresentarem interpretações que se anulam. O primeiro é o filme O Décimo Terceiro Andar (The Thirteenth Floor, 1999) com um autêntico happy end (casa em frente a uma praia, grupos de gaivotas voando, um cachorro brincando na areia, um lindo pôr do Sol). O protagonista parece ter descoberto o último nível das simulações que é, finalmente, a realidade, o ponto de partida de tudo. Mas, repentinamente, a imagem do enquadramento encolhe-se até transformar-se numa linha, reduzindo-se a um ponto de luz de um monitor de TV (veja essa sequência final abaixo). Uma pista da irrealidade: será que alguém puxou o fio da tomada? Este ambíguo e irônico final sugere que o própria realidade última, também, uma simulação como os demais níveis. Uma possível interpretação que cai na suspensão, no vazio.
Outro exemplo é o do filme Brilho Eterno de Uma mente Sem Lembrança (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) onde elemento irônico está presente. Na seqüência final com Joel e Clementine correndo pela gelada praia de Montauk em fevereiro é ambígua, podendo ser interpretada como dois finais excludentes: ou assistimos a um típico happy end romântico em um final clichê com casais enamorados correndo felizes à beira do mar ou um final trágico: as seqüências de Joel e Clementine após o apagamento de memória ter sido finalizado, retornando ao primeiro plano que inicia o filme (Joel despertando em sua cama pela manhã), poderiam ser mais uma instância narrativa interna das memórias de Joel. A partir daí até o final poderíamos estar vendo mais narrativas das memórias de Joel. Na seqüência de desfecho na praia de Montauk as imagens do casal vão dissolvendo-se em fade out para o branco. Isso acontece também em algumas seqüências anteriores aonde objetos vão tornando-se brancos até desaparecerem (como na seqüência do desaparecimento dos livros na Bernes e Noble) como metáfora de apagamento das memórias. Além disso, há uma descontinuidade na corrida do casal, em loop: a corrida repete-se até o fade out. Novamente, este loop aparece como metáfora de apagamento ou degeneração da memória como na seqüência em que Joel persegue Clementine pela rua após uma discussão: o tempo e a perspectiva parecem estar em loop, impossibilitando Joel de chegar ao final da rua e alcançar Clementine


domingo, janeiro 17, 2010

Evitar a remitologização do Sagrado no Cinema

Ao abordar o Sagrado, o Cinema explicita sua dialética: de um lado a possibilidade regressiva de fixar a mística na imagem e, por outro, liberá-la através do conceito e do simbólico.


A origem dessa postagem se deu em um leitura de férias, em um sítio em Cotia, São Paulo: a leitura de uma longa e densa tese de doutorado de Eduardo Gerreiro Losso, "Teologia Negativa e Theodor Adorno - a secularização da mística na arte moderna", tese defendida no Programa de Ciência da Literatura da UFRJ em 2007. Ao longo das suas 342 páginas, o autor destrincha a obra, correspondências e arquivos pessoais de Adorno em busca das referências teológicas do seu pensamento, principalmente no seu principal legado filosófico: a Dialética Negativa.

É impossível nesse espaço discutir essa obra fundamental, mas podemos traçar alguns insights que a discussão sobre Teologia, Mística, Razão e Fé podem trazer para o tema Sagrado e Cinema.

Como destaca Losso, o principal conceito da Teologia é o da "negatividade". Como Adorno localizou nos chamados teólogos heréticos, essa negatividade é a essência da mística: a união entre pensamento e experiência. O conceito de "negatividade" deriva do fato de que a busca de Deus ou do Sagrado não se localiza no mundo das idéias do pensamento ou nas abstrações que tentam compreender o infinito, mas na materialidade da experiência particular, no ínfimo, no precário. É a Metafísica em queda.

