A Versão de Alice no País das Maravilhas de Tim Burton tem o claro enquadramento moral e ideológico dos Estúdios Disney: reduz toda a complexidade ocultista e gnóstica (transcendente) do livro de Lewis Carroll a uma viagem psicológica de Alice em suas memórias onde apenas procura a reconciliação com a ordem desse mundo: buscar auto-conhecimento e auto-confiança que ajudem a transformá-la numa empresária empreendendora.
Publicado em 1865 por Lewis Carroll, mais do que uma suposta declaração de amor à garotinha Alice Lidell (então com 10 anos de idade), o livro Alice no País das Maravilhas é uma narrativa episódica, repleta de simbolismos teosóficos, ocultistas e gnósticos (como vimos em postagem anterior – veja links abaixo). Alice é uma protagonista que não se encaixa à sociedade que pertence. Uma estória com diálogos repletos de charadas e jogos de linguagem que levam a lógica, física e matemática ao paroxismo, até o ponto em que toda racionalidade resulta no oposto: o surreal, o non sense e o anárquico.
Uma personagem tão desajustada como Alice seria perfeito para o diretor Tim Burton, um cineasta que frequentemente enfrenta universos fantasiosos e incômodos e narrativas com andamento complexo.
Uma personagem tão desajustada como Alice seria perfeito para o diretor Tim Burton, um cineasta que frequentemente enfrenta universos fantasiosos e incômodos e narrativas com andamento complexo.
Apesar desse casamento aparentemente perfeito, a versão do cineasta desponta com uma narrativa convencional que reduz a complexidade e ambiguidade do texto original.
A adaptação de Tim Burton para a saga de Alice de Lewis Carroll trás duas novidades: primeiro, ele junta elementos dos dois livros “Alice no País das Maravilhas” e “Alice Através do Espelho”. A segunda novidade, a principal, é que encontramos uma Alice já adulta, prestes a se casar por imposição da família com um Lorde, filho do sócio do seu pai (falecido). Para não dar o “sim” em uma festa organizada propositalmente pelas famílias para ser anunciado o noivado, Alice sai correndo pelos enormes jardins de uma mansão, até achar um estranho coelho com colete e relógio. Persegue-o até entrar num buraco que se revela a entrada para um estranho mundo subterrâneo.
Os personagens e a estrutura geral da narrativa originais são mantidas por Tim Burton. Porém, é nas sutis alterações e adaptações que se revela que o diretor (autor de filmes radicais como Swenney Todd) teve que se curvar aos Estúdios Disney e sincronizar a narrativa de Alice ao que denominamos como “agenda tecnognóstica” (veja links abaixo). Não é à toa que muitos críticos notaram um Tim Burton “preguiçoso”, com uma narrativa convencional .
A primeiro coisa que chama a atenção é a estratégia de quebra-da-ordem-retorno-à-ordem da narrativa. Na versão literária original, a desajustada Alice mergulha numa vibrante metáfora da ausência de sentido por trás da racionalidade do mundo adulto e termina a estória de forma ambígua e desafiadora ao princípio de realidade: no final de “Alice através do Espelho”, a protagonista não sabe se tudo foi um sonho dela ou se ela fez parte do sonho do Rei Vermelho (a suspeita gnóstica de que a realidade poderia ser uma ficção produzida por um Deus que não nos ama (o Demiurgo).
Nessa versão, ao contrário, essa ambiguidade é eliminada: Alice quebra a ordem (o casamento imposta pelas convenções da sociedade), percorre todo o trajeto onírico de um “dream movie” e, após a batalha final com o dragão Jabberwocky, retorna para a sociedade para assumir um novo papel: se não como nora, agora como sócia da empresa de quem seria seu futuro sogro. Alice retorna às suas responsabilidades. Toda a sua aventura por Wonderland serviu de autoconhecimento motivacional para acreditar em si mesma e, no final, assumir os negócios do pai.
Mais do que uma obra autoral do cineasta Tim Burton, “Alice in Wonderland” é um produto dos Estudios Walt Disney com o seu tradicional enquadramento pela moralidade atual que perpassa todos os seus produtos: culto ao empreendedorismo, motivação, auto-confiança e uma constelação de conceitos associados ao imaginário corporativo e da literatura de auto-ajuda.
