O
Netflix anunciou para o ano que vem uma série baseada na atual Operação Lava
Jato, em cartaz na grande mídia desde 2014, estrelada pelo protagonista Sergio
Moro. Curioso sincronismo entre uma operação, cujas ações sempre foram pautadas
por simbolismos e timing midiático, e uma série ficcional inspirada em evento
real ainda em evolução. Desde “House of Cards”, o Netflix vem protagonizando
recorrentes “coincidências significativas” – parece que suas produções pontuam
e até interveem na atual crise política brasileira. Coincidência? Ou estamos
testemunhando a nova política externa da chamada “Smart Power” (Hard Power +
Soft Power) implementada por Hilary Clinton no Departamento de Estado dos EUA
em 2009? Armas e bombas + indústria do entretenimento, produções midiáticas que
estariam além da mera imposição ideológica. Agora, sofisticada engenharia de
opinião pública onde eventos reais dialogam com narrativas ficcionais, até que
paradoxalmente a realidade se torne verossímil por meio da ficção: se virou
série, então é verdade!
Durante
as audiências de confirmação no senado para se tornar Secretária de Estado do
Governo Barack Obama em 2009, Hillary Clinton disse: “A América não pode
resolver sozinha os problemas mais prementes, e o mundo não pode resolve-los
sem os Estados Unidos. Devemos usar o que tem sido chamado de ‘Smart Power’, a
gama completa de ferramentas à nossa disposição”.
A
Netflix confirmou que está iniciando a produção uma nova série idealizada pelo
cineasta José Padilha (Tropa de Elite,
Robocop e Narcos) baseada na
Operação Lava Jato, em cartaz ininterrupto na mídia nacional nos últimos dois
anos e estrelada pelo juiz de primeira
instância de Curitiba Sérgio Moro – e até agora, dois atores sondados (Wagner
Moro e Rodrigo Lombardi) para representar o protagonista na série recusaram o
convite de Padilha.
Qual
as relações entre o conceito de estratégia de política internacional Smart
Power criada pelo Center of Strategic and International Studies (CSIS),
colocado em ação por Hillary Clinton como Secretária de Estado, e as produções
do canal de streaming Netflix?
Como
os leitores do Cinegnose já devem ter
percebido, esse humilde blogueiro acredita que entre a ficção e a realidade há
diversas conexões, sejam elas sincromísticas (coincidências significativas),
por imitação (efeito copycat), intencionais (engenharia de opinião) ou simulação (a hipótese gnóstica da Matrix) .
Temer e Frank Underwood: crise política brasileira é uma versão canastrona de "House of Cards"? |
Coincidências significativas
Há
recorrentes “coincidências significativas” entre produções Netflix e eventos
políticos brasileiros recentes, tão recorrentes que começamos a suspeitar em
uma sofisticada estratégia de engenharia de opinião dentro da política
internacional ampla e ambiciosa do Smart Power – a combinação entre Hard Power
(a força militar e bélica) e Soft Power (mídia e indústria do entretenimento)
capaz de costurar alianças e parcerias com instituições de todos os níveis para
expandir a influência norte-americana e legitimar suas ações.
Para
começar, a série House of Cards que
narra a trajetória do líder Democrata no Congresso que articula, com ardil,
traições e mentiras, sua chegada ao centro do Poder no Salão Oval da
presidência. Lançada em 2013, em plena campanha eleitoral brasileira à
presidência, tornou-se cultuada no Brasil ao surfar na ascensão neoconservadora
da rejeição à política – como em Brasília, na série um vice-presidente articula
o impeachment presidencial para chegar ao Poder.
Ao
explorar os tradicionais clichês hollywoodianos (o mito do Mr. President, o
mito do Príncipe Maquiavélico, o mito do “Estado Sou Eu!” e o retrato dos
jornalistas como um bando de patifes sem esperanças – sobre os mitos da série clique aqui) a série caiu como uma luva na
opinião pública brasileira – a rejeição in
totum dos políticos, cujo reflexo podemos acompanhar nas últimas eleições
com número recorde de abstenções e votos nulos.
Mais
tarde, a mesma série envolveu-se em outro sincronismo: às cinco horas da manhã
de uma sexta-feira de março desse ano a Netflix liberava no Brasil a quarta
temporada de House of Cards. Uma hora
depois, a TV Globo transmitia ao vivo a condução coercitiva de Lula por 200
homens da Polícia Federal dentro de mais uma etapa da Operação Lava Jato.
