
Acontecimentos devem ser enquadrados no interior de estruturas-clichê, verdadeiros scripts que racionalizam ou dão um sentido, um “valor de uso”, a eventos destituídos de qualquer sentido. São a mera expressão de uma ausência de sentido, do acaso, da presença do Mal como constituinte do cosmos em que habitamos.
Antes de prosseguirmos, temos que explicar de que “Mal” estamos nos referindo. Não estamos falando do Mal no sentido moral, diabólico (o “mau”) e, muito menos, no sentido disfuncional ou da ignorância. Dentro da visão gnóstica o Mal tem a ver com a própria constituição do cosmos físico, a forma imperfeita e decadente como esse universo foi criado pelo Demiurgo. A criação já foi queda, crise, desde o seu início. Há uma existência ontológica do Mal na História. Para além do pecado, ignorância ou maquinações malignas, o Mal tem a ver com um drama de dimensões cósmicas: um universo criado de forma imperfeita e decaída. E por que este mundo material criado pelo Demiurgo é imperfeito? Por que nele encontram-se inconciliáveis e, ao mesmo tempo, inseparáveis, o Bem e o Mal. Dessa forma, para cada ato bom produz-se um efeito perverso: a produção reverte-se em destruição, a paz produz a guerra, a realidade a ilusão, e assim por diante.
Talvez onde mais se expresse esta natureza do Mal seja nos jogos infantis: as crianças divertem-se com o jogo, com o acaso, com a reversibilidade, com o girar, ficar tontas, experimentar a própria natureza do cosmos no interior do qual se reencarnaram: brincar com o inesperado e o reversível – objetos se transformam em outro, caixinhas em trens, e bolas são lançadas sem saber exatamente onde vão cair. A criança ri do inesperado, do incerto.
Voltando à cobertura da Copa e a desclassificação do Brasil, a indústria do entretenimento simplesmente não pode aceitar a natureza de “jogo” do futebol. A derrota deve ser racionalizada e inserida a fórceps num script já anunciado: a derrota da “Era Dunga”.
Não obstante o fato de a seleção ter dominado todo o primeiro tempo, e “aquelas” bolas não terem entrado para ampliar o placar e matar o jogo e o fato do primeiro gol da Holanda se originar de um cruzamento fortuito que resultou inesperadamente em gol depois do goleiro Julio César e o volante Felipe Melo “baterem cabeça”, esses simples expressões do Mal não podem ser aceitas pela cobertura midiática.
Se para a própria natureza lúdica do jogo essas manifestações do acaso que deveriam ser a fonte de diversão e graça (a reversibilidade e inutilidade dos atos), para a indústria do entretenimento deve ser neutralizadas. Por quê?

A seleção brasileira tem que ser, ao mesmo tempo, lúdica e com “prazer de jogar”, mas, também, sempre vencedora. Esse script paradoxal é aplicado ao “trauma” da desclassificação, negando a própria noção de prazer e jogo que atiçam contra Dunga.
Na presença do Mal (do acaso e do inesperado) no futebol e no jogo em geral é que reside o prazer, e não numa suposta origem idílica e romântica do futebol brasileiro (supostamente negada pelo conspirador Dunga) que nos garantiria nunca perder.
Assim como os atos terroristas que não visam o Poder ou o Estado, mas apenas o espetáculo, a derrota “injusta” de uma seleção traída pelo acaso (ou pelo Mal) demonstra a inutilidade “divertida” do jogo. A indústria do entretenimento precisa racionalizar ou dar uma lição de moral à derrota, como bem demonstram as colunas dos comentaristas esportivos de hoje.
A derrota deve dar uma lição de moral (o fim do “dunguismo”) para provar que, no final, a vida tem um sentido moralmente bom e que o Mal é fruto dos nossos erros e pecados, e não um elemento que constitui e define a própria existência. O prazer irônico no Jogo e no Lúdico (sentir graça de um drama cósmico) é a sua prova inconteste.