Ao contrário, o mito procura conciliar esses dois extremos (particular/universal, matéria/espírito, experiência/pensamento) através da imagem. A imagem do mito conterá o germe do conceito do pensamento racional do Iluminismo que liquida a experiência do particular em nome do Universal (Deus, Logos, Infinito, Devir etc.). A imagem de Cristo, dentro do sistema religioso do cristianismo, é um exemplo de remitologização da mística ao longo da história. A proibição na nomeação da palavra que designa Deus entre os judeus ou os avisos sobre a idolatria das imagens no Velho Testamento bíblico são alertas para o perigo regressivo das imagens. O conceito na Razão Instrumental, como alertam Adorno e Horkheimer na "Dialética do Esclarecimento", retorna ao perigo da imagem ao querer fazer coincidir o conceito com o objeto por meio da metodologia científica que almeja coincidir sujeito e objeto para a dominação instrumental do mundo.

A imagem, assim como o conceito, querem coincidir com a Verdade como se o signo (imagético ou científico) fosse a própria coisa, como se o mapa fosse o próprio território. Congela e sacrifica a experiência em nome de uma totalidade instrumental e abstrata (sistema religioso, sistema mercantil etc.). O resultado é a idolatria religiosa ou o autoritarismo tecnocrático e mercantil que impõem sofrimento e mal-estar.

O momento negativo da Teologia que a metafísica moderna deve incorporar, como defende Adorno, é o mergulho na experiência, mas não reduzindo-se à pequenez do particular. Por que nele está a abertura para o transcendente. É a busca de uma espécie de empirismo transcedental. Na impossibilidade de apreender no objeto, o inominável, o transcendente somente poderá se revelar pela mística. É o momento progressista da Razão e do pensamento simbólico: a linguagem se recusa a fixar-se em imagens para, por meio da própria abstração que revela a distância entre sujeito e objeto, liberar o inominável.

A mística, portanto, é o momento do encontro entre pensamento e experiência: de um lado o pensamento (abstração) e por outro a fugidia e inapreensível experiência particular do sensível. O que é essa dimensão mística para Adorno? Embora seja atraído por nomes da "teologia herética" associados a filosofias e práticas místicas e gnósticas (Novalis, Eckhart, etc), ele interessa-se menos pela viagens espirituais ou experiências místicas e muito mais pelo potencial crítico: desafio às autoridades instituídas (religiosas ou sociais) ao propor a possibilidade de uma realidade "totalmente outra". Principalmente a Estética e a Arte ocupariam, na modernidade, esse papel de uma teologia negativa.

Dialética Negativa no Cinema


Se o cinema é uma mídia visual, ou seja, edita, monta e põe imagens em movimento, como pode essa mídia, ao refletir sobre o tema do Sagrado, pode evitar cair na idolatria teologicamente regressiva das imagens?

Sabemos que a narrativa clássica constrói os seus pilares na busca pela ilusão de realidade. Encenação naturalista, mudanças invisíveis entre um corte e outro, continuidade de olhar e movimento, manutenção do eixo de 180 graus, sincronismo entre som e imagem. Cada cena é amarrada em si mesma e em função das cenas imediatamente anteriores e posteriores, em uma relação contínua de causa e conseqüência. O roteiro clássico obedece a uma métrica que determina a duração das partes do filme, como apresentação dos personagens, introdução do conflito, primeiro plot e assim por diante. A estrutura lógica e a busca incessante pela verossimilhança são pertinentes à natureza do discurso, colocando o espectador em contato direto com o significado e não causando possíveis dificuldades de leitura.

Esta ilusão de realidade, a identificação naturalista com a imagem, cria uma aparência de contato direto com o objeto fílmico, um prazer voyeurista de contato direto com o representado. Em essência: uma fetichização ou mitologização da imagem como se tornasse de ícone a índice da realidade. Mais que signo, a imagem torna-se decalque do objeto representado. Ao invés de representação, a ilusão de apresentação. Porém, paradoxalmente uma mitologização da imagem por meio das técnicas abstratas de montagem edição e do próprio aparato tecnológico do dispositivo.

