O Livro de Eli (Book of Eli, 2010) reflete em cada cena o imaginário pós atentados de 11/09/2001 onde a religião e o choque de civilizações são os responsáveis pelos conflitos mundiais. Por isso, resta à religião ser neutralizada no seu cerne libertário (a Mística e o Sagrado) e se transformar em modelo de ascetismo e disciplina marcial para os “novos padres”. Aviso: esse post contém spoilers!
Se nos anos 80 os filmes com temas pós-apocalipse como Mad Max refletiam o narcisismo anabolizado do conservadorismo da era Reagan, filmes similares do final dessa década continuam a refletir o imaginário pós atentados de 11 de setembro e toda a ideologia justificadora da política internacional anti-terror dos EUA. Como sabemos, o álibi das ações anti-terrorismo norte-americanas se baseia na existência de um “choque de civilizações” entre oriente e ocidente, entre o fundamentalismo islâmico ou de outras culturas teocráticas e as sociedades liberais e democráticas ocidentais. A questão iria além do político, passando para o plano cultural e religioso: nosso deus é mais tolerante e liberal que o dos outros. Países fazem guerras e atentados em nome de um deus, enquanto nós construímos instituições políticas democráticas que refletiriam um sistema religioso de um deus tolerante, que pratica a compaixão e o amor.
O filme O Livro de Eli explicitamente se assenta nesse ideário conservador em plena era supostamente liberal do governo Obama (o que significa que, em relação à era Bush, nada deve mudar nas relações internacionais dos EUA).
O protagonista Eli (Denzel Washington) cruza, solitário, os EUA devastados por uma catástrofe aparentemente nuclear (os personagans falam em “Grande Clarão”, “o céu que se abriu e o sol baixou sobre a terra”, etc.). De qualquer forma, a origem de tudo teria sido uma guerra de proporções mundiais com motivações religiosas. Por isso, após a guerra, todas as cópias da Bíblia (e de outros livros religiosos) foram caçados e queimados, sobrando uma edição que é transportada por Eli, dentro da sua mochila.
Esta única cópia é ansiosamente procurada por Carnagie (Gary Oldman), misto de prefeito e gangster, que vê na Bíblia como um conjunto de palavras com poder persuasivo mágico, suficiente para arregimentar a cidade em seu favor, conseguindo ainda mais poder de influência e controle.
Eli (uma clara alusão ao profeta Elias descrito no velho testamento como o campeão do monoteísmo e modelo para o ascetismo e reclusão na busca do contato com Deus por meio da oração) é solitário, guiado por uma fé cega (uma voz teria revelado-lhe que deveria levar sua única edição da bíblia a algum lugar a Oeste), monossilábico e dotado de coragem e habilidades de um lutador de artes marciais.
Até aqui o filme associa três efeitos da religião: primeiro, produziu uma guerra mundial apocalíptica devido (o filme sugere) ao fundamentalismo e intolerância; segundo, o discurso religioso é apresentado como potencial ferramenta de propaganda que produz persuasão e, em conseqüência, uma espécie de “cimento social” que motiva as pessoas a um objetivo comum; e terceiro, a religião como um drive ético e moral que produz valores como o ascetismo, auto-disciplina e motivação a partir de uma fé cega que induz à sublimação dos desejos e necessidades individuais em nome de um propósito maior.
Aqui a alusão ao profeta Eias é proposital. O movimento monástico do séc. IV tomou a Elias como seu modelo, pondo em relevo a continência, a pobreza, a vida no deserto, o jejum, sua oração. O protagonista Eli no filme vai de encontro a uma linhagem de protagonistas calados, idealistas e ascetas, de Clint Eastwood a Mad Max.
Os “Novos Padres”
O roteirista do filme, Gary Whitta, é originário do universo dos games como jornalista e escritor de games como “Pray”, “War” etc. É interessante perceber a influência no roteiro do Livro de Eli não somente da linguagem do universo dos games, mas, inclusive, do que podemos chamar de um novo ascetismo de uma nova classe que lida com as novas tecnologias. O Pesquisador canadense Arthur Kroker falava sobre o surgimento dos “novos padres”, membros da chamada “nova classe virtual” que possuem uma auto-imagem mística e messiânica como arautos de uma terra prometida: o paraíso digital. Missão que requer renúncia e ascetismo: isolamento, renúncia aos prazeres mundanos e necessidades fisiológicas (sono e sexo), mas, diferente do jejum, uma dieta junk a base de café, cigarros e fatias de pizza em intermináveis sessões em frente às telas do computador.
