sábado, fevereiro 11, 2023

Revisitando 'Rambo: Programado Para Matar' - do cinema esquizo ao patriótico


O personagem John J. Rambo acabou sendo ressignificado pela propaganda nacionalista de Hollywood da Era Reagan. Uma propaganda feita para exorcizar a crise moral dos EUA pela derrota humilhante no Vietnã: do personagem disfuncional para o ícone fálico-exibicionista da máquina militar norte-americana. Por isso, o primeiro filme da franquia “Rambo: Programado para Matar” (Rambo: First Blood, 1982, disponível no MUBI) acabou contaminado pelos filmes posteriores. Esse filme precisa ser revisitado, pois foi um filme fora da curva num momento em que Hollywood produzia uma onda de “filmes recuperativos” para elevar o moral da América. Rambo é ainda o anti-herói que ecoa todos os anti-heróis do chamado “cinema esquizo” dos anos 1970 de filmes como “Um Estranho no Ninho” e “Taxi Driver”: protagonistas instáveis, obsessivos, paranoicos e disfuncionais que declaram guerra contra seu próprio país.

No meio da crise dos reféns em Beirute em 1985 (o voo 847 do Cairo para EUA sequestrado por terroristas do Hezbollah no aeroporto de Beirute), o presidente Ronald Reagan assistiu ao segundo filme da franquia Rambo (Rambo: First Blood Part II) e disse depois: “Rapaz, depois de ver Rambo ontem à noite, sei agora o que fazer da próxima vez que isso acontecer”.

A partir do segundo filme e dos elogios de Ronald Reagan, Rambo tornou-se o verdadeiro ícone de uma década cuja obsessão dos republicanos no poder era reabilitar a imagem dos EUA, seriamente trincada depois da humilhante derrota do Vietnã e a invasão da embaixada do País em Teerã, durante a Revolução Islâmica no Irã. No segundo filme, Rambo estava de volta ao Vietnã em busca dos companheiros que foram abandonados. E dessa vez a América não iria perder. Pelo menos no cinema.

A partir dessa continuação, Rambo foi ressignificado patrioticamente como a arma militar invencível dos EUA. Mais tarde na franquia, ele chegaria a derrotar tropas soviéticas em outro imbróglio geopolítico: o Afeganistão.

Rambo foi ressignificado, porque no seu primeiro filme de 1982, Rambo: Programado para Matar (Rambo: First Blood) ele era bem diferente e perturbador para os sonhos de reabilitação nacionalista que se iniciavam naquela década: um veterano do Vietnã ressentido, alienado numa crescente introspecção esquizoide e disfuncional diante da sociedade que não recebeu de braços abertos os soldados que voltaram derrotados. E profundamente traumatizados.

No início dos anos 1980, Rambo era ainda um personagem renitente daquilo que o pesquisador Jason Horsley chamava de cinema esquizo dos anos 1960-70: filmes como Blow Up, Perdidos na Noite, Easy Rider, Um Dia de Cão, Um Estranho no Ninho, Taxi Driver etc. começam a trazer um novo realismo misturado com desespero, cinismo e paranoia política, dando a esses temas abordagem inédita. 

Os protagonistas desse período são retratados não mais como heróis convencionais, mas, agora, potencialmente psicopatas, esquizoides, alienados e revoltados. Jack Nicholson foi o porta-voz desse período (combinando inarticulação e revolta com cinismo e integridade). Protagonistas instáveis, obsessivos e paranoicos indicam um processo de maturidade do diagnóstico da sociedade norte-americana: com a saída de cena do inimigo externo (marcianos, comunistas etc.), a origem de todo mal só pode ser encontrada no interior sociedade, nas próprias instituições constitutivas. Da desilusão e rebeldia sem causa, a paranoia e psicopatia passam a ser respostas válidas e adequadas do herói para os novos tempos – Leia HORSLEY, Jason. The Secret Life of Cinema: Schizophrenic and Shamanic Journeys in America Cinema. London: McFarland, 2009.

O ex-boina verde John J. Rambo era um protagonista que ecoava todos esses anti-heróis da onda de cinema esquizo dos anos 1970 que questionava os fundamentos políticos de um país moralmente em crise. 


Rambo ressignificado: do cinema esquizo ao patriótico

Ao contrário dos inúmeros spin-offs que foram produzidos ao longo das décadas (Charles Bronson, Van Damme, Braddock, Steve Segall etc.), Rambo não é um assassino frio. Pode se dizer que ele é quase um escoteiro, mas um escoteiro fora do comum que, se for provocado, vira uma máquina de mortes e destruição.

Em Rambo: Programado para Matar, a narrativa não se concentra na vingança e nem no caos desmotivado, mas na sobrevivência. Numa luta amarga pela sobrevivência, já que Rambo sente-se um estranho dentro do próprio país que (involuntariamente) defendeu. Como desabafa nas linhas de diálogo finais: “A guerra não era minha... me chamaram, fiz tudo para vencer (...) eu pilotava aviões, dirigia tanques. Tinha acesso a equipamentos de milhões de dólares... Aqui não posso trabalhar num estacionamento!”.