Isso é sintomático quando, nas sequências finais, Alice cai em si e descobre que tudo pelo qual está passando naquele mundo subterrâneo não é um sonho, mas memórias. Durante sua infância ela frequentava aquele universo com frequência, até crescer e cair no esquecimento pela racionalidade e convenções do mundo adulto. Se na versão original de Carroll Wonderland é o próprio mundo real de Alice em forma invertida, metafórica e paradoxal, aqui na versão de Burton/Disney é uma viagem de auto-conhecimento.
Alice sintonizada com a "Agenda Tecnognóstica"
Aqui, o filme sincroniza-se com a “agenda tecnognóstica”, vigente em produções que convergem principalmente para gêneros ficcionais como o fantástico, sci-fi e suspense.
Como vimos anteriormente, a recorrência dessa agenda está presente no início desse século desde filmes como Vanilla Sky até o recente “A Origem” (Inception, 2010). São filmes cujos roteiros e argumentos estão influenciados pelas “tecnologias do espírito” (neurociências, ciências cognitivas, Memética etc.), ferramentas que atraem o profundo interesse por parte de todo complexo corporativo-publicitário-midiático: um projeto que ambiciona fazer um mapeamento (como no filme "Vanilla Sky" onde os arquétipos imagéticos da vida do protagonista são a matéria-prima para a fabricação do “sonho lúcido” que o aprisiona), uma cartografia (como em “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” – Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004 - onde a tecnologia de apagamento de memórias produz uma visão labiríntica e departamentalizada da mente com locais, esquinas, encruzilhadas etc.) e uma topografia (os diversos níveis dos sonhos como em “A Origem”). Objetivo: criar modelos tridimensionais do dinamismo da mente para inserir não mais ideias (slogans, ideologias ou discursos – que, no final, resultam em efeitos discretos), mas “memes ” que, mais tarde, se transformarão em ideias.
Toda a saga de Alice, seus personagens, a geografia e topografia de Wonderland, o “Oraculo” (um mapa temporal de todos os eventos passados e futuros) apresentado para Alice pela lagarta azul que fuma narguillé, se transforma, nessa nova versão, em uma viagem interior de superação das limitações que bloqueiam o potencial de Alice. Assim como no filme “A Origem” onde a imagem da esposa de Cobb (Leonardo DiCaprio) é uma projeção do seu sentimento de culpa, em “Alice in Wonderland” todos os personagens seriam projeções das diversas “Alices” interiores e, no final, o dragão Jabberwocky seria a projeção dos seus medos e fantasmas. Alice decepa a cabeça do dragão, ganha autoconfiança e assume a empresa do pai falecido.
Todas as charadas, enigmas e paradoxos com os quais Alice se defrontava na versão de Lewis Carroll, aqui se reduz a apenas uma questão: será ela a verdadeira Alice? Claro, ela ficou adulta, deixou a inocência e a mentalidade lúdica da infância. Os habitantes de Wonderland não conseguem, por isso, reconhecê-la. Seu desafio é reencontrar com aquela Alice perdida. Por isso, o diálogo de Alice é solipsista, isto é, nada mais existe do que sua própria experiência. Todos os personagens fantásticos do mundo subterrâneo nada mais seriam do que projeções das “Alices” interiores em uma batalha íntima de autoconhecimento. Alice não passa “Através do Espelho”. Ela reflete-se nele. Não há experiência transcendente, mas apenas imanência: Wonderland como um ritual de passagem para as futuras responsabilidades como adulta.
O profundo simbolismo de Alice, associado ao arquétipo gnóstico de Sophia, é filtrado e traduzido para o da heroina pós-moderna empreendedora. Se Alice, como Sophia, partem para terras estrangeiras que fazem pouco sentido em busca de novas lições, na versão atual Alice faz uma viagem solipsista onde não há mais transcendência mas a tranquila aceitação da realidade (no filme o chapeleiro maluco - Johnny Depp - exorta Alice a permanecer em Wonderland. Em resposta, Alice fala de suas obrigações e coisas a fazer, recusando o convite).
A Versão Burton/Disney reduz toda a complexidade ocultista e gnóstica (transcendente) da versão original de Lewis Carroll em uma viagem interior que apenas procura a reconciliação com a ordem desse mundo: buscar energias que nos motivem a seguir em frente em nossas obrigações e deveres.
Ficha Técnica:
- Título: Alice in Wonderland
- Diretor: Tim Burton
- Roteiro: Linda Woolverton (baseado nos livros de Lewis Carrol "Alice no País das Maravilhas" e "Alice Através do Espelho")
- Elenco: Johnny Depp, Mia Wasikowska, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Crispin Glover.
- Produção/Distribuição: Walt Disney Pictures
- Ano: 2010
- País: USA
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