O pastiche que constitui o protagonista Eli (um misto de característcias dos heróis de Western com heróis de filmes como Kung Fu com David Carradine dos anos 70 – pacifista e lutador) é uma projeção dessa auto-imagem dos “novos padres” da era digital.
O Retorno à Ordem
Essa ideologia neoconservadora sobre a religião vai se concretizar na própria estrutura narrativa, convencional e hoolywoodiana: quebra da ordem e retorno à ordem. O filme inicia mostrando sequências de anomia, caos e desordem (gangues de canibais, tentativas de estupro, roubos, saques), tudo provocado pela religião que jogou o mundo no pós-apocalipse. Eli deve transportar o livro que produziu o apocalipse (a Bíblia) a um lugar seguro, a Oeste. Deve mantê-lo longe de pessoas como Carnagie que apenas repetiriam os terríveis afeitos do passado.
Ao final temos o restabelecimento da ordem, embora Carnagie consiga roubar a Bíblia de Eli: tendo se dedicado a leitura da Bíblia por anos, conseguiu memorizar palavra por palavra. Ao chegar numa São Francisco em ruínas e se dirigir à Ilha de Alcatraz é recebido por membros de uma iniciativa que procura reunir todo o legado artístico da humanidade em uma espécie de museu. Eli passa a ditar todo o conteúdo da Bíblia que é manuscrito para, posteriormente, ser impresso numa nova edição.
A nova versão da Bíblia é, então, colocada em uma estante, confortavelmente ao lado da Thora, Alcorão, Bhagavad Vita etc. É o restabelecimento da ordem. O final é ao mesmo tempo irônico e emblemático: o museu onde todo acervo artístico e cultural da humanidade é reunido fica na Ilha de Alcatraz, legendária penitenciária desativada (muitos blogs ironicamente afirmam que o filme deveria se chamar “Fuga para Alcatraz”).
Esse é o destino conservador da religião e do Sagrado: como um livro repousando numa estante, diante do olhar desinteressado que confina o sagrado a mera estética ou diletantismo. Hebert Marcuse uma vez chamou isso de “tolerância repressiva”: sob a aparência de um sistema liberal que permite que todas as ideologias e religiões sejam publicadas, divulgadas ou expostas, tudo acaba se resumindo a meras oposições binárias, reduzindo-as a “olhares desinteressados” ou “pontos de vista”.
Da religião, apenas uma coisa vai subsistir: a ética marcial da auto-disciplina, ascetismo e renúncia: Eli faz uma discípula, Solara (Mila Kunis), que, em trajes militares, escopeta na mochila e um rayban de fazer inveja a Rambo, sai da ilha de Alcatraz com espírito de vigança, pensando em retornar à cidade do vilão Carnaggie e fazer justiça.
Ou seja, O Livro de Eli, em consonância com a ideologia neoconservadora pós 11 de setembro, foca a religião no aspecto da repressão do indivíduo diante das missões divinas elevadas. A religião é confinada na Grande Livraria de Alcatraz (afinal, provocou grandes desgraças no passado), neutralizada no seu poder do Sagrado (vira mais um livro estocado), restando apenas seu poder de anular qualquer desejo ou livre arbítrio individual em nome de uma moral e ética marciais, necessárias num mundo de lutas contra o “eixo do mal”.
Ficha Técnica:
Título Original: The Book of Eli.
Origem: Estados Unidos, 2010.
Direção: Albert Hughes e Allen Hughes.
Roteiro: Gary Whitta.
Produção: Broderick Johnson, Andrew A. Kosove, Joel Silver, David Valdes e Denzel Washington.
Fotografia: Don Burgess.
Edição: Cindy Mollo.
Música: Atticus Ross.
Elenco: Denzel Washington, Gary Oldman, Mila Kunis
Trailer do Livro de Eli