É a própria Dialética do Esclarecimento: a Razão regride ao mito por meio da técnica e tecnologia. Mas, ao mesmo tempo a abstração da imagem e do conceito trás em si a negatividade: a mediação através da qual a experiência do particular pode aspirar a transcendência. Assim como para Adorno abstração matemática e formal da música abre espaço para elementos sensíveis e particulares (como o timbre e a densidade, por exemplo), no Cinema a edição e montagem são mediações para elementos sensíveis e particulares como a tonalidade, saturação, granulação e, inclusive, o própria experiência da recepção concreta do espectador.
O filme gnóstico, por exemplo, ao abordar seus temas místicos (gnose, ilusão da realidade etc.) evita uma remitologização do Sagrado por meio das imagens ao
seguir o sentido contrário desse prazer voyeurístico da narrativa clássica. A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem etc., dificultam a identificação primária com a imagem.

Por exemplo, em A Passagem (Stay, 2005) vemos deliberadas falhas de continuidade, lapsos, quebras de eixo, tudo para representar, na própria linguagem narrativa, o universo onírico no qual o protagonista está preso. O filme faz uma "desconstrução" (ou uma "negação da negação" na linguagem adorniana) do conceito e da imagem em três sentidos: primeiro ao apresentar a realidade como ilusão. Segundo, ao apresentar o próprio caráter da representação fílmica como ilusão. E, terceiro, ao utilizar uma voz narrativa que, no fundo, apresenta a própria condição limitada da recepção do espectador: assim como o protagonista da estória (Dr. Henry), o espectador não consegue vislumbrar a verdade por trás dos véus metonímicos e metafóricos (oníricos) da narrativa.

Esse caráter "meta" do filme gnóstico põe em suspensão sujeito/objeto, imagem/representado, conceito/significado, criando um "vazio cognitivo" que permite um distanciamento do espectador diante da imagem, explicitando a própria situação particular das condições de recepção de um indivíduo diante de uma tela. É o momento "negativo", a queda do conceito no particular. Ao invés do espectador ser absorvido pela imagem (o universal, o abstrato) ele é convocado a "pensar" nas próprias condições particulares da recepção:a de um indivíduo diante de um dispositivo ficcional. É o momento sagrado e irônico: o filme que quer demonstrar a ilusão da realidade por meio da ilusão da representação.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

Narrativas Sem Tempo

Passado, presente e futuro. A narrativa dos filmes gnósticos embaralha estas categorias temporais porque, para o Gnosticismo, o tempo é erro, fruto de um acidente cósmico.


Se pensarmos a narrativa como uma série de eventos encadeados, reais ou imaginários, que ocorre ao longo de um tempo determinado pela estória, podemos considerar o conceito de tempo como o ponto crítico nos filmes gnósticos. O gnosticismo encara o tempo como uma prisão, fonte de mistificação, ilusão e engano.

Igual ao mundo físico, o tempo – que subjaz, por outro lado, em todas as manifestações do cosmos visível – é ‘mescla’ e ‘mancha’: O ciclo do tempo não é outra coisa que a Fatalidade; o tempo pertence ao mundo material, enquanto que o mundo superior é atemporal (e se diz separado do primeiro por um limite que emprincípio é absoluto). O tempo é mal e constitui-se numa fonte de angústia; a gnose se opõe tanto à doutrina estóica do tempo cíclico, circular, como à doutrina cristã de um tempo linear que se estende irreversivelmente desde a criação O tempo, que em si mesmo é insuficiência, nasceu de um desastre, de uma ‘deficiência’, do desmoronamento e a dispersão no vazio, no kenoma, em uma realidade que existia antes, uma e integral, o sonho do Pleroma, da ‘plenitude’, do Aión, da Eternidade O gnóstico não aspira mais do que ser liberado do tempo, estabelecer-se ou restabelecer-se fora de todo devir, de volta ao estado que se supõem existia no princípio: a estabilidade, a verdade do Pleroma, do Aión, do ser eterno, do ser completo. (HUTIN, Serge. Los Gnósticos. EUDEBA: Buenos Aires, 1963, p. 14.