Além
dos aspectos jurídicos, investigativos e policiais, sabemos que a Operação Lava
Jato possui um apurado senso para explorar temas simbólicos e midiáticos nas
buscas, prisões, delações e vazamentos – etapas como nomes insólitos, policiais
federais com ostentação fetichista de armas e uniformes negros de snipers,
vazamentos acompanhando o timing das redações etc.
Convergências oportunas
Por
isso, não é de espantar que a Operação Lava Jato, a crise política e a série
Netflix House of Cards tiveram
convergências oportunas:
(a)
Em 2015 a grande mídia enchia a bola do vice Michel Temer atribuindo a ele a
esperança de uma solução para a crise política quando assumisse o lugar da
presidenta Dilma. Parecia o roteiro das primeiras temporadas de House Of Cards.
(b)
No final do ano passado, numa entrevista dada à BBC Brasil, o ministro do STF
Gilmar Mendes (notório inimigo político do PT) disse que “a corrupção e a
disputa pelo poder a qualquer custo exibidas na série House of Cards se repetem em Brasília” – sobre isso clique aqui.
E
agora nesse ano, em pleno momento crucial da crise política (impeachment e a
eminente prisão de Lula pela Lava Jato – a prisão de Eduardo Cunha é apenas um
simbolismo para demonstrar a suposta imparcialidade de Moro), a Netflix anuncia
a produção de série baseada nas investigações da Lava Jato.
Tanto
Erick Barmack (vice-presidente de produções originais da Netflix) como o
cineasta José Padilha se apressaram em declarações carregadas de juízo de
valor: “O Netflix reconhece o talento de Padilha para documentar esse momento
importante na história do Brasil”, disse Barmack.
“Esse
projeto vai narrar a operação policial em si e mostrar detalhes do maior
esquema de corrupção já visto no Brasil”, afirmou Padilha.
Diferente
de outras produções históricas e políticas do gênero (produções a posteriori dos acontecimentos, resultantes de pesquisas e depoimentos
de pontos de vista diversos), a Netflix parece se notabilizar por séries ou
filmes sobre eventos ainda em constante evolução, quase como uma intervenção
ficcional em um evento real em desenvolvimento.
Podemos
estabelecer uma triangulação cujos vértices seriam Operação Lava Jato, Netflix
e Departamento de Estado dos EUA? Qual a motivação e contexto? Muito menos o
combate à corrupção (que, como veremos, marotamente a política de Smart Power
associa com o combate ao terrorismo internacional) e muito mais o controle da
geopolítica do petróleo, ameaçada pelas jazidas do Pré-sal brasileiro.
Alguns
fatos para considerar:
(a) O caso do telegrama “Moro-Wikileaks”
Um
relatório da Embaixada dos EUA em Brasília para o Secretário de Estado daquele
País sobre a Conferência realizada no Rio “Crimes Financeiros Ilícitos” em 2009.
Curso financiado pelo Departamento de Estado norte-americano onde Sérgio Moro é
apresentado como “Juiz Federal de Lavagem de Dinheiro” - cargo fictício
inventado para destaca-lo entre os 2.089 juízes federais que tratam o tema
diariamente).
Moro
foi um dos instrutores do curso. A proposta era convencer as autoridades do
judiciário brasileiro a “passarem a colaborar” com autoridades e membros da
Inteligência policial e militar de outro país.
O
mais importante é que o Curso pretendia aproximar a questão da corrupção (“finanças
ilícitas) com o combate ao terrorismo internacional – lavagem de dinheiro como
forma de financiar grupos terroristas.
O
telegrama elogia o “engajamento do
processo judicial brasileiro na luta contra o terrorismo” e destaca
positivamente “juízes e policiais brasileiros que militam na direção oposta a do governo eleito e seu Ministério de Relações
Exteriores” – clique aqui para ler o telegrama disponível
no Wikileaks.
(b) O lobby Netflix
Ironicamente,
enquanto produz House of Cards, que
denuncia as relações promíscuas do lobismo na política, o Netflix dispendeu só
em 2013 1,2 milhões de dólares em esforços lobistas tendo como alvo a Casa
Branca e o Congresso. O objetivo era a aprovação da legislação da neutralidade
da Internet - princípio de que os
fornecedores de serviços da Internet não devem penalizar os provedores de
conteúdo que ocupam grande espaço na banda larga com taxas extras ou conexões
mais lentas – sobre isso leia “Netflix stacking deck in Capitol Hill” In: The Center of
Public Integrity.
