sábado, março 27, 2021

Lula livre? Esquerda mais uma vez capturada pelo imaginário e o tautismo do Judiciário


O “GilMAU Mendes” reduziu a pó de traque o “Kássio com K”. As redes sociais progressistas lavaram a alma com a virada no julgamento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no STF. Enquanto o Goverso está confortável com as ruas vazias, a esquerda está mesmerizada por tribunais e julgamentos que têm a marca registrada “made in USA” da guerra híbrida dos senhores da guerra Obama e Biden: o gosto norte-americano pelos dramas legais no cinema: os tensos dilemas morais de juízes, tribunais e advogados. Guerra híbrida criptografada para encobrir a mudança de narrativa com a proximidade do ano eleitoral num cenário da catástrofe sanitária da pandemia. A esquerda mais uma vez foi capturada pelo jogo tautista do Judiciário que mantém vivo os elementos do imaginário prontos para serem ativados no futuro: o Herói antissistema, Judicialialização, Justiçamento, Meganhagem e a panaceia do combate à corrupção.  

“Esta é a conjuntura menos desfavorável para a resistência democrática e popular nos últimos seis anos e abre efetivamente, pela primeira vez, a possibilidade de se alterar o atual período defensivo e de derrota histórica para iniciar a restauração democrática e a reconstrução nacional", escreveu o jornalista Jeferson Miola. 

O diagnóstico do jornalista é uma amostra da onda de otimismo e esperança que varre o campo político progressista desde que a segunda turma do STF declarou a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro. Mas não sem os requintes dramáticos da clássica Jornada do Herói no cinema: primeiro, a morte do herói através do surpreendente voto do ministro Kassio Nunes a favor de Moro dando maioria de 3X2 à rejeição do HC de Lula. 

Mas, eis que o herói ressuscita no final (assim como Neo, ressuscitado pelo amor de Trinity em Matrix) mudando no último instante o seu voto, declarando a parcialidade de Moro. Vitória de virada! De virada é mais gostoso!

Em seguida, o que se viu foi o massacre do ministro Gilmar Mendes contra o voto de Kássio Nunes (o “Kássio com K”, como as redes sociais ironizaram) relembrando o clichê clássico da morte do vilão pelo herói ressuscitado: não basta matar o vilão uma vez, tem que ser várias vezes através da técnica de sobreposição de tempo (overlap) – um trecho da ação é repetido por vários ângulos diferentes.

“GilMAU Mendes” (assim as redes sociais celebrizaram o ministro) chamou-o de “covarde”, de que “não é garantista nem aqui e nem no Piauí”, de “desonestidade intelectual” num discurso em roll over que fez até esse humilde blogueiro saltar da poltrona de tanta gargalhada... uma autêntica catarse, uma lavada de alma para os corações esquerdistas, depois que a ministra Carmen Lucia garantiu a virada.



O que impressiona esse humilde blogueiro nessa história toda é que assistimos na verdade a um subproduto da guerra híbrida brasileira promovida pelos senhores da guerra Obama e o atual presidente Joe Biden (ou “Sleep Joe”, segundo Trump) – passamos a emular o gosto dos norte-americanos por dramas legais: filmes sobre dramas em torno de tribunais seguindo as vidas de advogados, réus, jurados e dilemas éticos e morais.



O protagonismo midiático do Judiciário

Desde o chamado “Mensalão”, ministros do STF, juízes, desembargadores e procuradores passaram a gozar de um protagonismo midiático nunca antes visto no Brasil – até a Globo inventou o “Prêmio Innovare” para, segundo ela, “premiar as melhores práticas que aprimoram a Justiça no Brasil”.

Made in USA. A guerra híbrida da qual o Brasil se tornou alvo dentro do tour de revoluções coloridas que varreram importantes polos geopolíticos do planeta traz em seu DNA o ethos norte-americano. Um exemplo é justamente a canastrice do drama legal hollywoodiano que alimenta o imaginário da judicialização e do justiçamento – voltaremos a esses dois conceitos adiante.

Por que principalmente a esquerda e o campo progressista acabaram se tornando torcedores de julgamentos do STF, comemorando votos e decisões como se comemorasse um gol de placa de um craque do seu time de futebol amado?

