quinta-feira, junho 24, 2010

Uma Pequena História Gnóstica da Espontaneidade na Indústria do Entretenimento (parte 2)

Depois do Star System, Celebridades, pin ups, crianças e animais, a indústria do entretenimento vai buscar a espontaneidade em formas mais invasivas e perniciosas onde as perversões privadas transformam-se em virtudes públicas.

Terminamos a primeira parte da postagem sobre indústria do entretenimento e espontaneidade abordando a armadilha que as próprias mídias acabaram criando para si mesmas: o ciclo vicioso dos pseudoeventos. Celebridades e eventos políticos e econômicos replicam imagens, temas e linguagens desenvolvidos pelas mídias, criando um gigantesco efeito que autores como Baudrillard chamariam de hiperrealismo: a realidade passa a copiar as imagens, isto é, a precessão das imagens diante todos os eventos reais presentes e futuros (as quedas das torres nos atentados de 11 de setembro de 2001 nada mais fizeram do que materializar o imaginário das catástrofes hollywoodianas sobre Nova York – afinal, quantas vezes NY já foi destruída no cinema?)

O resultado desse ciclo vicioso é o tédio diante da mídia que não consegue mais mostrar eventos espontâneos, mas pessoas produzindo eventos, gestos, atitudes para atrair a atenção das mídias, seguindo roteiros e linguagens elaborados por elas próprias.

Estrelas, celebridades, pin-ups, crianças e animais no cinema, TV e publicidade já não bastavam para injetar algo de espiritual e espontâneo nas estruturas-clichê dos diversos gêneros midiáticos.

Mas uma novidade despontava no horizonte da cultura com a tradição literária do realismo norte-americano. F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway já apresentavam em suas obras a rebelião intelectual com a desilusão provocada pelas guerras e depressão econômica: personagens que experimentam esplendor e desespero como em “O Grande Gatsby” de Fitzgerald e, em Hemingway, protagonistas durões (soldados, toureiros, atletas) e intelectuais desiludidos.

Essa busca por autenticidade e realismo desemboca no desabrochar do indivíduo na literatura norte-americana com nomes como Tennessee Williams e Allen Ginsberg. Distúrbios emocionais no seio da família em Williams e a “prosa bop espontânea” de Ginsberg com relatos de vidas errantes, personagens antenados e ao mesmo tempo místicos e a rejeição às convenções incendiaram a imaginação de jovens leitores, preparando o terreno para a contracultura que viria na década de 60.

Essas mudanças do cenário cultural fazem a indústria do entretenimento buscar o espontâneo na “autenticidade”, não mais na representação de emoções, mas nas “emoções autênticas”, “brutas”, colocando em xeque todos os paradigmas do Star System e das celebridades. Talvez o embrião dessa mudança de paradigma esteja no famoso “Método” da Actors Studio.
A indústria do entretenimento criará a forma mais invasiva e perniciosa de prospecção e captura da espontaneidade: a diluição das fronteiras entre público e privado

Criada em Nova York em 1947, a partir de uma leitura particular da teoria do ator em Stanislawsky, a Actors Studio cria a proposta de que o ator não deve apenas representar, mas ser o próprio personagem a partir de um complexo método composto por exercícios físicos e psicológicos. Para dar espírito e autenticidade às verdadeiras formas-pensamento que são os personagens, o ator deve arrancar do seu psiquismo diversas personas arquetípicas. O brilho e magnetismo revolucionários de Marlon Brando e James Dean (egressos da Actors Studio) nos anos 50 expõem uma espécie de animismo do ator: assim como no Espiritismo se chama de animismo a interferência do espírito e sentimentos do médium na comunicação (na verdade, são as personas do médium que falam e não algum espírito), vemos em filmes e teatros personagens cuja força vêm do próprio psiquismo do ator. Temos aqui o modelo gnóstico do aprisionamento das energias da alma (“espontaneidade produtiva”) para por em movimento as formas-pensamento e estruturas criadas pelo Demiurgo.

O resultado pode ser tanto a condição esquizofrênica do ator (a identidade se dilui na variedade de personas arquetípicas necessárias para dar vida a diferentes personagens) ou o ator que interpreta a si mesmo.

