quinta-feira, outubro 20, 2016

Netflix, Operação Lava Jato e o "Smart Power"


O Netflix anunciou para o ano que vem uma série baseada na atual Operação Lava Jato, em cartaz na grande mídia desde 2014, estrelada pelo protagonista Sergio Moro. Curioso sincronismo entre uma operação, cujas ações sempre foram pautadas por simbolismos e timing midiático, e uma série ficcional inspirada em evento real ainda em evolução. Desde “House of Cards”, o Netflix vem protagonizando recorrentes “coincidências significativas” – parece que suas produções pontuam e até interveem na atual crise política brasileira. Coincidência? Ou estamos testemunhando a nova política externa da chamada “Smart Power” (Hard Power + Soft Power) implementada por Hilary Clinton no Departamento de Estado dos EUA em 2009? Armas e bombas + indústria do entretenimento, produções midiáticas que estariam além da mera imposição ideológica. Agora, sofisticada engenharia de opinião pública onde eventos reais dialogam com narrativas ficcionais, até que paradoxalmente a realidade se torne verossímil por meio da ficção: se virou série, então é verdade!

Durante as audiências de confirmação no senado para se tornar Secretária de Estado do Governo Barack Obama em 2009, Hillary Clinton disse: “A América não pode resolver sozinha os problemas mais prementes, e o mundo não pode resolve-los sem os Estados Unidos. Devemos usar o que tem sido chamado de ‘Smart Power’, a gama completa de ferramentas à nossa disposição”.

A Netflix confirmou que está iniciando a produção uma nova série idealizada pelo cineasta José Padilha (Tropa de Elite, Robocop e Narcos) baseada na Operação Lava Jato, em cartaz ininterrupto na mídia nacional nos últimos dois anos  e estrelada pelo juiz de primeira instância de Curitiba Sérgio Moro – e até agora, dois atores sondados (Wagner Moro e Rodrigo Lombardi) para representar o protagonista na série recusaram o convite de Padilha.

Qual as relações entre o conceito de estratégia de política internacional Smart Power criada pelo Center of Strategic and International Studies (CSIS), colocado em ação por Hillary Clinton como Secretária de Estado, e as produções do canal de streaming Netflix?

Como os leitores do Cinegnose já devem ter percebido, esse humilde blogueiro acredita que entre a ficção e a realidade há diversas conexões, sejam elas sincromísticas (coincidências significativas), por imitação (efeito copycat), intencionais (engenharia de opinião) ou  simulação (a hipótese gnóstica da Matrix) .

Temer e Frank Underwood: crise política brasileira é uma versão canastrona de "House of Cards"?

Coincidências significativas


Há recorrentes “coincidências significativas” entre produções Netflix e eventos políticos brasileiros recentes, tão recorrentes que começamos a suspeitar em uma sofisticada estratégia de engenharia de opinião dentro da política internacional ampla e ambiciosa do Smart Power – a combinação entre Hard Power (a força militar e bélica) e Soft Power (mídia e indústria do entretenimento) capaz de costurar alianças e parcerias com instituições de todos os níveis para expandir a influência norte-americana e legitimar suas ações.

Para começar, a série House of Cards que narra a trajetória do líder Democrata no Congresso que articula, com ardil, traições e mentiras, sua chegada ao centro do Poder no Salão Oval da presidência. Lançada em 2013, em plena campanha eleitoral brasileira à presidência, tornou-se cultuada no Brasil ao surfar na ascensão neoconservadora da rejeição à política – como em Brasília, na série um vice-presidente articula o impeachment presidencial para chegar ao Poder.

Ao explorar os tradicionais clichês hollywoodianos (o mito do Mr. President, o mito do Príncipe Maquiavélico, o mito do “Estado Sou Eu!” e o retrato dos jornalistas como um bando de patifes sem esperanças – sobre os mitos da série clique aqui) a série caiu como uma luva na opinião pública brasileira – a rejeição in totum dos políticos, cujo reflexo podemos acompanhar nas últimas eleições com número recorde de abstenções e votos nulos.


Mais tarde, a mesma série envolveu-se em outro sincronismo: às cinco horas da manhã de uma sexta-feira de março desse ano a Netflix liberava no Brasil a quarta temporada de House of Cards. Uma hora depois, a TV Globo transmitia ao vivo a condução coercitiva de Lula por 200 homens da Polícia Federal dentro de mais uma etapa da Operação Lava Jato.