O otimismo do diagnóstico de Jeferson Miola é sintomático: “acompanhamos a conjuntura menos desfavorável para a resistência democrática nos últimos seis anos...”... mas o quê a resistência da esquerda fez para mudar essa conjuntura? As ruas estão tomadas? Há fileiras de pneus queimando nas estradas, isolando grandes cidades? Estão ocorrendo distúrbios, quebra-quebras, saques e manifestações políticas generalizadas? Centrais sindicais estão liderando greves nacionais e grandes protestos nas maiores capitais? O Governo está isolado sob a ameaça da sublevação social?

Não. Desde o golpe de 2016, mas principalmente após à derrota nas eleições de 2018, a esquerda se tornou como aquele penetra animado que fica na porta da festa tentando entrar de qualquer jeito. Sem protagonismo e fora das ruas (e a pandemia foi o golpe de misericórdia), limita-se a ver a direita lutar contra a extrema-direita num MMA político – Doria versus Bolsonaro, por exemplo.  

Por isso, tornou-se um ávido espectador de dramas legais made in USA, mesmerizado com a jornada do herói Lula, aguardando quando ressuscitará e voltará para casa com o elixir mágico. Sebastianismo híbrido.




Mudança de narrativa

Para além da canastrice do drama legal, o que esse novo filme do gênero produzido e performado pelo STF  representa é uma mudança de narrativa com a proximidade do cenário eleitoral de 2021.

Bolsonaro é um fusível prestes a ser queimado, mas... não queima! No plano do sistema político, o presidente não tem oposição, principalmente depois que colocou as duas casas do Congresso no bolso com Arthur Lira (câmara) e Rodrigo Pacheco (senado). O Congresso e a grande mídia (em particular a Globo) se limitam a fazer o jogo de morde-assopra. Afinal, Bolsonaro foi o candidato manchuriano (clique aqui) e cavalo de troia que trouxe em seu bojo as reformas desejadas (e ainda não totalmente entregues) pelo Big Money – a banca credora do Estado e patrocinadora da grande mídia.

Diante de uma oposição inerte, paradoxalmente o governo tem que criar uma oposição contra si próprio com, p. ex., falas ambíguas sobre “remédio amargo” de Arthur Lira contra Bolsonaro ou o gesto de supremacista branco do assessor especial de Bolsonaro, Filipe Martins, em plena audiência do Senado. Necessidade estrutural da guerra criptografada: criar constantemente pseudo-eventos, factoides, tensões, desmentidos etc.

Da mesma forma, num cenário político inerte onde até mesmo os mais de 300 mil mortos numa pandemia que colapsa o sistema de saúde público e privado não conseguem acender o rastilho da revolta, surge o imperativo estrutural de mudança da narrativa: de repente, três anos depois “cai a ficha” nos eminentes ministros de que o ex-juiz Moro tinha, sim, motivação política e, portanto, deve ser declarado como suspeito. 

Em seu perfil do Facebook, o antropólogo e professor da UFSCar, Piero Leirner, levanta uma relevante questão nesse xadrez: 

Levando em consideração o que foi dito, me corrijam se estiver errado, ISSO TUDO NÃO SE CONSTITUIRIA EM CRIME? Não deveria ser objeto de ação? Mas não vai, inclusive porque recai sobre o próprio STF (isso sem falar nos propósitos do próprio MPF, da PF, etc.). O que vimos, ao contrário do que se está falando, foi uma espécie de anistia, "79-type". Não o HC em si, que como bem lembrou Marc Nt não gera recurso, mas seu efeito político, anestésico – clique aqui.

Muda-se o foro do julgamento de Lula, declarando a vara de Curitiba incompetente e, ao mesmo tempo, declara Moro juiz politicamente parcial... tudo sem constituir crime. O quê está por trás dessa súbita mudança de narrativa.

Talvez um pouco de teoria dos sistemas do sociólogo e jurista alemão Niklas Luhmann com uma pitada irônica do conceito de tautismo do francês Lucien Sfez nos ajude a entender esse xadrez.

