quinta-feira, fevereiro 09, 2023

O horror da destruição da alma em 'Infinity Pool'


Hotéis, resorts e assemelhados sempre renderam no cinema narrativas de mistério e terror. Sob uma infraestrutura de entretenimento e prazer sempre se oculta algum tipo de submundo ou subcultura. “Infinity Pool” (2023), terceiro filme de Brandon Cronenberg, alinha-se com essa mitologia: um resort em um país fictício asiático oculta uma subcultura perversa de turismo que envolve hedonismo, amoralidade e violência. Seguindo a trajetória do pai, David Cronenberg, “Infinity Pool” entra no campo do terror corporal. Porém, enquanto o pai trata da desintegração corporal, Brandon Cronenberg analisa a destruição das almas: através de um processo de punição de clones dos condenados por crimes, o que acontece com a humanidade de alguém ao saber que seus crimes não terão consequências reais.

O ator Malcom Mcdowell representando Alex, no filme clássico Laranja Mecânica de Kubrick, é a representação mais icônica da violência amoral no cinema. Para combatê-la, Alex era submetido contra sua vontade à “Técnica Ludovico” – brutais sessões de condicionamento e lavagem cerebral em que era induzido quimicamente às sensações de agonia quase morte enquanto assistia a cenas de estupros e assassinatos em uma tela.

 A Técnica era bem-sucedida em bloquear impulsos de violência em Alex. Porém, no seu íntimo, Alex ainda era o mesmo. A cada impulso de violência sobrevinha sensações de afogamento e asfixia, fazendo-o parar. No final, o experimento governamental perdeu o controle, porque, afinal, o que era punido era unicamente o corpo. Enquanto a mente de Alex continuava livre para imaginar atrocidades. 

Não há remissão ou culpa, apenas o pragmatismo do Estado que pretendia apenas esvaziar as penitenciárias, sem tratar as origens do Mal.

Imagine, caro leitor, se o Governo imaginasse uma alternativa mais cínica e populista para o problema social da violência: condenado à morte, Alex seria clonado na cadeia. Seu clone seria executado publicamente, enquanto ele estaria livre para continuar sua vida. Hipótese bizarra, mas ainda dentro dos termos da “Técnica Ludovico”: o corpo continua sendo punido, enquanto a mente se mantém livre e impune. E ainda mais com o detalhe mórbido em que Alex assistiria à execução do seu próprio clone. 

Pois o cineasta Brandon Cronenberg, filho de David Cronenberg, imaginou algo parecido num filme extremamente surreal, sem remorso, violento e pornográfico. É o filme Infinity Pool (2023), mais uma produção dentro de narrativas que tematizam os privilégios dos extremamente ricos e como o abismo das desigualdades acaba alimentando violência e amoralidade.



Brandon continua seguindo os passos do pai David Cronenberg no campo do terror corporal. Porém, nessa terceira produção de Brandon Cronenberg (sucedendo Antiviral e Possessor) marca sua própria diferença: enquanto o pai é obcecado com o tema da desintegração corporal, seu filho está mais ocupado em analisar a destruição de nossas almas.

Em Infinity Pool encontramos ricaços passando uma semana em um resort exclusivo em um país asiático fictício – num contexto de profunda desigualdade vemos um resort isolado e fortemente protegido cercado por comunidades miseráveis. E uma ordem social garantida por uma força policial violenta e corrupta. 

Mas tendo em mãos um sofisticado processo de clonagem para os extremamente ricos daquele país que tem uma política bastante explícita: os assassinatos devem sempre ser vingados pelo filho da vítima – o original assiste à pena de morte que é perpetrada ao clone.



É um conceito fantástico: um comentário social sobre como os super-ricos são capazes de pagar qualquer coisa para se livrarem de punições, ao mesmo tempo em que pergunta o que aconteceria a uma pessoa se ela assistisse ao seu próprio assassinato. 

Certamente, o primeiro efeito seria a retirada de qualquer bússola moral. Se não há consequências, por que não roubar, estuprar e assassinar numa vida em estilo hedonista?

Um grupo de ricaços americanos descobre as delícias de passar alguns dias num resort cuja atração subterrânea é praticar violência conta os locais sem culpa, emulando o filme The Purge. Porém, numa versão mais cerebral: o que acontece com a humanidade de alguém que pode cometer crimes horríveis sabendo que não terá consequências reais.

O Filme

Infinity Pool começa, por vários segundos, com uma tela escura enquanto ouvimos uma pergunta sussurrada de uma mulher. A mulher é Em Foster (Cleopatra Coleman), e está claro que seu marido, James (Alexander Skarsgard), tem falado durante o sono. Duas das palavras que ouvimos são “morte” e “cerebral” e, à medida que o filme avança, elas parecem cada vez mais um aviso de uma ambiguidade que atravessará a narrativa.

