Há muito tempo Conde Drácula tornou-se um imortal. Tempo suficiente para o mestre das trevas merecer várias versões no cinema: gótica, romântica, satânica, exótica, sensual etc. Quando pensavam que não restava mais nenhum suco sangrento para extrair dele, eis que ele ressuscita outra vez. Dessa vez através de Nicolas Cage, numa encarnação de Bela Lugosi mixado com Coringa e o camp sombrio da “Dança dos Vampiros” de Roman Polanski.“Renfield” (2023) é uma versão trash e slasher do clássico de Bram Stocker, mas dessa vez a história é contada pelo ponto de vista do servo de Drácula – como decide se libertar de tirania de Drácula ao descobrir, através de um grupo de autoajuda, que seu mestre na verdade é um narcisista e ele é vítima de uma relação tóxica e abusiva. Drácula ressuscita num mundo imerso no discurso da felicidade, positividade e sucesso. Porém, Drácula é o mais feliz nesse novo mundo: descobre como ironicamente as pessoas tornam-se vulneráveis ao Mal quanto mais são obcecadas pela positividade.
Cada geração tem a sua versão do Drácula que merece. Vindo diretamente da imaginação literária gótica de Bram Stocker, o príncipe das trevas imortal teve inúmeras ressurreições: o romantismo gótico de Bela Lugosi, o vermelho sangrento em tecnicolor de um Drácula sedutor feito por Christopher Lee, o Drácula camp da Dança dos Vampiros (1967) de Roman Polanski, o Drácula em busca mais do amor do que sangue feito por Frank Langella em 1979. Além das versões mash-up ou metalinguísticas como O Esquadrão Monstro (1987) ou O Que Fazemos nas Sombras (2014), mockumentary sobre a intimidade de quatro imortais que compartilham uma casa de subúrbio na Nova Zelândia.
Quando se esperava que nada restava de suco sangrento do velho imortal, eis que surge Nicolas Cage interpretando o personagem que faltava na sua carreira: Conde Drácula. Nicolas Cage, cada vez mais interpretando a si mesmo e cada vez mais imprevisível: capaz de estrelar tanto um filme como Olhos de Serpente (1998) do mestre Brian de Palma quanto slashers como Mandy (2018) e esse terror trash Renfield (2023).
Renfield parte de um argumento até inovador dentro da saga Drácula: o filme pretende fazer uma narrativa do ponto de vista do leal servo do príncipe das trevas, mudando o foco que sempre esteve no vampiro. Renfield (Nicolas Hoult) é o servo da vez que cumpre a inglória função de dar o apoio logístico ao mestre, como transportar o caixão dele durante o dia ou facilitar o encontro de novas vítimas.
Renfield era um advogado no século XIX, que aparentemente foi convencido pelo mestre a receber a imortalidade em troca de cumprir as ordens do vampiro. Depois de décadas servindo cegamente Drácula e tendo que se contentar com poderes temporários de vampiro derivados de comer insetos, Renfield começa a se perguntar como seria a sua vida se ele não estivesse constantemente sobre o domínio sobrenatural de seu mestre morto-vivo.
Essa nova ressurreição de Drácula tem a marca indelével do espírito do tempo: o vampiro ressurge justamente numa época nada sombria e gótica, mas, ao contrário, carregada da positividade pop dos divãs de autoajuda e dos manuais que ensinam os passos para alcaçar a felicidade.
O irônico é que nesse mundo aparentemente cheias de pessoas boas e cheias de positividade, não está fácil para Drácula encontrar sangue de qualidade, isto é, aquele que corre nas artérias de pessoas inocentes e puras.
O mundo é violento, corrupto, não há justiça e as pessoas são duras, falsas e maldosas. Portanto, Renfield vive a quase impossível missão de encontrar sangue de qualidade para o mestre. A pressão é cada vez maior, até a ficha cair: como seria sua vida sem tudo isso?
Para o escravo rebelado cair nas graças de um grupo de apoio patrocinado por uma Igreja de autoajuda – alguma coisa como “Church Life”. Lá descobrirá como reinterpretar o horror sobrenatural, gótico e metafísico sob o qual sempre viveu. Ele descobre que ele nada é mais do que uma vítima de um “relacionamento co-dependente” com um “narcisista tóxico”: Drácula.
O mestre das trevas é ressignificado como um “chefe abusivo” de qualquer ambiente corporativo, dentro da linguagem corrente da literatura de autoajuda: traumas, recuperação e autocapacitação. Drácula virou o seu “demônio pessoal” que tem que ser expurgado através da “autoconfiança” e “pensamento positivo”.