Tanto a Justiça quanto a Política são subsistemas autopoiéticos que não se reproduzem de outra forma a não ser a partir de suas próprias estruturas. Tornam-se sistemas tautistas (tautologia + autismo) com duas características fundamentais: 

(a) fechamento operacional (o sistema torna-se cognitivamente cego ao mundo exterior); 

(b) o mundo exterior torna-se um input, interpretado a partir da descrição que o sistema faz de si próprio. 

Acoplado estruturalmente com o subsistema político (dentro do consórcio Exército-Judiciário-grande mídia) os inputs do mundo exterior (a catástrofe sanitária da pandemia na proximidade do ano eleitoral) são traduzidos como necessidade de mudança de narrativa: sem ter cometido crime contra o Estado de Direito, o ex-juiz Moro é liberado pelo subsistema judiciário a se tornar celebridade política antissistema (voltaremos a esse ponto adiante). 

A mudança de narrativa eletriza os subsistemas, coloca em movimento a dinâmica autopoiética judicial (duelo Plenário X Turma, Foro X Parcialidade etc.) e política (Moro X Lula), transformando a oposição em espectadora de um drama legal hollywoodiano. 




Altera-se a narrativa, porém mantendo-se intacto o imaginário, a energia do inconsciente coletivo que aumenta a letalidade de qualquer bomba semiótica. Estamos tomando aqui o conceito de imaginário como um conjunto de cenas e imagens que estão dando sentido à nossa vida desperta e aos nossos sonhos.

Na verdade, o que a esquerda comemora como simples espectadora é a mudança de narrativa que esses subsistemas tautistas estão operando. Mas deixando intacto o mais importante: o imaginário, energia do inconsciente coletivo estocada, em stand by, pronta para ser acionada por bombas semióticas que começarão a ser detonadas na proximidade das próximas eleições presidenciais. 

Quais são esses elementos do imaginário? Vamos listá-los:

(a) Herói/Mito

Evento sincrônico: todos os anos calouros da FGV (Fundação Getúlio Vargas) fazem gincana para conseguir o maior número de vídeos das “celebridades” – diretores e primeiros fundadores da faculdade. Mas a bem relacionada aluna “Gabi” interpretou na literalidade a competição: fez vídeos de uma lista de celebridades midiáticas como Xuxa, Marcos Mion, Thiago Martins, Otaviano Costa e... Sérgio Moro. Cujo vídeo obviamente mereceu destaque aqui e ali na grande mídia como uma das celebridades da lista da Gabi da FGV.

Esse é o início da carreira profana de herói de Moro, livrando-se da sua condição de Mito, quando era juiz do Olimpo da Vara Federal da República de Curitiba. Como personagens olimpianos, os mitos têm um caráter mais sagrado, religioso ou épico. Por sua vez, o herói tem o caráter mais profano, trágico – ele tem que confrontar o destino por enfrentar inimigos enviados pelos deuses. Na versão secularizada do herói, tem que enfrentar os inimigos do “sistema”.

Destituído da aura da toga, Moro está pronto para o embate político como herói antissistema – o sistema que libertou inimigos poderosos, como Lula, contrariando os firmes propósitos do então mito Juiz Moro.

Moro começará a aparecer aos poucos na grande mídia nessa condição profana de celebridade, assim como foi com o então desconhecido Collor de Mello em 1988, estreando na televisão no aniversário do Chacrinha, na TV Globo. 

Por sua vez, Moro inicia sua carreira de herói no vídeo da “Gabi da FGV”...


Moro está entre as "celebridades" da Gabi da FGV


(b) Judicialização da Política

É o elemento imaginário que anima e justifica o acoplamento estrutural perfeito entre os subsistemas da Justiça e da Política. Formalmente a política é mantida com eleições, partidos etc. Porém, quando qualquer conflito social, político ou administrativo aparece, é levado ao Judiciário para uma resolução. 

O efeito é o domínio total de espectro: todos os possíveis conflitos políticos esquerda/direita, situação/oposição são suspensos à espera das decisões dos ministros, desembargadores, promotores, juízes etc.

