segunda-feira, outubro 11, 2010
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Rompendo com a tradição romântica do cinema que vê o universo onírico sempre submetido ao píncípio da realidade, em "Sonhando Acordado", Michel Gondry anarquicamente inverte a fórmula, ao apresentar os sonhos subvertendo a realidade. Ao partir do princípio freudiano da "teoria das sentinelas", Gondry mantém sua crítica às "tecnologias do espírito" apresentada no filme anterior "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças"(2004).
Ao escrever e dirigir “Sonhando Acordado” (La Science dês Rêves, 2006), o francês Michel Gondry continua afiado em seu posicionamento crítico em relação às chamadas “ciências do espírito” (neurociências e toda a gama de subprodutos de técnicas e terapias que prometem felicidades e realização pela autoprogramação da mente).
Se em “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) ele satiriza as tecno-ciências que pretendem trazer a felicidade mediante o apagamento das memórias “ruins”, para que prossigamos em frente sem culpas ou mágoas, em “Sonhando Acordado” Gondry foca na defesa do sonho diante de toda tentativa da realidade em domesticá-lo para atender às suas finalidades.
Stéphane Miroux (Gael Garcia Bernal) faz um rapaz que retorna à Paris sob a promessa de sua mãe que lhe arranjara um emprego supostamente criativo como ilustrador. Stéphane, segundo sua própria definição, nunca consegue terminar nada a que se propõe e vê nesse novo emprego uma chance de se firmar na vida. Mas o emprego é uma chatice e nada criativo, na verdade apenas fazer past up para produção de calendários populares com mulheres nuas. Ao mesmo tempo, começa a flertar com a nova vizinha, Stephanie (Charlotte Gainsbourg). Com a ajuda desajeitada do colega de trabalho Guy (Alain Chabat), tenta conquistá-la, mas sem resultados.
O problema de Stephane é que ela “sonha acordado”, na verdade ele vive em constantes sonhos lúcidos que misturam sonho e realidade, dificultando a interação com as pessoas. Consciente do problema, inicia uma espécie de investigação (a “ciência do sono”, do título original) com direito inclusive a um talk-show onírico onde discorre sobre receitas de sonhos, recebe convidados, tudo na tentativa de descobri um porquê.
A primeira sequência do filme é impagável: o talk-show da Stephane TV, dentro da cabeça do protagonista, onde Stephane apresenta em um estúdio com câmeras de papelão e parede de caixas de ovos. Ele procura encontrar os ingredientes dos sonhos, resultando na fórmula que será base da sua “ciência do sono” que tenta entender e aplicar ao longo do filme:
“Como podem ver, é a combinação de ingredientes complexos. Primeiro, inserimos os pensamentos. Logo, acrescentamos um pouco de reminiscências do dia misturadas a algumas lembranças do passado. De duas pessoas. Amor, amizade, relações, e todos esses tipos, com canções ouvidas durante o dia e coisas que viram. E também, com um toque pessoal... Certo, certo. Acho que já é um... Já funcionou, sim! Sim...”
E vai jogando todos os ingredientes numa panela como um programa de receitas culinárias.
Ao longo da narrativa, quanto mais tenta controlar os sonhos para se adaptarem às exigências da realidade, mais realidade e sonho se confundem, agravando os problemas do protagonista. Entre as suas invenções malucas para entender o porquê dos sonhos e as complexas relações da mente com o encadeamento dos fatos inventa uma máquina de controlar o tempo que antecipa e atrasa alguns segundos da vida e uma técnica de controlar o sono REM com fios fixados nas órbitas dos olhos.
Dentro das cenas dos seus sonhos (engenhosamente elaboradas em animações stop motion com papelão, papel-machê, céus com algodão e água em papel celofane) ele tenta controlar os elementos da fórmula descrita no talk-show da abertura do filme, porém, cada vez menos bem sucedido.