Além dos aspectos jurídicos, investigativos e policiais, sabemos que a Operação Lava Jato possui um apurado senso para explorar temas simbólicos e midiáticos nas buscas, prisões, delações e vazamentos – etapas como nomes insólitos, policiais federais com ostentação fetichista de armas e uniformes negros de snipers, vazamentos acompanhando o timing das redações etc.

Convergências oportunas


Por isso, não é de espantar que a Operação Lava Jato, a crise política e a série Netflix House of Cards tiveram convergências oportunas:

(a) Em 2015 a grande mídia enchia a bola do vice Michel Temer atribuindo a ele a esperança de uma solução para a crise política quando assumisse o lugar da presidenta Dilma. Parecia o roteiro das primeiras temporadas de House Of Cards.

(b) No final do ano passado, numa entrevista dada à BBC Brasil, o ministro do STF Gilmar Mendes (notório inimigo político do PT) disse que “a corrupção e a disputa pelo poder a qualquer custo exibidas na série House of Cards se repetem em Brasília” – sobre isso clique aqui.

E agora nesse ano, em pleno momento crucial da crise política (impeachment e a eminente prisão de Lula pela Lava Jato – a prisão de Eduardo Cunha é apenas um simbolismo para demonstrar a suposta imparcialidade de Moro), a Netflix anuncia a produção de série baseada nas investigações da Lava Jato.

Tanto Erick Barmack (vice-presidente de produções originais da Netflix) como o cineasta José Padilha se apressaram em declarações carregadas de juízo de valor: “O Netflix reconhece o talento de Padilha para documentar esse momento importante na história do Brasil”, disse Barmack.

“Esse projeto vai narrar a operação policial em si e mostrar detalhes do maior esquema de corrupção já visto no Brasil”, afirmou Padilha.

Diferente de outras produções históricas e políticas do gênero (produções a posteriori dos acontecimentos, resultantes de pesquisas e depoimentos de pontos de vista diversos), a Netflix parece se notabilizar por séries ou filmes sobre eventos ainda em constante evolução, quase como uma intervenção ficcional em um evento real em desenvolvimento.

Podemos estabelecer uma triangulação cujos vértices seriam Operação Lava Jato, Netflix e Departamento de Estado dos EUA? Qual a motivação e contexto? Muito menos o combate à corrupção (que, como veremos, marotamente a política de Smart Power associa com o combate ao terrorismo internacional) e muito mais o controle da geopolítica do petróleo, ameaçada pelas jazidas do Pré-sal brasileiro.

Alguns fatos para considerar:


(a) O caso do telegrama “Moro-Wikileaks”


Um relatório da Embaixada dos EUA em Brasília para o Secretário de Estado daquele País sobre a Conferência realizada no Rio “Crimes Financeiros Ilícitos” em 2009. Curso financiado pelo Departamento de Estado norte-americano onde Sérgio Moro é apresentado como “Juiz Federal de Lavagem de Dinheiro” - cargo fictício inventado para destaca-lo entre os 2.089 juízes federais que tratam o tema diariamente).

Moro foi um dos instrutores do curso. A proposta era convencer as autoridades do judiciário brasileiro a “passarem a colaborar” com autoridades e membros da Inteligência policial e militar de outro país.

O mais importante é que o Curso pretendia aproximar a questão da corrupção (“finanças ilícitas) com o combate ao terrorismo internacional – lavagem de dinheiro como forma de financiar grupos terroristas.

O telegrama elogia o “engajamento  do processo judicial brasileiro na luta contra o terrorismo” e destaca positivamente “juízes e policiais brasileiros que militam na direção oposta a do governo eleito e seu Ministério de Relações Exteriores” – clique aqui para ler o telegrama disponível no Wikileaks.


(b) O lobby Netflix


Ironicamente, enquanto produz House of Cards, que denuncia as relações promíscuas do lobismo na política, o Netflix dispendeu só em 2013 1,2 milhões de dólares em esforços lobistas tendo como alvo a Casa Branca e o Congresso. O objetivo era a aprovação da legislação da neutralidade da Internet - princípio de que os fornecedores de serviços da Internet não devem penalizar os provedores de conteúdo que ocupam grande espaço na banda larga com taxas extras ou conexões mais lentas – sobre isso leia “Netflix stacking deck in Capitol Hill” In: The Center of Public Integrity.

