Diante do massacre de adolescentes cometido por um jovem armado com dois revólveres em uma escola do bairro do Realengo no Rio de Janeiro (um fato tão cruel, arbitrário e aparentemente sem sentido), a mídia tenta buscar uma causa lógica. Como sempre, o que a mídia chama de informação é, na verdade, a tentativa de encaixar fatos tão irredutíveis a “plots” ou “roteiros” pré-estabelecidos. Tenta expurgar a presença do Mal na realidade. Porém, uma criminologista e um antropólogo foram vozes alternativas dentro dessa estratégia midiática de dissuasão.
Um psiquiatra forense vai à TV e declara que o atirador sofria de “cisão mental”; o jornal Folha de São Paulo on line informou que “irmã do atirador diz que ele era ligado ao Islamismo e não saia muito de casa” (07/04/2011 às 10h53); o site do Jornal Extra das Organizações Globo às 11h37 do mesmo dia noticiou que o atirador “se interessava por assuntos ligados ao terrorismo”; em vários telejornais do dia pessoas próximas ao atirador declararam que ele era “fechado” e “só vivia na Internet”.
Por todos os lados vemos o tradicional esforço midiático para, diante da irrupção de fatos irracionais, aleatórios ou arbitrários, racionalizar ou dar algum sentido para o fato, muitas vez de forma atabalhoada (vide o caso da “barriga” jornalística do cão caramelo na tragédia nas serras fluminenses). Psicólogos e especialistas são mobilizados em cima da hora para tentar dar uma explicação lógica diante das câmeras. Quase sempre esses especialistas mal conseguem esconder a perplexidade (com os olhos “vidrados” para as câmeras) e a cara de surpresa enquanto se esforçam em teorizar falando o óbvio.
Motivos místico-religiosos? Internet? Esquizofrenia? Um nerd que fazia pesquisas sobre bombas, armas e islamismo na Internet?
Porém, duas vozes escaparam desse rolo compressor racionalizante que pretende neutralizar a presença do Mal: a criminóloga Ivana Casoy e o antropólogo Roberto Albergaria (Doutor em Antropologia pela Universidade Paris VII).
Em uma entrevista na bancada do Jornal Hoje Ivana tentou associar essa tragédia a um fenômeno de “globalização”. Não conseguiu desenvolver mais o raciocínio porque os entrevistadores estavam ávidos por uma descrição do “perfil de uma mente criminosa”.
“Esse tipo de ato é bem característico do que os franceses chamam de "a violência pós-moderna". Ela é caracterizada por duas coisas: a confusão entre o real e o imaginário (cada vez mais é o imaginário que vem da televisão) e a ausência de sentido. São atos completamente arbitrários. Antigamente, era matar pra ter dinheiro, matar para ser herói, etc. Nos livros sobre a violência pós-moderna, fala-se na destruição pela destruição. Não adianta buscar sentido. O que eu estou sentindo na mídia o tempo todo é as pessoas buscarem um sentido. Claro, a sociedade precisa de um sentido, precisa encaixá-lo como psicótico, como vítima do preconceito contra os doentes mentais...” (http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5054138-EI6594,00-Antropologo+Midia+usa+religiao+para+explicar+um+ato+sem+sentido.html)
A “parte maldita”
Jean Baudrillard (1927 - 2007) |
Em postagens anteriores (veja links abaixo) viemos desenvolvendo a tese de que a mídia busca a “racionalização do Mal”. Pessoas e acontecimentos extremos têm que ser encaixados dentro de “plots” ou roteiros pré-estabelecidos pela mídia, que tenta expurgar aquilo que o pesquisador francês Jean Baudrillard (1929 – 2007) chamava de “parte maldita” da realidade: o Mal.
