Tentando dar um estatuto de ciência, erradicam-se temas “místicos” que partam de categorias do próprio campo teológico ou metafísico. O “místico” das ciências humanas (principalmente as aplicadas) deve ser denegado para, mais tarde ressurgir como sintoma: a obsessão pela cientifização para justificar o status laico e racional de uma área que, certamente, é constituída pelos novos padres, monges e sacerdotes da nova Teologia pós-moderna, criadores de liturgias paras os novos templos chamados de “Shopping Centers”. A homilia dessa nova liturgia é o texto publicitário.
Abaixo, o texto “místico” recusado:
Imaginário cinematográfico e a desmaterialização
econômica e tecnológica global
Neste pequeno grupo de filmes citados há preocupações básicas que os unem: (a) o tema do colapso da distinção entre aparência e realidade provocado tanto pelas recentes tecnologias quanto pela condição humana; (b) instabilidades naquilo que conhecemos como realidade e o seu multifacetamento em instâncias supra e para-reais; (c) experiências da perda da memória e a sua reminiscência como fator de recuperação da identidade.
Este texto procurará discutir exatamente esta conexão entre gnosticismo e cinema, mas num aspecto particular, a saber: como os filmes que abordam temas e símbolos gnósticos vêm na última década insistindo no tema do artificialismo da realidade. Não a realidade ideológica, política ou econômica, mas no seu aspecto último, metafísico ou ontológico: a realidade tal como a entendemos existe? Por que essa espécie de guinada metafísica na temática da produção hollywoodiana recente? A forma como esses temas são abordados nos aspectos de narrativa, iconografia e construção de personagens parecem apontar para a influência dos temas e narrativas do gnosticismo histórico e dos seus ressurgimentos no campo da literatura e no imaginário das novas tecnologias (gnosticismo tecnológico).
Se há uma conexão entre cinema e sociedade, ou seja, se o filme pode ser considerado um repositório do imaginário social contemporâneo e se sabemos que este imaginário atual é fortemente marcado pelo desenvolvimento tecnológico computacional e a crescente liquidez da financeirização global, é a partir daí que devemos analisar essa produção fílmica. Esta crescente recorrência de elementos gnósticos no cinema hollywoodiano corre paralelo à euforia da globalização e o fortalecimento de seus dois pilares: de um lado, o desenvolvimento da microinformática e, a partir do bombástico lançamento do Windows 95, o crescimento especulativo das potencialidades da Internet e das tecnologias computacionais; e, do outro, a extraordinária aceleração da expansão do capital por meio da financeirização do sistema econômico global.
Esses dois processos são interdependentes, pois o desenvolvimento da microinformática e da nanotecnologia surge na hora certa quando a globalização do capitalismo passou a exigir uma pilotagem mais complexa: dominar a complexidade das interconexões simultâneas, o cálculo probabilístico das transações financeiras e da equalização das caóticas tendências nas jogadas em bolsas de valores e na análise dos tensos cenários econômicos. As tecnologias da informação permitem a integração complexa das praças financeiras de todo o mundo em tempo real.
Em ambos os movimentos que fortalecem a ordem mundial da Globalização encontramos o caráter constitutivo da desmaterialização, isto é, o primado do imaterial sobre o físico, do virtual sobre o real e assim por diante. No plano da ciência e tecnologia, diversos autores detectaram e mapearam a semente do misticismo nas comunidades científicas, sejam acadêmicos ou tecnófilos: a princípio entre físicos, cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas, principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação. Diversos pesquisadores vão caracterizar este imaginário ciberutópico com o conceito de “gnosticismo tecnológico”.
O gnosticismo histórico (conjunto de seitas sincréticas combinando idéias cristãs, neoplatonismo e as religiões de mistérios pagãs que florescem nos primeiros tempos da difusão do Cristianismo) caracteriza-se pelo horror ao orgânico e a uma aversão ao natural. Tais elementos seriam inimigos do espírito na sua busca por iluminação. A tecnociência atual se aproximaria de tal filosofia ao propor a superação dos parâmetros básicos da condição humana: finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação existencial.
Essas tecnologias rompem com o antigo paradigma moderno, ao criar uma ambiência tecnológica computacional onde o sujeito humano é desnaturalizado: da tecnologia como extensões do homem ao momento atual de ruptura onde a tecnologia virtualiza o humano. O resultante é um mundo viscoso, menos estruturado, flutuante que pode ser sintetizado em três palavras-chave: destemporalização, destotalização e desreferencialização. Ao mesmo tempo, no plano econômico, temos a interconexão de economias por um novo modo comandado pelas novíssimas tecnologias integradoras como a microinformática, mídia, marketing e publicidade transnacional. Estas tecnologias vão sustentar o chamado “turbo-capitalismo”: a extraordinária aceleração da expansão do capital por meio da financeirização do sistema econômico global.
Esta "desmaterialização" da economia corresponde ao fato de, cada vez menos, a fonte do lucro ou da riqueza ter sua origem no circuito da produção. Deixa de ser visivelmente localizável, para encontrar formas flexíveis de acumulação: a princípio em novos vínculos trabalhistas, como a terceirização, porém, quanto mais o capital migra da produção para a esfera da circulação (financeira, midiática, etc.), mais se impõe uma nova forma de riqueza "fora do chão". É a base da constituição de um novo imaginário: redes descentralizadas, como a Internet, criando ciber-identidades pulsantes e variadas, assim como a moda efêmera e superficial traria a liberdade a um indivíduo que não mais se prenderia a certezas eternas.
Um indivíduo pós-moderno radiante, desenvolto, integrado à tecnologia (que, afinal, é a promotora desta verdadeira emancipação das identidades fixas), identidade móvel, sedutor, assumindo múltiplas personas em blogs e chats, sentindo as novas pulsações e tendências. Uma identidade tão líquida quanto os fluxos financeiros globais. Mas um imaginário paradoxal, mesclado com elementos místicos ou gnósticos, tal como representado pelo imaginário cinematográfico hollywoodiano recente. Este imaginário refletiria a própria imaterialidade da percepção do real e da identidade originada pelos processos que constituíram a Globalização?