Com 17 lobistas representando seus interesses no Congresso e Governo Federal, é tentador especular como os produtos ficcionais da provedora de streaming podem eventualmente fazer parte da política externa de Smart Power.


(c) Smart Power


Por si só, o poder de coerção militar associado à indústria do entretenimento norte-americano cujos produtos são irradiados para todo o planeta não é o suficiente. Quando o ditador coreano Kim Jong II confessa que adora assistir aos filmes hollywoodianos, enquanto desafia os EUA com o seu programa de armas nucleares, algo está errado na política externa dos EUA.

Pesquisas de opinião apontam para uma queda dramática de atratividade dos valores americanos na Europa e América Latina, e mais dramaticamente no mundo muçulmano – sobre isso clique aqui.

Desde a Segunda Guerra Mundial, a irradiação dos produtos de entretenimento dos EUA para o mundo tem uma finalidade meramente doutrinária, principalmente no contexto da Guerra Fria: expandir o american way of life, principalmente na América Latina; e criar a ameaça do inimigo externo, dos comunistas aos terroristas islâmicos.

Por exemplo, é bem conhecido como o filme Doutor Jivago (1966), ambientado na Revolução Russa de 1917, foi explorado politicamente como um retrato dos horrores de uma revolução comunista – decadência, perseguições e suicídios.

Após os atentados de 2001 nos EUA e a ineficiência demonstrada por uma política externa orientada pelo Hard Power do governo Bush, sob a administração Obama Hillary Clinton começa a aplicar estratégias de Smart Power sugeridas pelo CSIS no documento “Investing in a New Multilateralism”.

Desde então, percebe-se que as produções hollywoodianas não mais se limitam à doutrinação em torno de valores americanos e a criação do inimigo externo. Elas agora assumem um papel de intervenção ficcional em eventos reais ainda em evolução: O Homem Mais Procurado do Mundo (2012), Guerra ao Terror (2008), O Mensageiro (2009), Green Zone (2010) entre outros são filmes ambientados no Oriente Médio sobre conflitos em andamento.

O que cria eventos sincromísticos como no ataque em Nice no Dia da Bastilha: estava previsto para lançamento nesse mesmo dia o filme ação Bastille Day cuja narrativa gira em torno de agentes da CIA que pretendem parar um ataque terrorista programado para 14 de julho, Dia da Bastilha – sobre isso clique aqui.

Segundo David McConell e Yasushi Watanabe no livro “Soft Power Superpowers” (New York: Routledge, 2015) as fronteiras entre ficção e realidade desaparecem: o Pentágono vem fornecendo aos produtores de Hollywood autênticos arsenais militares – mariners, helicópteros, bombardeiros B-2, jatos F-16 além de 5.000 soldados do exército dos EUA para filmagens em locações reais de conflito. A logística de estúdios hollywoodianos pagos com impostos e dinheiro público.

Filme "Bastille Day" e os ataques na França: eventos sincrônicos

Muito além da doutrinação ideológica


  Smart Power significa muito mais do que a mera doutrinação ideológica. Parece ser uma elaborada engenharia de opinião pública na qual as ações reais são legitimadas ou tornadas verossímeis a partir da linguagem ficcional.

É a inversão da lógica perceptiva: não temos mais filmes que ideologicamente justificam guerra, golpes ou intervenções políticas dos EUA em defesa da “Democracia” pelo mundo, como foi o programa “Arsenal da Democracia”, campanha do Departamento de Estado para a produção de filmes que apoiassem a participação dos EUA com os aliados na Segunda Guerra Mundial.

Mas agora, filmes tão “realistas” quanto possível, seguindo o timing dos eventos reais. De tal sorte que os próprios eventos reais assumem o timming midiático – modus operandi, personagens etc. Se o evento transformou-se em filme, então é real!

Portanto, o anúncio da produção pelo Netflix de uma série inspirada no principal braço armado jurídico que derrubou um governo e no exato momento de crise de legitimidade de um novo governo que tem a dura missão de fatiar o pré-sal e impor goela abaixo da sociedade os amargos remédios neoliberais (PEC 241 é o primeiro deles), é muito mais do que mera coincidência ou oportunismo comercial.

E o tom apologético dado à série, desde o início, nas declarações do executivo do Netflix Erick Barmack e do cineasta José Padilha, apontam para isso.

Podemos estar testemunhando a política de Smart Power norte-americano em plena ação. O desfecho de uma estratégia iniciada silenciosamente em 2009 em um curso financiado por uma embaixada em Brasília.  

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