Não mais réstias de alho, crucifixos ou estacas de madeira para enfrentar Drácula. Renfield tentará simplesmente abrir manuais de autoconhecimento e recitar trechos eloquentes de positividade para afastar o vampiro.
Esse talvez seja o desafio mais sério que Drácula enfrentará na sua eternidade: um mundo para o qual o Mal tornou-se irrelevante. Embora o mundo continue tão pior como sempre foi.
O Filme
Rápido, direto e contundente, o filme vai logo ao ponto com uma mistura caracteristicamente americana de linguagem terapêutica e violência trash.
Drácula recupera-se do último ataque do seu histórico perseguidor Van Helsing. Um ataque quase fatal com o apoio de exorcistas da Igreja que quase lhe custou a imortalidade. Não fosse a ajuda de Renfield. Drácula saiu desse confronto quase destruído (restou dele uma carcaça carbonizada e mutilada), e, no seu novo esconderijo (um hotel em ruínas em New Orleans), precisa que Renfield arrume sangue de qualidade de vítimas de espírito imaculado e puro para recuperar o poder total – por exemplo, freiras impolutas ou um ônibus cheio de líderes de torcida virgens.
Porém, a missão não está fácil. Renfield e Drácula estão numa cidade dominada por gangsters e policiais corruptos. Com exceção de uma policial honesta chamada Rebeca (Awkafina) que enfrenta uma parte da polícia corrupta aliada a traficantes locais chamados Teddy (Bem Schwartz) e Bella-Francesca Lobo (Shohreh Aghdashloo).
E nesse imbróglio todo, Renfield tenta renascer: descobre um grupo de autoajuda em uma igreja onde tem uma epifania – Drácula na verdade sempre foi um chefe narcisista e abusivo e ele vive uma relação tóxica de co-dependência.
Tudo isso no meio de cenas de perseguições e lutas arrebatadoras com muito sangue. E nas poucas sequências em que Drácula aparece, Nicolas Cage rouba a cena, num mix alucinado de Bela Lugosi com Coringa e o camp sombrio dos vampiros de Roman Polanski.
Duas ironias marcam o filme. Num mundo que exala a positividade da busca obrigatória pela felicidade, a negatividade, o sombrio e o gótico representado por Drácula é incompreensível. No máximo, creem que ele é o líder de alguma gang de traficantes concorrente.
Outra ironia: quanto mais positivos, mais vulneráveis ao Mal Eterno que representa Drácula – o lado oculto do psiquismo humano que a terapêutica da felicidade pretende apenas deletar como um simples ruído na busca da felicidade.
Uma sequência do filme sintetiza essa ideia: depois da catarse na reunião com o grupo de autoajuda, Renfield foge da influência do mestre e vai morar num apartamento decorado com imagens e frases motivacionais nas paredes – assim acredita que se protegerá de Drácula. Mas esquece de um detalhe: o tapete na porta de entrada ingenuamente estampado “seja bem-vindo”. Um convite para Drácula entrar e aguardar a volta do seu escravo desgarrado – como se sabe na mitologia vampírica, o Mal somente pode entrar em uma casa quando expressamente convidado...
No geral, a percepção dominante das pessoas sobre o príncipe das trevas é que ele nada mais é do que um chefe narcísico que mantém uma relação abusiva com seu empregado. Ou melhor, toda a mitologia em torno do Mal e vampiros se resumiria a um tipo de assédio moral.
Como sempre, essa nova versão de Drácula é tributária do espírito do seu tempo: um mundo em que a cultura corporativa virou o paradigma das relações humanas. O filme parece autoconsciente disso. Razão pela qual o humor trash e slasher domina as sequências.
Paradoxalmente, quem é o mais feliz no filme é Drácula. Principalmente nas sequências em que ele assassina pessoas como um personagem lutando no game Mortal Kombat. Parece que o mundo atual é perfeito para ele. Ao contrário do passado, em que as trevas góticas inspiravam medo e terror, hoje são incompreensíveis num mundo de positividade clichê.
Nunca Drácula encontrou um mundo tão vulnerável à presença do Mal.
Ficha Técnica |
Título: Renfield |
Direção: Chris McKay |
Roteiro: Ryan Ridley, Robert Kirkman |
Elenco: Nicholas Hoult, Nicolas Cage, Awkwafina |
Produção: Universal Pictures |
Distribuição: Universal Pictures International |
Ano: 2023 |
País: EUA |