O filme “Uma Mente Brilhante” (A Beautiful Mind, 2001) foi a típica peça de propaganda de Hollywood nos anos ainda triunfantes da Globalização pós fim do bloco soviético. O filme conta a vida do gênio matemático John Nash, Nobel de Economia que revolucionou a Teoria dos Jogos aplicada ao comportamento econômico em cenários de competição e negociação. O “Equilíbrio Nash” foi a teoria redescoberta décadas depois e que caiu como uma luva no Capitalismo da Globalização. Substitui “mão invisível” de Adam Smith em um outro nível, deslocando o Capitalismo para a abstração algébrica e matemática. Tão abstrata quanto a própria biografia de Nash no filme, transformando-o no gênio “All American” e patriota, o sal da terra de West Virginia. Sofreu um tipo de “limpeza”, como a de outro gênio matemático: Alan Turing.
Nas várias críticas à Economia Política que fazia, Marx tinha uma expressão impagável: acusava os economistas burgueses de fazerem “robinsonadas” – fazendo alusão à imagem de Robinson Crusoé isolado em sua ilha, Marx acusava as análises econômicas de sempre tomarem como ponto de partida o indivíduo isolado, sem determinações sociais. O indivíduo supostamente como um produto da Natureza – leia MARX, Karl. “Introdução à Contribuição para a Economia Política”, 1859.
Por exemplo, Adam Smith acreditava que as escolhas dos agentes econômicos eram racionais: toda ambição individual acaba servindo a um interesse comum – a economia como a somatória de ações individuais racionais levaria necessariamente a um equilíbrio final e o benefício de todos. A “mão invisível”, representação da lei da oferta e procura do mercado, necessariamente garantiria o equilíbrio dos apetites egoístas pelo lucro. Sem a necessidade da mão forte de um Estado Leviatã (Hobbes) que evitasse a regressão da sociedade à violência da Natureza.
Há um pressuposto moral em Smith: toda ganância é moralmente boa. Logo, racional... por ser individual. Gordon Gekko, no filme Wall Street, repetia o mesmo mantra. Porém, de uma forma cínica porque nem ele mais acreditava nesse imperativo moral: “Greed is good”, dizia com um sorrisinho cínico no canto da boca.
Para Marx, nada mais era do que o velho vício da “robinsonada”: o raciocínio falacioso que parte sempre do pressuposto de um indivíduo abstrato, sem interesses de classe, corporativos ou políticos.
O crash econômico de 1929, no qual quase o Capitalismo foi embora pelo ralo, comprovou até onde leva a soma das escolhas individuais racionais: a “anarquia da produção” (Marx), a socialização das perdas e a privatização dos ganhos.
Porém o hábito do cachimbo entorta a boca: o terremoto de 1929 não foi o suficiente para o pensamento liberal fazer uma autocrítica e abandonar suas “robinsonadas”. A Economia Política deixou de ser “política” para migrar para um campo ainda mais abstrato: a lógica e a matemática, com a Teoria dos Jogos – ramo da matemática aplicada que estuda situações estratégicas onde os “jogadores” (termo que substituiu o indivíduo ambicioso de Smith) escolhem diferentes lances na tentativa de melhorar seus “retornos” (lucros).
Não mais a “mão invisível”, mas agora a álgebra e a lógica encontrariam as “dinâmicas governantes” para se prever as ações. Sejam em jogos não colaborativos (zoma zero) ou colaborativos, mais uma vez temos a “robinsonada”: jogadores abstratos, como se todos se equivalessem nas negociações e competições – não há distinção de poder econômico, político, de classe social etc. Isto é, não há jogadores “fortes” ou “fracos”. Todos supostamente estão no mesmo nível de “jogabilidade”.
John Nash (Russell Crowe) e John Nash (1928-2015) |
O filme Uma Mente Brilhante (A Beautiful Mind, 2001), fazendo uma biografia romantizada do gênio matemático John Forbes Nash Jr (prêmio Nobel de Economia por estabelecer o Ponto de Equilíbrio nos jogos cooperativos), foi a peça ideológica que faltava à gloriosa década da Globalização pós-queda do Muro de Berlim e o fim do Bloco Soviético.
Nash (interpretado por Russell Crowe) foi o matemático que na década de 1950 desafiou os 150 anos de hegemonia de Adam Smith e o pensamento de que o “cada um por si” era a mola propulsora da riqueza econômica. Pelo cálculo da relação custo-benefício, um jogo não poderia ser ganho de forma unilateral – os resultados só poderiam ser maximizados com o equilíbrio das estratégias individuais, resultando na cooperação, a convergência de escolhas.
Depois de décadas da hegemonia dos jogos de soma zero (afinal foram as décadas do xadrez da Guerra Fria), o “Equilíbrio Nash” voltou a ser lembrando na década de 1990. Quando a globalização e desregulamentação amplos de setores trouxe um vasto leque de fenômenos econômicos (barganhas, fusões, leilões, negociações trabalhistas e sindicais, oligopólios, sistemas de votação etc.) em que o Equilíbrio Nash apresentava a melhor resposta.
O Filme
Comovente e emocionalmente carregado, Uma Mente Brilhante é um filme que detalha a vida de um acadêmico brilhante que sofre de esquizofrenia. Essa aflição lentamente toma conta de sua mente e vemos como sua vida se desintegra ao seu redor. Ele abandona seus alunos, aliena seus colegas e substitui sua pesquisa por uma obsessão infrutífera e auto-destruidora. Eventualmente, ele é levado para o hospital, onde é forçado, com a ajuda de terapia de choque elétrico e medicação regular, a aceitar sua condição e tentar reparar os fragmentos quebrados de sua vida.
É uma história verdadeira e nosso herói não é outro senão John Forbes Nash Jr.
