Série 'The Last of Us' ou como aprendi a parar de me preocupar e amar armas!

Kubrick deu um segundo título, irônico, ao clássico “Doutor Fantástico”: “Como aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba”. Eram tempos em que filmes apocalípticos e pós eram libelos pacifistas. Mas o zeitgeist do século XXI sobrevivencialista mudou tudo e os filmes pós-apocalípticos ironicamente viraram a realização dos sonhos para qualquer paranoico extremista de direita. Baseado no sucesso do videogame homônimo de 2013, a série “The Last of Us” (2023-, disponível na HBO Max) coloca na tela o melhor que o cinema americano faz: narrativas de perseguição com muitas, muitas armas. E “sobrevivencialistas” armados até os dentes contra a “Nova Ordem Mundial”. Também lutando contra zumbis canibais infectados por um fungo mutante. Até aqui (três episódios) a moral da série parece essa: CACs e extremistas de todo tipo tinham razão - armas são o que garantem a liberdade, o amor e a felicidade. Parece que não somente as baratas sobreviverão ao fim do mundo. Juntos estarão os “sobrevivencialistas”.

Alguns elementos recorrentes nos filmes norte-americanos, sejam hollywoodianos ou mesmo independentes: (a) narrativas de perseguição, desde o clássico do primeiro cinema The Great Train Robbery de 1903; (b) a presença massiva e onipresente de armas, encontradas em gavetas, porta-luvas de carros ou espingardas escondidas atrás de portas até bunkers com munições em porões; (c) também a presença massiva e onipresente de frascos de comprimidos: qualquer cena em banheiro vemos em armários frascos de farmácias de manipulação e personagens engolindo pílulas a cada crise de ansiedade ou insônia.

Sabemos que a onipresença de armas e comprimidos vem do ativo lobby da indústria armamentista e farmacêutica naquele país, cuja estratégia mercadológica principal é o “product placement”, inserção de produtos alvos em filmes – incluindo até intervenção no processo criativo de roteiristas para alterar cenas, facilitando a inserção de determinados produtos.

Narrativas de perseguição com armas acabou tornando-se a especialidade dos filmes norte-americanos, impulsionando a imaginação com o suporte dos efeitos especiais digitais. Com tamanha repercussão cultural no imaginário coletivo que só poderia desembocar na indústria dos jogos de computador: espectadores que se cansaram de assistir a perseguições, tiros e explosões nas telas e que agora querem vivenciar experiências cada vez mais imersivas e interativas em jogos com crescente resolução gráfica.

Baseada no considerado melhor videogame de todos os tempos, criada para PlayStation em 2013, a série The Last of Us (2023- ) possui esses elementos recorrentes do cinema norte-americano. Com a exceção dos frascos de comprimidos, porque, afinal, pouco sentido teriam num mundo pós-apocalipse pandêmico.

Adaptada pelo próprio criador do jogo, Neil Druckmann, e pelo showrunner da série de sucesso Chernobyl, Criag Mazin, de cara enfrentam a grande maldição do fracasso das adaptações audiovisuais de videogames – trinta anos depois, o filme Super Mario Bros ainda é citado como conto preventivo para essa maldição.

O videogame original abriu novos caminhos para o modelo de thriller de zumbis, com temas ressonantes, jogabilidade fluida e um argumento bem decente: ao invés de bactérias ou vírus, temos uma pandemia de fungos que evoluem e deixam de parasitar formigas para escolher humanos como hospedeiros. Através de armas de fogo, armas improvisadas e furtividade, o jogador defende-se de criaturas canibais infectadas pela mutação do fungo “Cordyceps”. 

Então, por que arruinar uma coisa perfeita? Por que arriscar aquilo que já deu certo numa arriscada adaptação audiovisual, como uma espécie de retrocesso da jogabilidade e imersão para o olhar passivo para uma tela?

A crítica especializada vem apontando que a resposta dada pelos criadores da série é enfática: The Last of Us, a série, seria um excelente exemplo de como fazer uma adaptação funcionar, retendo os elementos que funcionaram no videogame para explorar novos caminhos ousados, expandindo o universo, fazendo algo que se sustenta e caminha com os próprios pés.

Mas esse humilde blogueiro acredita que há algo mais. A série parece cair como uma luva ou consegue fazer a sintonia perfeita com o zeitgeist sobrevivencialista atual: estamos na antessala da catástrofe climática, recém-egressos de uma pandemia global cujos desdobramentos (e, principalmente, o potencial das mutações virais) ainda não estão bem definidos e assistindo ao retorno da Guerra Fria 2.0 e da ameaça nuclear.

A série The Last of Us ressoa esse espírito de época sobrevivencialista. Através do quê? Como diria o presidente da Ucrânia, Zelenski: “More Weapons! Weapons! And Weapons!”. Mais armas, armas e armas! 

Quem vai conseguir sobreviver à perseguição de zumbis canibais e uma Nova Ordem militarizada e totalitária que confina sobreviventes em zonas de quarentena? Claro, aqueles que possuem revólveres, pistolas e... extremistas de direita que viram suas previsões ironicamente realizadas.

A Série

The Last of Us começa apresentando o cenário do fungo parasita como hipotético, discutido por especialistas em um talk show na década de 1960, antes de passar para 2003, quando o pior cenário está destruindo a sociedade a cada segundo. 

