quinta-feira, fevereiro 02, 2023

Jacques Lacan e H.P. Lovecraft se encontram no filme 'Significant Other'


Um dos filmes mais interessantes e surpreendentes de 2022. Diretores e roteiristas independentes vêm buscando nos últimos anos projetos que não consigam ser encaixados num único gênero. Assim como o filme “Significant Other”, um híbrido de drama, terror e ficção científica no qual cada “plot twist” faz a narrativa dar uma reviravolta de gênero. Mas a dupla de diretores/roteiristas Dan Berk e Robert Olsen vai além ao conectar a semiótica do desejo de Lacan (o outro como “significante”) e o horror cósmico de H.P. Lovecraft. Um casal tenta se reconectar romanticamente numa longa caminhada por uma trilha na costa noroeste do Pacífico. Só que esse “reconectar” tem sentidos (ou “significantes” lacanianos) diferentes para cada um. Sem saberem, são observados por alguma coisa de fora desse mundo. Que, ironicamente, descobrirá essa incompletude originária na qual se fundamenta o desejo humano.

Será que conhecemos realmente o outro? Ou até mesmo numa relação íntima, será que realmente podemos conhecer verdadeiramente o nosso parceiro? O destino do outro nos relacionamentos parece sempre tender ou para o espelho ou para a sedução – ou o outro vira um suporte para nossas projeções fantasmáticas dos nossos próprios desejos; ou vira uma espécie de atrator estranho, objeto exótico ou irredutível o qual deve ser seduzido para ser reduzido, mais uma vez, aos nossos próprios desejos.

O híbrido de drama-terror-sci-fi Significant Other (2022), da dupla de diretores Dan Berk e Robert Olsen, faz uma grande metáfora dessa questão psíquica do outro, num arco simbólico que vai de Lacan (a alusão ao “significante”) até a monstruosidade híbrida de H.P. Lovecraft.

Para começar, o título “outro significante” é bastante alusivo ao destino do outro como significante semiótico dentro da ideia lacaniana do inconsciente que se estrutura como linguagem. O outro e o próprio desejo só podem ser pensados dentro de uma rede semiótica no qual os significantes estão presentes em todos encontros e desencontros humanos – no qual o “desejar” é mais importante do que o “o quê desejar”. O desejo como uma ausência nunca satisfeita que sistematicamente procura suportes (ou “significantes”) que dão a impressão de satisfazê-lo.

O filme acompanha Harry (Jake Lacy) e Ruth (Maika Monroe), um casal junto há seis anos que vai passar alguns dias como mochileiros em uma trilha na costa noroeste do Pacífico. Muito mais por Harry, com experiência anterior naquela trilha. 

Visivelmente, tudo está fora da zona de conforto de Ruth (praticante de surf) e pouco afeita a caminhadas em florestas. Enquanto Ruth vive numa ansiedade ansiosa, para o confortável Harry é uma estratégia de sedução: a certa altura planejada, diante de um lindo cenário com o Oceano Pacífico ao fundo, pedi-la em casamento. 

Porém, apesar de tantos anos de relacionamento, nem Harry tem noção dos conflitos e traumas internos de Ruth, e nem Ruth conhece o psiquismo tão enraizado quanto as árvores da floresta da trilha – é flagrante o conflito simbólico entre o imaginário fluido de Ruth, avesso ao anseio de institucionalizar o amor de Harry através do casamento – e a floresta ao redor é o grande simbolismo que se contrapõe à fluidez do surf, na primeira metade do filme. 

Significant Other joga com essa ideia de que jamais conheceremos inteiramente o outro e que amor e desejo são sentimentos intransitivos: significantes que jamais encontram um significado correspondente, um objeto ou sentido de satisfação.



“Meu amor por você já não é o suficiente?”, responde Ruth ao negar o pedido de casamento de Harry, oferecendo uma aliança de noivado para selar a relação. Mais uma vez lembrando a semiótica lacaniana do desejo, Harry é prisioneiro da cadeia neurótica do desejo: “eu desejo o desejo que o outro deseja” – Harry quer seduzir o desejo do outro para servir de significado ao significante do próprio desejo.

Esse é o jogo da primeira metade do filme: parceiros românticos frustrados por suas respectivas inseguranças, representadas pelas mochilas que carregam nas costas ao longo da trilha.

Mas esse jogo de metáforas é observado por alguma coisa que se esconde e se movimenta na floresta – percebemos essa a existência da ameaça com a câmera em ponto de vista levemente desfocada que acompanha o casal. 