Como vimos em postagens anterioras (veja links abaixo), essa é a ambição da atual agenda tecnognóstica: escanear, mapear e, no final, apresentar uma cartografia e topografia da mente para aplicação prática de controle e a mais fácil inserção de programações, ideias e memes nas mentes. Em referência a esta ambição tecnognóstica, as falas de Stephane são carregadas de termos que lembram física quântica e neurociências: “é simplesmente uma aplicação da teoria do caos”, “Causalidade Paralela Sincronizada”, “vínculo complexo” etc.
Suas invenções são ironizadas pela vizinha Stephanie como, por exemplo, quando o protagonista apresenta óculos para ver tudo em 3-D: “Mas a vida já não é em 3-D?”, pergunta Stephanie diante da inutilidade da invenção.
Freud e os mecanismos de defesa do sono
A originalidade do filme “Sonhando Acordado” está em apresentar um novo viés no confronto Sonho X Realidade, velho tema da história do cinema: tudo sempre gira em torno do choque ou confronto entre as duas esferas e dos mecanismos conspiratórios da Realidade (Estado, Governos, Cientistas etc) mobilizados para dominar e derrotar o mundo onírico. Por exemplo, os filmes de Terry Gilliam (“Brazil, o Filme”, “O Pescador de Ilusões” ou o recente “O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus”) insistentemente abordam esse tema comum, resultando numa abordagem romântica onde o mundo onírico e da imaginação sempre perde no confronto com o mundo frio e cruel da racionalidade.
Ao contrário, “Sonhando Acordado” apresenta a reação dos sonhos onde, através de um engenhoso mecanismo de defesa, vai incorporando os estímulos da realidade exterior até incorporá-la dentro da lógica onírica, conduzindo à vitória final.
Esse “mecanismo de defesa” é a chamada “teoria das sentinelas”, apresentada por Freud na abertura do seu livro “A Interpretação dos Sonhos” e, por muito tempo, ignorado. Desse livro de Freud, o que sempre foi colocado em destaque foi a interpreção simbólica dos sonhos por meio das condensações e deslocamentos. Mas o que primeiro chamou a atenção de Freud foram conteúdos dos sonhos que tinham a ver com elaborados mecanismos de proteção do sono contra fatores perturbadores internos (desde dores de cabeça ou preocupações) ou externos (barulhos de trovões ou sons de relógios despertadores).
Por exemplo, se o despertador toca é muito comum o sonho disfarçar a campainha de alarme, tecendo com ela um história qualquer...Você está na igreja, com os sinos tangendo; ou então num escritório, onde um telefone estridente reclama que o atendam". Dado o estímulo, o sonho cria o cenário, fornece atores e adereços para as cenas, tudo isso extraído das experiências e impressões do dia-a-dia de quem está dormindo. O sono é uma necessidade fisiológica e o sonho tenta protegê-lo.
Parece que Gombry inspirou-se nessa característica dos conteúdos dos sonhos para apresentar a reação do universo onírico frente a invasão da realidade. Como grita, a certa altura do filme, a personagem Stephanie: “Anarquia para os Celofanes!” para defender a supremacia dos sonhos sobre a Realidade. Quanto mais a narrativa avança, os sonhos vão se sobrepondo à realidade, dando uma continuidade onírica a cada evento do mundo real. Quando, por exemplo, Stephanie abre a torneira e sai água em papel celofane. A cada estímulo externo, o mundo onírico responde incorporando-o para dar a continuidade dentro do sonho, até dominar a realidade e o protagonista cair no sono final.
A “ciência do sono” é derrotada na vã esperança de tornar produtivas as relações do protagonista no mundo real (no amor, no trabalho, na família). É a defesa do sonho e do inconsciente frente ao assalto das tecnologias do espírito tecnognósticas. Portanto, ANARQUIA PARA OS CELOFANES!
Ficha técnica
Filme: Sonhando Acordado (La Science dês Rêves)
Direção: Michel Gondry
Roteiro: Michel Gondry
Elenco: Gael Garcia Bernal, Charlotte Gainsbourg, Alain Chabat, Miou-Miou
Produção: Gaumont, France 3 Cinema, Partizan Films
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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