Com muito dinheiro, mas levando uma vida miserável, James chegou com sua esposa em um resort de luxo exclusiva em algum país asiático. Seu casamento vai tão bem quanto a sua inspiração artística. Anos antes, ele escreveu um romance mal avaliado e seu bloqueio criativo para fazer um novo livro melhor sucedido - e um estilo de vida financiado pelo pai de Em – estão causando frustração e distância conjugal. 



O tédio é inesperadamente aliviado por um convite para se juntar a a um casal de americanos, Gabi e Alban (Mia Goth e Jalil Lespert), em uma excursão proibida fora do complexo estranhamente fortificado do resort – não é permitido aos hóspedes saírem das fronteiras fortificadas. Exatamente o que o arame farpado e os portões fortemente guardados estão tentando impedir?

Quando a bela jovem chamada Gabi se aproxima de James e diz a ele que é uma fã do seu livro, ele fica instantaneamente cativado. James convence Em a sair do resort para um passeio com Gabi e seu parceiro Alban, mesmo que isso seja contra as regras.

Depois de uma noite de bebedeira fora do resort, a caminho do resort James atropela um morador local, levando-o à morte.

Todos os quatro viajantes são levados por autoridades sinistras, liderados por Thresh (Thomas Kretschmann). Ele explica a James que o país em que estão tem uma bizarra política de pena de morte: o assassinato deve ser vingado pelo filho da vítima. No entanto, há uma saída para uma minoria: um processo de clonagem para os extremamente ricos que criará outro James que será assassinado, enquanto o original assiste.

Para Gabi e Alban, junto com um grupo de outros ricaços, esse processo virtual de punição é o que torna aquele país ser tão atraente: passar uma semana em um estilo de vida violento e hedonista, invadindo casas (aliás, numa sequência que faz alusão à clássica invasão de uma mansão pela gangue de Alex em Laranja Mecânica), roubando, matando, estuprando e se divertindo com o terror das vítimas – às vezes até mesmo ricaços locais. E depois voltar para os seus negócios nos EUA como se nada tivesse acontecido.



O grupo de turistas usa máscaras rituais locais que parecem rostos deformados, o que permite mais anonimato – na verdade, apenas para atiçar ainda mais a emoção de um jogo de gato e rato, já que eles não temem serem capturados e punidos pelos policiais.

Há uma ambiguidade que perpassa todo Infinity Pool: e se o clone punido com a morte fosse na verdade o original e você não fosse mais a primeira versão de si mesmo? Se isso for verdade, estaríamos numa narrativa sobre zumbis – e essas criaturas têm a mesma amoralidade. Afinal, essas criaturas não matam por maldade, mas apenas para sobreviverem num estado de continua decrepitude física.

Mas aqui nesse filme, a decrepitude é da alma: como se as sucessivas cópias de si mesmo levassem a um progressivo desvio e deterioração em relação ao original, até todos esquecerem quem já foram. Verdadeiros simulacros “vivos” – cópias da cópia até a lembrança de si mesmo desaparecer. E a consequência disso é a amoralidade.



Ao mesmo tempo, Infinity Pool dá continuidade no cinema à mitologia em torno dos hotéis e suas variantes, como resorts, hotéis-fazenda, estâncias etc. Lugares com uma ambiguidade estrutural: turistas estão ali de passagem, mas ao mesmo tempo podemos chamar de “lar” por um breve período, junto com amigos e familiares. E, principalmente, compartilhamos experiências com pessoas estranhas que nunca conheceremos.

Por isso essa representação recorrente como lugares misteriosos e com segredos, habitados por fantasmas, assassinos ou golpistas. Um tema recorrente, desde o assassino Norman Bates em Psicose até o mistério sinistro de um resort em Tempo de Shyamalan. 

Mas o principal é que o filme Infinity Pool prova que Brandon Cronenberg encontrou um caminho bem diferente do pai, mesmo atuando no mesmo campo do terror corporal. Brandon não é um clone.


 

Ficha Técnica

 

Título: Infinity Pool

 

Direção: Brandon Cronenberg

Roteiro: Brandon Cronenberg

Elenco:  Alexander Skargard, Mia Goth, Cleopatra Coleman, Thomas Kretschmann

Produção: Film Forge, Hero Squared, 4 Films

Distribuição: Focus Feature International

Ano: 2023

País: Canadá, Hungria, França

 

 

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