Quando jovem, John Nash era um gênio matemático. Em 1947, ele foi para Princeton com uma bolsa de estudos Carnegie e, depois de três anos (quase jubilado), produziu uma tese para seu doutorado, na qual expandiu muito o campo da Teoria dos Jogos, transportando-o de uma posição de relativa obscuridade para uma de relevância quase universal.
Como dramatiza o filme, o “eureca” surgiu de uma situação prosaica: na cena do bar em que todos os seus amigos querem competir entre si para conquistar uma mulher loira. Ignorando as amigas morenas. Para Nash, todos sairiam perdendo: se todos chegarem primeiro na loira, levarão um fora, e as outras amigas se sentirão menosprezadas e também darão um fora em todos.
A solução seria uma espécie de colaboração. Ninguém tem como alvo primário a loira. Cada um dos amigos chega em uma das amigas morenas menos atraentes, porém, isso vai aumentar a chance de todos se darem bem no final.
Depois da epifania, o matemático sai para rascunhar suas ideias, e agradece à loira, que não entende nada.
Na década de 1920, o pai da Teoria dos Jogos, o matemático húngaro John von Neumann, mostrou que modelos matemáticos poderiam ser usados para explicar o comportamento dos jogadores em jogos simples. Seu trabalho era limitado em escopo, no entanto, e embora interessante, parecia ser de pouca utilidade prática.
A dissertação de Nash expandiu o trabalho de von Neumann, mostrando como a Teoria dos Jogos poderia explicar o comportamento competitivo complexo e simples. Não foi uma solução abrangente para todas as situações de jogo, mas lançou as bases para o enorme corpo de trabalho sobre Teoria dos Jogos que foi produzido desde então.
Infelizmente, muito pouco disso aparece em A Beautiful Mind porque o diretor (Ron Howard) parece mais interessado em fazer um filme sobre um esquizofrênico do que um matemático que sofre de esquizofrenia. No início do filme, nos é mostrado um modelo de Hollywood de um jovem acadêmico tipicamente obsessivo, introvertido, socialmente inepto, desdenhoso do trabalho de seus colegas.
Conhecemos Nash pela primeira vez como estudante em Princeton em 1947. Ele é brilhante, mas errático - um gênio matemático que não tem habilidades sociais. Ele é ajudado a passar por esses anos difíceis por seu colega de quarto, Charles (Paul Bettany).
Anos depois, após o avanço surpreendente que revoluciona a economia com sua pesquisa de doutorado, John está ensinando no M.I.T. e fazendo um trabalho de quebra de códigos soviéticos para um agente do governo obscuro, William Parcher (Ed Harris). É neste momento que John se encontra, se apaixona e se casa com Alicia (Jennifer Connelly). Mas seu mundo feliz logo começa a desmoronar. John está afligido com alucinações paranoicas – algum tipo de conspiração comunista soviética estaria colocando sua vida em risco.
É quando ele é levado para um hospital psiquiátrico sob os cuidados do misterioso Dr. Rosen (Christopher Plummer). Nash diagnosticado como tendo um caso avançado de esquizofrenia.
John Nash e as “robinsonadas”
Claramente, a Teoria dos Jogos é mais um dos inúmeros saltos do Capitalismo para esconder suas próprias contradições: se por um lado a “mão invisível” de Adam Smith foi desmentida pelas crises econômicas cíclicas, do outro, seus economistas orgânicos dão um salto de abstração para o campo da álgebra, lógica e matemática – no final as ações egoístas (racionais) dos agentes econômicos se equilibrariam em pontos de cooperação.
Marx deve estar se revirando no túmulo com mais essa “robinsonada”: mais uma vez, agora com a Teoria dos Jogos, parte-se de um indivíduo abstrato, sem determinação social – pensa-se em jogos justos, com regras equânimes, sem lawfare, poder de classe, a força do capital, corrupção, chantagens etc.
Tudo supostamente daria certo em condições ideais de temperatura e pressão.
Mas esta “robinsonada” não fica apenas no campo teórico. O filme Uma Mente Brilhante volta essa idealização ou abstração contra a própria biografia de John Nash.
Baseado na biografia do mesmo nome escrito pela jornalista Sylvia Nasar, somado ao filme, transforma-se numa peça ideológica. Em tempo menos politicamente corretos, Nash foi ressignificado como heterossexual com uma linda esposa. E que decide abandonar, com todos os riscos, os remédios antisiolíticos e antipsicóticos para voltar a satisfazer sexualmente sua esposa.
O filme faz exatamente o que fizeram com o matemático Alan Turing: foi escondida da sua biografia a homossexualidade. E no caso de Nash, o episódio da sua prisão por “importunar” em banheiro público, o antissemitismo, filho ilegítimo e o divórcio – e posterior volta com Alícia Larde como apenas dois amigos sob o mesmo teto.
Uma Mente Brilhante transforma John Nash no gênio produto do sal da terra de West Virginia. “All American”, patriota e, principalmente, heterossexual... e com um final feliz Hollywoodiano: o discurso de recebimento do Nobel, em Estocolmo.
Na vida real, John Nash não foi convidado para o recebimento do Nobel, devido a sua instabilidade psíquica pelos longos anos de combate à esquizofrenia. Limitou-se a fazer um discurso em uma pequena festa em Princeton.
Ficha Técnica |
Título: Uma Mente Brilhante |
Diretor: Ron Howard |
Roteiro: Akiva Goldsman, Sylvia Nasar |
Elenco: Russell Crowe, Ed Harris, Jenniffer Connelly, Christopher Plummer |
Produção: Universal Pictures, Dreamworks Pictures |
Distribuição: Universal Pictures |
Ano: 2001 |
País: França, Bélgica, Lituânia |