Por isso, o filme gnóstico vai explorar formas narrativas opostas às formas clássicas e lineares. As narrativas gnósticas tentarão sempre destacar a instabilidade temporal da realidade, isto é, como por trás do aparente encadeamento linear dos eventos, escondem-se abismos temporais e espaciais, os múltiplos universos contínuos e descontínuos e a própria ontologia do real (ou a verossimilhança) confundida com possíveis projeções psíquicas do protagonista.
Por exemplo, em Homem Morto a estória é narrada, aparentemente, de forma linear, como a narrativa de um western clássico. Porém, a frase de Nobody (índio
que acompanha o protagonista) de que a morte é como fosse “a passagem através do espelho” é a chave de compreensão da estrutura narrativa do filme. As seqüências iniciais de finais do filme parecem se “espelhar”: as sequências iniciais e finais, embora passadas em locais espacialmente diferentes, obedecem a uma mesma sequência de eventos (Blake chegando à cidade de Machine e, no final, chegando à tribo de Nobody).
Ou em Vidas em Jogo onde o tempo cronológico é confundido com o tempo psicológico do protagonista. Nas cenas em que Nicholas está mergulhado na paranóia (ele está envolvido em uma espécie de RPG onde não consegue mais distinguir onde termina o jogo e onde a realidade começa) o som ambiente torna-se um amálgama de vozes distorcidas e ecos, reforçando que o que vemos é a percepção da realidade pelo ponto de vista psicológico do personagem.
Ou, ainda, a seqüência onde Nicholas tenta retirar uma chave da boca de um palhaço de madeira (que havia encontrado diante da porta do casarão na seqüência anterior) enquanto assiste na TV um telejornal de economia, é mais um exemplo do tempo psicológico que confunde o espectador. A transmissão é interferida pelo Jogo da CRS e o âncora do telejornal começa a falar com Nicholas sobre as regras do Jogo que se inicia. A seqüência chega ao inverossímil: como uma empresa capaz de tal proeza tecnológica, é capaz de cometer erros primários ao longo da estória como, por exemplo, esquecer uma etiqueta de preço em um lustre (o que acabou denunciando a falsidade do interior de uma casa armada cenograficamente para enganar o protagonista)? Ou seja, Nicholas realmente conversa com a transmissão de TV ou tudo não passa de fruto do delírio originado por uma condição paranóica?


O paradoxo do futuro no filme gnóstico



Se para o Gnosticismo o tempo é ilusão, fonte de engano e alienação, como o futuro pode ser representado nesse grupo de filmes? Ou seja, se o encadeamento linear dos eventos, como uma seta que aponta do passado para o futuro, é uma ilusão que aprisiona o espírito, de que maneira ficções-científicas como O Pagamento e Matrix podem representar os episódios das previsões e profecias? Resposta: através de paradoxais previsões e profecias “sem futuros”.
Em O Pagamento, Jennings descobre que as pesquisas que a Allcom estava envolvida tinham a ver com uma máquina que faria previsões do futuro a partir de uma lente curva que simularia a própria curvatura do Universo. Seu inventor foi assassinado a mando da Allcom e ele, Jennings, como um engenheiro reverso, foi encarregado de recriar a máquina a partir de um protótipo. A certa altura da narrativa, perplexo, Jennings descobre que a máquina que construíra, na verdade, era uma irônica forma de prever o futuro. Através de um mecanismo de profecia auto-realizadora o futuro previsto não acontecia porque estava lá, mas por que a sua divulgação fazia o futuro previsto acontecer de fato. O futuro como profecia auto-realizadora é a própria configuração de um evento circular, tautológico: o futuro não é previsto como um fato objetivo que está em algum lugar à frente no tempo, mas porque a sua divulgação evoca um novo comportamento que acaba confirmando a “profecia”, na verdade, uma falsa premissa que se torna verdade.
Um futuro tautológico, recursivo, uma circularidade viciosa entre crença e comportamento.