Como um bom pensador gnóstico (a matriz filosófica da sua pesquisa científica provém do gnosticismo Cátaro), Baudrillard acreditava que o mundo estava cheio de sentimentos positivos e de sentimentalidade ingênua. Já não sabemos nomear o Mal, procuramos uma série de eufemismos, teorias e racionalizações para eliminar essa parte maldita do nosso cosmos:
“A energia da parte maldita, a violência da parte maldita é a do princípio do Mal. Sob a transparência do consenso, a opacidade do mal, sua tenacidade, obsessão, irredutibilidade, energia inversa sempre ativa no desajuste das coisas, na ultrapassagem das causas, no excesso e no paradoxo, na estranheza radical, nos atratores estranhos, nos encadeamentos inarticulados” (BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal – ensaios sobre fenômenos extremos, Campinas: Papirus, 1990, p. 114).
O Mal (o aleatório, o incerto, o caótico) é parte constitutiva da própria realidade. O Bem e o Mal são as duas partes que não encontram conciliação ou síntese dialética: são simbolicamente reversíveis e ironicamente complementares: a Paz produz a Guerra, a utilidade produz a inutilidade, a riqueza produz a pobreza e assim por diante.
A partir do momento em que toda a cultura (ciência, mídia, tecnologia etc.) tenta expurgar, racionalizar ou simplesmente denegar o Mal, o resultado é a catástrofe, ou, como definia Baudrillard, o surgimento de fatos “supracondutores”, a irrupção do Mal na sua forma mais irracional, explosiva e arbitrariamente cruel.
“Todos [os fatos supracondutores] são formas virais, fascinantes, indiferentes, multiplicados pela virulência das imagens, pois a mídia moderna tem em si uma potência viral, e sua virulência é contagiosa. Estamos numa cultura de irradiação dos corpos e dos espíritos pelos sinais e imagens e, se essa cultura produz os mais belos efeitos, como admirar-se de que ela produza também os vírus mais mortíferos” (IDEM, p. 44).
É notável o componente performático ou de "acting" nesses fatos "supracondutores" (Foto: o atirador dos atentados da Virginia Tech University (EUA) em 2007) |
É notável o componente performático na conduta do atirador do Realengo (não só ele, mas de todos os casos nos EUA e Europa). Se ele vai ao local determinado a dar cabo da sua própria vida, seu suicídio deve ter um componente de drama ou acting. Há algo mais além da premeditação dos armamentos, suplementos de balas e carregadores automáticos: há o cálculo midiático. Assim como os vídeos virais hiperbólicos na Internet, seu gesto igualmente é pensado como viral, desde o início destinado e pensado para as ondas concêntricas das mídias.
O “ascetismo mundano”
Pesquisadores como o historiador norte-americano Richard Sennet (veja o livro O Declínio do Homem Público, São Paulo: Companhia das Letras, 1987) já chamaram a atenção para um traço novo na cultura globalizada: o “ascetismo mundano”. Se no passado um monge flagelava a si mesmo diante de Deus na privacidade da sua cela como prova de renúncia e sacrifício, hoje esse ritual de imolação e auto-sacrifício já possui um traço narcísico e performático: tem que ser voltado para a disseminação viral através das mídias.
Para Baudrillard, esses fatos “supracondutores” (desencadeamentos intempestivos e intercontinentais) já não atingem somente Estados ou indivíduos, mas afetam totalmente as “estruturas transversais”: o dinheiro (crashs financeiros globais), sexo (a AIDS), a informação (o excesso que a reverte no contrário) e a comunicação (que não consegue mais reportar eventos, mas, agora, irrupções virais).
É claro que o psiquismo do atirador do massacre do Realengo é patológico. Porém, é um tipo de patologia que tem a marca da sua época: a época da repercussão viral através das mídias de toda e qualquer patologia, anomalia ou perversão que outrora se manifestavam na esfera privada ou na tragédia íntima da família.
Ao buscar a informação do sentido dos fatos, das causas e da suposta racionalidade mecânica dos acontecimentos, mais e mais o ambiente midiático produz ironicamente seu oposto: o Mal. Fatos que vão além das suas causas e indivíduos enlouquecidos que, assim como a mídia, procuram um “plot” ou uma “narrativa” para si mesmos onde possam encaixar seu ritual particular de imolação e auto-sacrifício. O elemento performático desses fatos “supracondutores” é o encontro dessas racionalizações do Mal do atirador e da própria mídia.
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