Essa será a virada do drama para a ficção científica ao melhor estilo dos pesadelos Lovecraftianos. Que, como vimos em postagem anterior, o autor mais adaptado ao cinema do século XXI por expressar melhor o espírito do nosso tempo marcado pelo hibridismo do pós-humano: a monstruosidade híbrida, estéril, que somente pode reproduzir por fagocitose ou cissiparidade.

O Filme

filme de Olsen e Berk não dá para ser rotulado ou encurralado em um gênero porque não é simplesmente um filme único. Ele se transforma em vários por toda parte; cada vez inesperadamente. 

O filme abre com a imagem de um bólido vermelho caindo do céu diretamente numa densa floresta, seguida por um som desagradável no melhor estilo Predador, deslizando pela floresta na direção de um cervo próximo que, logicamente, será a primeira vítima de uma criatura não identificada. 

Imediatamente depois, encontramos Harry e Ruth. Um casal junto há seis anos, a caminho de um acampamento - planejado por Harry – na bela costa do noroeste do Pacífico.



A dinâmica emocional da dupla é explorada na primeira metade do filme. Harry é charmoso, se não um pouco desajeitado. Mas ele está comprometido e planeja propor o casamento no topo de uma majestosa falésia à beira do oceano. 

Ruth - mais quieta e propensa à ansiedade – não quer saber de casamento, em parte devido ao trauma do divórcio de seus pais. Mas ela também está nervosa, aparentemente pressentindo algo mais ameaçador. Harry acalma seus medos explicando que há mais perigo em sua atividade preferida de surfar do que sua atual aventura de caminhada.  

Ruth responde ao pedido de casamento de Harry com um ataque de pânico. "Estou com você porque te amo - isso não é o suficiente?", reage. 

Suas opiniões sobre amor e relacionamentos são mais fluidas e relaxadas, ao contrário de Harry: “Algum dia você vai mudar; talvez essa nova versão de você me ame”, prevê Ruth. Sem saber que esse desejo poderá se realizar da maneira mais terrível.

A bizarra conexão Lacan e Lovecraft – Alerta de Spoilers à frente

A meia hora inicial de Significant Other é tranquila. A vasta floresta de Oregon, combinada com o pós-pedido de casamento recusado, ilustra um tom misterioso e atmosférico que é abalado por vários sustos - quatro para ser exato - recíprocos entre Harry e Ruth, que fazem várias caminhadas solitárias pela floresta. Cresce um sentimento de paranoia e desconfiança que sutilmente fazendo introduz a pergunta: "Será que realmente conhecemos nossos parceiros?" 

Ruth tropeça no mesmo cervo do início do filme – ele foi rasgado e coberto por uma substância estranha. Durante uma caminhada posterior, ela entra em uma caverna e se assusta com algo que não fica visível para o espectador. Depois disso, ela começa a agir de forma estranha, ainda mais desconfiada. 

Harry, reclama que ela está sempre estressada e paranoica. Mas o que Ruth está escondendo? E o que ela realmente encontrou naquela caverna? 



É no último ato que descobrimos para onde a dupla de diretores querem nos levar nessa bizarra combinação de Lacan com Lovecraft.

Como uma boa criatura Lovecraftiana, a entidade alienígena fagocita outros seres “em busca de informações”, como afirma, após possuir corpo e alma de Harry. Mas, para sua surpresa, descobriu o amor: especificidade humana que jamais encontrou em qualquer ser no universo.

Um sentimento particularmente humano jamais satisfeito, porque o outro é irredutível e que jamais um humano descobrirá – ao contrário do ser alien, capaz de absorver fisicamente o outro e sentir literalmente as emoções de um outro ser.

Ironicamente ele é capaz de sentir o amor na medida em que o outro torna-se seu através de uma bizarra fusão.

Por isso, a versão alienígena de Harry ironicamente ama Ruth como jamais um ser humano poderá amar. E mais: também ironicamente o alienígena resolve a intransitividade lacaniana do desejo – a impossibilidade ontológica do desejo encontrar a completa satisfação. A busca interminável do ser humano na tentativa de dar conta da sua incompletude original. Permanente em busca de algo que jamais encontra: apenas significantes (consumismo, drogas, perversões, o outro como espelho etc.) que não encontram um significado.

E o alien encontra a solução, da forma mais terrível possível. Como ponta de lança de uma invasão que livrará a humanidade do pesado fardo do próprio desejo. 


 

Ficha Técnica

 

Título: Significant Other

 

Diretor: Dan Berk, Robert Olsen

Roteiro: Dan Berk, Robert Olsen

Elenco:  Maika Monroe, Jake Lacy, Mathew Yang King

Produção: Paramount Players, Quay Street Productions

Distribuição: Paramount +

Ano: 2022

País: EUA

 

 

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