Fungos não parasitam seres humanos, pela alta temperatura corporal. Mas... as mudanças climáticas elevaram a temperatura global e o cordyceps mutou e se adaptou. E descobriu nos humanos uma nova oportunidade.

Durante a primeira meia hora do episódio piloto, o filme acompanha o passo a passo da catástrofe, lembrando os sucessos de bilheteria do fim dos anos 90, como Deep Impact, Armageddon e 12 Monkeys. Em seguida pulamos para 2023 e as consequências. O que restou da sociedade está nas mãos de um regime militar autoritário (a “FEDRA”) que luta contra grupos rebeldes (os “Vaga-lumes”) classificados como terroristas. E as ruas são tão sombrias quanto o próprio Inferno.

Joel (Pedro Pascal), foi um trabalhador da construção civil texano de meia idade e vive como um semi-intruso na zona de quarentena de Boston, onde faz trabalhos de manutenção clandestinos e tem uma atividade secundária no mercado de contrabando que inclui drogas. 

A vida é dura e implacável. Eventualmente, ele conhece Ellie (Bella Ramsey), uma garota de 14 anos, prisioneira dos ativistas Vaga-lume, que, junto com a sua companheira Tess (Anna Torv) recebe a missão de transportá-la para o Oeste, através de uma América devastada e repleta de infectados canibais. Ellie pode ser a salvadora que o mundo está procurando: apesar de ter sido mordida por um infectado, o fungo não progrediu em seu corpo. Será que em seu sistema imunológico está a solução?

Certamente, o grande insight do argumento do jogo e da série é a substituição do vetor viral-bacteriano pelos fungos: eles não matam os hospedeiros, apesar de crescerem e se alimentarem deles. O cordyceps controla o cérebro, inserindo o hospedeiro numa espécie de rede neural coletiva, aumentando ainda mais o perigo: matar um zumbi significa acionar uma espécie de “GPS”, sendo facilmente localizado pelos outros infectados – e eles são rápidos e agressivos.

A paisagem pós-apocalíptica que a série descreve até o terceiro episódio (o quarto será liberado nesse domingo) é o parque temático para um extremista de direita (na série alguns deles se autodefinem como “sobrevivencialistas”): uma Nova Ordem (Mundial?) totalitária se instalou, cancelando a liberdade individual e os direitos civis, zumbis e doença fúngica estão por todos os lados (antes do apocalipse pandêmico, extremistas temiam o “comunismo viral”, agora fúngico) e andar armado até os dentes é a única maneira de sobreviver a esse inferno.

Como amar armas? – Alerta de Spoilers à frente

O terceiro episódio “Long, Long Time”, aquele que mais se distancia do game original, é o “product placement” mais acabado até aqui da série que, fazendo paráfrase ao clássico de Kubrick Doutor Fantástico, poderia se chamar “Como aprendi a parar de me preocupar e amar armas”.

O episódio conta a estória de Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Bartlett). Voltamos a 2003 e vemos o exército evacuando uma cidade para levar sobreviventes a uma das zonas de quarentena. Todos vão embora, menos um: Bill, que se escondeu no porão de sua casa (propriamente com a bandeira dos EUA) transformado em um bunker com um enorme arsenal de armas e explosivos. “Eu não quero ser pego pela Nova Ordem Mundial”, resmunga Bill.

Bill é o protótipo do trumpista e extremista de direita paranoico dos tempos atuais, com revólveres espalhados em cada gaveta da casa e se autodenominando “sobrevivencialista”. Metódico e individualista cerca o seu bairro com armadilhas e cercas eletrificadas, vivendo confortavelmente do estoque do supermercado das redondezas. 

Até Frank cair numa das armadilhas. Ele é o oposto: sensível, com dons artísticos, apreciador de harmonizações de pratos com vinhos e amante da música.

Juntos vão viver um agridoce relacionamento homoafetivo (para a enorme gritaria nas redes dos homofóbicos e reacionários fãs do game). Sim! Os extremistas também amam. E o amor cresce entre um pesado arsenal militar que garante uma vida feliz e confortável... eventualmente algum fungo zumbi morre eletrificado e saqueadores são afastados com tiros certeiros.

Armas pesadas garantem a sobrevivência e o amor!

Já foi o tempo em que os filmes pós-apocalípticos eram libelos pacifistas, como Planeta dos Macacos(1968). Pasmen! Com Charlton Heston, quando vivo um dos líderes do lobby de armas nos EUA. Até chegarmos ao telefilme The Day After (1983), um alerta pacifista contra a guerra nuclear.

Séries pós-apocalípticas como The Last of Us são o contrário: praticamente um elogio às armas, única solução contra zumbis e estados totalitários. 

Nesse imaginário, as baratas não serão as únicas a sobreviverem a distopias políticas, catástrofes climáticas ou nucleares. Juntos estarão os “sobrevivencialistas”...

 

 

Ficha Técnica

Título: The Last of Us (série)

Direção: Craig Mazin

Roteiro: Neil Druckmann, Craig Mazin

Elenco:  Pedro Pascal, Bella Ramsey, Nico Parker, Nick Offerman, Murray Barlett

Produção: Naughty Dog, PlayStation Productions

Distribuição: HBO Max

Ano: 2023-

País: EUA/Canadá

 

 

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