A indústria do entretenimento criará a forma mais invasiva e perniciosa de prospecção e captura da espontaneidade: a diluição das fronteiras entre público e privado, ficção e realidade. Doravante, as perversões privadas se transformarão em virtudes públicas. Se no esquema das celebridades os escândalos eram eventos metodicamente criados para conquistarem visibilidade na mídia, agora esses escândalos ganham espontaneidade e autenticidade: ao interpretarem a si mesmos, atores, apresentadores e diferentes personagens midiáticos estendem a ficção para a vida privada.

Por exemplo, atores como Jack Nicholson (também egresso da Actors Studio), Mickey Rourkey e Julliete Lewis estendem para vida privada os problemas dos personagens desajustados e potencialmente psicóticos vividos por eles nas telas (e fazem questão de expor isso em canais como E! Entertainment). Ou não será o contrário, a “autenticidade” das suas performances ficcionais sendo alimentada pelos aspectos sombrios dos seus psiquismos?

Reality Show: a última fronteira

Em 1991 a NASA põem em prática o Projeto Oracle. Esse experimento consistiu em colocar em imensos hangares de vidros, erguidos numa área em Tucson, no deserto do Arizona, quatro homens e quatro mulheres, 3.800 espécies animais e vegetais e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra. Lá ficaram durante dois anos monitorados por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil pagantes.

Esse experimento incendiou a imaginação da indústria do entretenimento. É a própria materialização da mitologia gnóstica que narra o Demiurgo aprisionando o homem numa realidade artificialmente construída para monitorá-lo, perscrutá-lo, para sistematicamente acompanhar a manifestação do espontâneo e do autêntico (partículas de Luz) para seduzi-lo e, finalmente, isolá-lo e instrumentalizá-lo.

Tematizado criticamente em filmes gnósticos como Cidade das Sombras (Dark City, 1998) e Show de Truman (Truman Show,1998) o crescimento vertiginoso dos Realities Show (e as variações como “pegadinhas”, “vídeo-cassetadas” ou “o povo fala”), inspirado no Projeto Oracle, expande a tendência de fundir público/privado, ficção/realidade: esquadrinhar todas as perversões privadas para expor publicamente como virtudes, autenticidade, espontaneidade. Compulsão, impulsividade, hipocrisia, alienação, paranóia, psicose etc., que emergem dos indivíduos em ambientes midiáticos artificialmente criados, é a espontaneidade espiritual (partículas de Luz) convertida em formas produtivas e regressivas para a manutenção da indústria do entretenimento.

O complexo midiático encontra, no final, a solução mais barata, rápida e lucrativa para capturar a espontaneidade: nada de atores, Métodos ou complexas estratégias cênicas ou dramatúrgicas. Pegam-se pessoas comuns ou candidatos a celebridades e as confinam ou em ambientes artificialmente construídos ou expostos diante das câmeras, pegas de surpresa.

No final, o público identifica-se e ri sardonicamente dessas situações porque, no fundo, é a materialização de toda a mitologia gnóstica da condição humana nesse mundo: exilados e prisioneiros, observados por um Demiurgo que as seduz com a possibilidade de adquirirem o poder que as retire daquela situação.

Espontaneidade ou Sensacionalismo?

As críticas tradicionais feitas à indústria do entretenimento como “sensacionalista” ou “anti-ética” são, dessa maneira, moralistas e inócuas. O sensacionalismo nada mais é do que a espontaneidade tornada produtiva, isto é, confinada nas estruturas-clichê ou scripts pré-definidos. O sensacionalismo tende a transformar o espontâneo e o autêntico em grotesco. Devem se tornar regressivos e perversos para animar formas-pensamento que nos façam rir de nós mesmos, que confirmem algo que já desconfiamos sobre nossa existência: a de sermos prisioneiros em um gigantesco reality show cósmico. A ironia é que essa confirmação não trás crítica ou indignação, a não ser o riso sardônico.

Ético seria a espontaneidade libertar-se no jogo e no lúdico. Mas isso explodiria a lógica das estruturas do entretenimento que visam canalizar essas energias espirituais a uma finalidade mercantil e lucrativa. Talvez, como provocativamente afirmava o crítico francês Jean Baudrillard, na atualidade a única espontaneidade esteja no terrorismo pela absoluta inutilidade política ou estratégica desses atos: não visam a tomada de poder, a não ser a de atrair as ondas concêntricas da mídia explodindo (literalmente) os scripts das motivações racionais da Política.

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