O Filme

John Rambo surge nas primeiras cenas como um andarilho solitário, com jaqueta e mochila do Exército, chegando a uma pequena cidade montanhosa e gelada. Ele está à procura de um amigo também ex-Boina Verde que lutou ao lado do seu grupo no Vietnã. Para em seguida descobrir que ele morreu recentemente de câncer devido à exposição ao desfolhante químico “agente laranja”, largamente usado na guerra.

Atordoado, Rambo vagueia por uma pequena cidade chamada Hope. Chocado, por se ver como o último sobrevivente dos boinas verdes que lutaram na guerra. Até ser confundido com um vagabundo pelo arrogante xerife metido a valentão Teasle (Brian Dennehey) que o prende por vadiagem. ''É uma pequena cidade tranquila'', diz o xerife. ''Você pode dizer que é chata. Mas é assim que gostamos, e sou pago para mantê-la assim.''



 Rambo é sadicamente humilhado pelos policiais na delegacia, fazendo-o reviver na sua mente todos os traumas e as cenas de torturas e dor que sofreu no Vietnã. Mas os pobres policiais caipiras não são páreo para uma máquina de matar boina verde: após os policiais sentirem o peso dos seus golpes, Rambo foge em uma motocicleta e se esconde na floresta. Todos os homens do xerife e um helicóptero são mobilizados para encontrá-lo no meio da mata. Definitivamente a pequena cidade de Hope deixará de ser chata.

Na caça a Rambo na floresta vemos o nascimento de todos os tropos dos thrillers de ação e sobrevivência que veríamos nas décadas posteriores. Rambo passa a viver da terra. Tudo o que ele tem é uma faca de caça com uma bússola no cabo. Como na clássica Jornada do Herói, Rambo praticamente morre na explosão de uma mina, cercado por policiais e soldados da Guarda Nacional. Para depois renascer, ainda mais forte o suficiente para literalmente mandar a cidadezinha de Hope para os ares.



Seu antigo comandante Boina Verde, Coronel Trautman (Richard Crenna), sabe do que Rambo é capaz e chega na cidade não para salvar Rambo, mas para convencer o xerife de que é eles que têm que ser salvos daquela arma secreta militar que perdeu o controle. É Rambo que está caçando cada soldado e policial que tenta matá-lo.

Ao longo do filme, Sylvester Stallone tem poucas linhas de diálogo, mantendo a marca de um ator de performance corporal. Mas, principalmente, a amarga solidão esculpida pela montagem e planos de câmera precisos, consegue fazer o público esquecer da figura de Rocky Balboa (Rocky: Um Lutador, 1976), com a sua humildade involuntariamente cômica. 

Ao contrário, Rambo é amargo, cronicamente disfuncional (uma máquina de matar extemporânea que perdeu sua utilidade) e que desistiu da própria vida. Mais uma vez, Rambo entra em guerra involuntariamente, dessa vez contra o próprio país.

Rambo: Programado para Matar é um filme fora da curva, num momento em que Hollywood incentivava a produção daquilo que Jason Horsley chama de “cinema recuperativo” para tentar elevar o moral de um país abalado: cinema de retro-fantasias como a saga Star Wars (emulando Flash Gordon ou Buck Rogers) ou a violência sadística, primitiva e exibicionista de Sexta-Feira 13, Halloween ou A Hora do Pesadelo.

São filmes menos nostálgicos e muito mais empenhados em exorcizar os sombrios diagnósticos paranoicos da sociedade americana feitos pelo cinema esquizo.

Rambo: Programado para Matar merece ser revisitado, para diluir toda a imagem falo-exibicionista patriótica que a Era Reagan criou para o personagem, que o transformou no garoto-propaganda da década cujo mainstream chegaria ao ápice com a Queda do Muro de Berlim.

Porém, fica uma pergunta final ao roteirista: se os EUA tinham uma arma tão letal e invencível como Rambo e seus amigos boinas verdes, por que perderam a guerra?


 

Ficha Técnica

 

Título: Rambo: Programado para Matar

 

Direção: Ted Kotcheff

Roteiro: Brandon Cronenberg

Elenco:  Sylvester Stallone, Brian Dennehy, Richard Creena

Produção: Anabasis N.V., Elcajo Productions

Distribuição: Orion Pictures, MUBI

Ano: 1982

País: EUA

 

 

Postagens Relacionadas

 

Uma História do "Cinema Esquizo"

 

 

"Argo" e "Ghost Army": a simulação uniu Guerra e Cinema

 

 

 

Oscar de melhor filme para "Argo": os EUA elogiam sua principal arma, a ilusão

 

 

Filme "A Guerra do Amanhã" é propaganda da Doutrina Biden para guerras do futuro

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review