Um exemplo é a proposital inação do governo Bolsonaro diante da crise da pandemia para que qualquer coisa em torno da questão seja judicializada: medidas restritivas de circulação, cronograma da aquisição de imunizantes, plano de vacinação, tudo vira pauta do STF. 

Essa judicialização proposital reforça o próximo elemento do imaginário: o Justiçamento.

(c) Justiçamento

Na estrita acepção do termo, é o efeito de justiçar, punir com a morte ou linchamento. Motivando o descrédito nas instituições de Justiça do país. 

Quando vemos luminares da grande mídia como o açougueiro neoliberal Carlos Sardenberg e o imortal recalcitrante Merval Pereira saindo em defesa da Lava Jato sugerindo que os dispositivos legais do Estado de Direito são meros “formalismos jurídicos” para proteger criminosos, estamos testemunhando o reforço diário desse elemento imaginário. A narrativa pode até mudar (a suspeição do juiz Moro), mas o imaginário permanece, pronto para ser disparado na próxima bomba semiótica.

(d) Meganhagem

Elemento estético-fetichista do imaginário, reforçado ainda mais pelo Mito Bolsonaro com a defesa do armamento da população.

O “Hilbert da PF”, o “policial gato que prendeu o Lula” como deu manchete a grande mídia em 2018; a anual “Corrida Contra a Corrupção” promovida pela Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF) como parte da “Campanha pela Autonomia da PF”, com destaque na mídia com fotos de atletas correndo com camisas negras com insígnia da ADPF. Ao lado do mantra diário que abria telejornais (“Policiais federais nas ruas!”) foi o alimento diário desse imaginário fetichista.




Uma fila interminável de armas lubrificadas, reluzentes, coldres, metralhadoras empunhadas ao nível da virilha prontas para entrar em ação tanto no cinema como na TV, em minisséries nacionais, telenovelas e na enésima operação da Lava Jato nos telejornais.

Armas e meganhas (soldado de polícia) se transformaram em diagnóstico de todos os problemas nacionais: indicadores sociais como educação, saúde e emprego estão caindo? Então a culpa só pode ser da corrupção e meganhas com armas brilhantes e seus óculos “thug life” são a solução - caçar e prender corruptos e expô-los às câmeras como fossem caçadores de cabeças a prêmio.

(e) Combate à corrupção

Pedra de toque de todo esse edifício imaginário arduamente mantido pela guerra híbrida. Mesmo diante das evidências que o custo da corrupção seja muitas vezes menor do que os gastos da dívida pública, cujo execução da maior parte do orçamento federal é rigidamente vigiada pela banca credora do Estado – e, por isso, impondo reformas fiscais e tetos de gastos para sacrificar programas sociais, saúde e educação em nome da “honra” dos pagamentos dos juros.

Enquanto o pagamento de juros e amortizações da dívida chega a 1,380 trilhões de reais (40% do Orçamento Federal Executado em 2020), o “preço” da corrupção no Brasil chegaria ao superestimado valor de 69 bilhões de reais – clique aqui.

Logicamente, a histeria midiática em torno do “combate à corrupção” é o álibi sob o qual o Big Money oculta-se ao apoiar cavalos de troia como Bolsonaro. 

Considerações finais

(a) A esquerda comemora a mudança de narrativa, ignorando que o imaginário está não só está intacto, mas ainda reforçado com a queda para cima de Moro: de juiz parcial (sem cometer crime) para o herói antissistema. Alternativa e possível “esperança branca” para o Big Money depois de queimar o fusível Bolsonaro e colocá-lo na polarização “extrema direta X extrema esquerda com Lula;

(b) Os elementos do imaginário estão lá no inconsciente coletivo e ativos. Basta ver o sincericído recente da celebridade Xuxa ao sugerir usar presos para testes de remédios e vacinas: “Que sirvam para alguma coisa” – o justiçamento travestido de “empatia pandêmica”. 

Historicamente sempre a esquerda ignorou a questão do imaginário. Não é para menos que sempre perca na conquista de corações e mentes. Ignora que todas as bombas semióticas disparadas contra ela sempre fazem a ligação entre a narrativa do momento e o imaginário atemporal: o inconsciente coletivo que, até hoje, nunca combateu em ações de guerra semiótica.  

 

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