Com 17 lobistas representando seus
interesses no Congresso e Governo Federal, é tentador especular como os
produtos ficcionais da provedora de streaming podem eventualmente fazer parte
da política externa de Smart Power.
(c) Smart Power
Por
si só, o poder de coerção militar associado à indústria do entretenimento
norte-americano cujos produtos são irradiados para todo o planeta não é o
suficiente. Quando o ditador coreano Kim Jong II confessa que adora assistir
aos filmes hollywoodianos, enquanto desafia os EUA com o seu programa de armas
nucleares, algo está errado na política externa dos EUA.
Pesquisas
de opinião apontam para uma queda dramática de atratividade dos valores
americanos na Europa e América Latina, e mais dramaticamente no mundo muçulmano
– sobre isso clique aqui.
Desde
a Segunda Guerra Mundial, a irradiação dos produtos de entretenimento dos EUA
para o mundo tem uma finalidade meramente doutrinária, principalmente no
contexto da Guerra Fria: expandir o american
way of life, principalmente na América Latina; e criar a ameaça do inimigo
externo, dos comunistas aos terroristas islâmicos.
Por
exemplo, é bem conhecido como o filme Doutor
Jivago (1966), ambientado na Revolução Russa de 1917, foi explorado
politicamente como um retrato dos horrores de uma revolução comunista –
decadência, perseguições e suicídios.
Após
os atentados de 2001 nos EUA e a ineficiência demonstrada por uma política
externa orientada pelo Hard Power do governo Bush, sob a administração Obama
Hillary Clinton começa a aplicar estratégias de Smart Power sugeridas pelo CSIS
no documento “Investing in a New Multilateralism”.
Desde
então, percebe-se que as produções hollywoodianas não mais se limitam à
doutrinação em torno de valores americanos e a criação do inimigo externo. Elas
agora assumem um papel de intervenção ficcional em eventos reais ainda em
evolução: O Homem Mais Procurado do Mundo
(2012), Guerra ao Terror (2008), O Mensageiro (2009), Green Zone (2010) entre outros são
filmes ambientados no Oriente Médio sobre conflitos em andamento.
O
que cria eventos sincromísticos como no ataque em Nice no Dia da Bastilha:
estava previsto para lançamento nesse mesmo dia o filme ação Bastille Day cuja narrativa gira em
torno de agentes da CIA que pretendem parar um ataque terrorista programado
para 14 de julho, Dia da Bastilha – sobre isso clique aqui.
Segundo
David McConell e Yasushi Watanabe no livro “Soft Power Superpowers” (New York:
Routledge, 2015) as fronteiras entre ficção e realidade desaparecem: o
Pentágono vem fornecendo aos produtores de Hollywood autênticos arsenais
militares – mariners, helicópteros, bombardeiros B-2, jatos F-16 além de 5.000
soldados do exército dos EUA para filmagens em locações reais de conflito. A
logística de estúdios hollywoodianos pagos com impostos e dinheiro público.
Muito além da doutrinação ideológica
Smart Power significa muito mais do que a
mera doutrinação ideológica. Parece ser uma elaborada engenharia de opinião
pública na qual as ações reais são legitimadas ou tornadas verossímeis a partir
da linguagem ficcional.
É a
inversão da lógica perceptiva: não temos mais filmes que ideologicamente
justificam guerra, golpes ou intervenções políticas dos EUA em defesa da
“Democracia” pelo mundo, como foi o programa “Arsenal da Democracia”, campanha
do Departamento de Estado para a produção de filmes que apoiassem a
participação dos EUA com os aliados na Segunda Guerra Mundial.
Mas
agora, filmes tão “realistas” quanto possível, seguindo o timing dos eventos
reais. De tal sorte que os próprios eventos reais assumem o timming midiático –
modus operandi, personagens etc. Se o evento transformou-se em filme, então é
real!
Portanto,
o anúncio da produção pelo Netflix de uma série inspirada no principal braço
armado jurídico que derrubou um governo e no exato momento de crise de
legitimidade de um novo governo que tem a dura missão de fatiar o pré-sal e
impor goela abaixo da sociedade os amargos remédios neoliberais (PEC 241 é o
primeiro deles), é muito mais do que mera coincidência ou oportunismo
comercial.
E o
tom apologético dado à série, desde o início, nas declarações do executivo do
Netflix Erick Barmack e do cineasta José Padilha, apontam para isso.
Podemos
estar testemunhando a política de Smart Power norte-americano em plena ação. O
desfecho de uma estratégia iniciada silenciosamente em 2009 em um curso
financiado por uma embaixada em Brasília.
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