Jennings: “Meu Deus, é o futuro. A máquina prevê a guerra, entramos em guerra para evitá-la. Prevê uma praga, juntamos todos os doentes e acabamos criando uma praga. Todo o futuro que ela prevê, fazemos acontecer. Perdemos todo o controle sobre nossas vidas. Ver o futuro nos destruirá. Se mostrar o futuro a alguém, ele não terá futuro."



É a ironia final: o futuro dobra-se sobre si mesmo, criando um efeito recursivo.

"Vamos falar em recursão quando se trata da própria energia que reentra do efeito na causa ou quando o output alimenta o input em retorno (...). Em suma, o fato de que alguns anúncios chegam, com efeito, a realizar-se sublinha uma vez mais o quanto a palavra se encontra tomada indicialmente na camada dos comportamentos, ações e reações cuja seqüência nunca é linear, mas emaranhada, recursiva ou complexa." (BOUGNOUX, Daniel. Introdução às Ciências da Informação e da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 235-240.) O tempo recursivo em Matrix


O tempo recursivo em Matrix


Também é curioso o papel de profeta do Oráculo no filme Matrix. Neo surpreende-se com a aparência do Oráculo: uma senhora com aspecto de típica dona de casa, em uma prosaica cozinha preparando biscoitos no forno. Parece que o Oráculo tem consciência do caráter auto-realizador das profecias, isto é, o fato de que o anúncio de uma profecia pode fazer o evento ocorrer ou não, alterando a espontaneidade dos acontecimentos. Isso fica claro no diálogo em torno do vaso que se quebra:


Oráculo: E não se preocupe com o vaso.
Neo: Que vaso? (Neo vira-se e esbarra no vaso que cai e quebra-se no chão).
Oráculo: Esse vaso.
Neo: Como você sabia?
Oráculo: O que vai mesmo fazer seus miolos queimarem é: você teria quebrado se eu não tivesse dito nada?

Paradoxo quântico: a visualização do objeto altera a própria constituição do objeto. Ou seja, a queda do vaso não decorreu de uma inexorabilidade do futuro, mas por uma profecia que acabou se auto-realizando como verdade. Se a Matrix é uma gigantesca máquina de calcular similar a imaginada pelo matemático francês do século XVIII Laplace (que vislumbrava a possibilidade do controle e previsibilidade total do universo a partir do momento que todas as coordenadas e variáveis fossem conhecidas por um “Computador Laplaciano”), o Oráculo insere nos códigos-fonte desse cosmos um elemento de acaso: a profecia auto-realizadora. O Oráculo profetiza que Neo terá fazer uma escolha: “Numa mão terá a vida de Morpheus. Na outra mão terá a sua vida. Um de vocês vai morrer”. Se a profecia auto-realizadora é a concretização de expectativas, o Oráculo sabe que Neo luta contra a idéia de destino e fará de tudo para impor o livre-arbítrio. Neo lutará contra o destino e salvará a ambos numa seqüência que terminará no duelo final com o Agente Smith. Embora não confirme ser ele, Neo, o Salvador, de forma indireta cria circunstâncias para que ele se torne como tal. Ou seja, o Oráculo nada fala sobre o futuro, mas apenas insere na previsibilidade dos códigos da Matrix o elemento do acaso através da profecia que se auto-realiza.
Além disso, o Oráculo não quis admitir que Neo era o Salvador porque, curiosamente, as profecias auto-realizadoras parecem não funcionar com anúncios de natureza positiva ou promissora . Mais um motivo para conseguir, de forma indireta, que Neo assumisse o papel de O Escolhido na estória. Certamente, se o Oráculo dissesse para Neo que ele era, de fato, O Escolhido a profecia não se realizaria.

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