Olhar o estilo retrofuturista otimista, brilhante e ensolarado dos anos 1950-60, ao estilo “Os Jetsons”, ainda nos fascina. Olhamos com a nostalgia do futuro do passado do século XXI: e se tivesse dado certo? Mas a série Apple TV+ de comédia dramática “Olá, Amanhã!” (Hello Tomorrow!, 2023-) suspeita que todo esse tecno-otimismo esconde algo muito mais sombrio: uma sociedade (tanto no passado como no presente) repleta de produtos avançados que apenas fazem a sociedade parecer avançada – um futuro que nada mais foi do que uma ilusão de fuga do tédio e angústia existencial numa sociedade que impõe a rotina e padronização. Uma empresa vende um projeto inédito: um condomínio de classe média na Lua, prometendo aos felizes compradores abandonar a Terra e fugir dos seus próprios problemas. Mas tudo parece ser um castelo de cartas pronto para desabar.
Quem inventou o futuro? Nem Júlio Verne, nem HG Wells. Foi o jornalista e ilustrador francês Albert Robida através de um verdadeiro cadastro ilustrado sobre o futuro na revista Le Caricature no final do século XIX, além do seu livro “O Século XX” de 1883.
Entre outras previsões certeiras (a revolução bolchevique, a emancipação feminina e a automação), a estética através da qual representava o futuro era “steampunk” – conceito atual para designar uma espécie de futurismo no qual o mecanismo a vapor, engrenagens e madeira convive com televisores, computadores analógicos e máquinas voadoras. Robida imaginava um futuro, por assim dizer, orgânico e harmônico.
A vanguarda modernista dos Futurismo italiano deu a pitada que faltava a esse futuro: incorporou a velocidade dos foguetes e dos carros de corrida – inspirado no crescente militarismo que se desembocaria na II Guerra Mundial. Porém, o futuro imaginado pelos artistas futuristas era épico como, por exemplo, em Marinetti: através da velocidade, aceleração e guerra, destruir o passado (estátuas, museus etc.) para refundar a História a partir do zero.
A iluminada e otimista sociedade de consumo dos EUA pós-guerra incorpora o design arrojado futurista (carros inspirados no formato de setas ou foguetes, gadgets tecnológicos com design clean, arrojado, prateado e com superfícies lisas e brilhantes), porém com uma paleta de cores em tons pastéis. Simbolicamente, o futurismo norte-americano combinou arrojo e conformismo, velocidade e inércia – era o próprio zeitgeist da sociedade de consumo de massas inventada pela América: fé no futuro através do arrojo estético e, ao mesmo tempo, o conformismo imposto por uma sociedade massificada.
Futuro, velocidade e aceleração deixaram de ter um tom épico, como entre os futuristas ou mesmo em Robida. Para virar uma fantasia escapista vendida pela indústria do entretenimento através de produtos e serviços - simplesmente esquecer dos problemas familiares, pessoais ou profissionais através de uma certa de futuro que supostamente “enriqueceria” a existência.
A série Apple TV+ Olá, Amanhã! (Hello Tomorrow!, 2023) cria uma espécie de realidade alternativa como se o futuro imaginado em animações dos anos 1950-60 como “Os Jetsons” (carros voadores, empregadas robôs, calçadas esteiras-rolante e cidades nos céus) tivesse sido realizado numa estética retofuturista.
Essa estética futurista da cultura americana dos anos 1950 combinada com engenhocas de ficção científica tem um charme único e ainda nos fascina. Principalmente pela nostalgia do futuro do passado, contrastando com a distopia em que se tornou o presente: e se aquele futuro tivesse dado certo?
Na verdade, é um movimento chamado “retrofuturismo” que imagina visões do século 21 visto por pessoas que não viveram para vê-lo. Tem sido uma parte importante de jogos como “Bioshock” e “Fallout”, e incluído em filmes como Brazil, O Filme, A Cidade das Crianças Perdidas e Cidade das Sombras.
Nunca foi tão bem empregado na televisão quanto nessa nova série Olá, Amanhã!, uma comédia dramática que mistura conceitos de ficção científica com um mundo que parece ter uma dívida com a série Mad Men, ao mesmo tempo em que diz uma muito sobre onde estamos hoje em 2023.
Na série, robôs e carros voadores parecem não ter mudado a vida das pessoas: a rotina, o tédio e as mazelas humanas (traições, ressentimentos familiares etc.) continuam as mesmas: mas há uma equipe de vendedores que prometem um futuro para seus clientes ansiosos e inseguros. Imagine deixar tudo para trás e recomeçar não em um novo país, mas em um corpo celeste totalmente novo: condomínios na Lua com todas as comunidades de um típico subúrbio de classe média. A condomínio lunar chamado “Brightside”.
Ir até a Lua não é mais coisa para astronautas e ricaços. Brightside é a promessa da democratização de um sonho. Um sonho de fugir das mesmas inseguranças humanas que vivemos aqui, no século XXI. Fantasias escapistas, a grande isca do marketing e da publicidade.
A série
Tudo parece idílico quando Olá, Amanhã! começa. A tecnologia tornou a vida perfeita: as pessoas dirigem em carros flutuantes que parecem Cadillacs, robôs entregam correspondência e servem cerveja, empresários usam jetpacks para ir trabalhar e todos os tipos de dispositivos peculiares tornam as tarefas domésticas fáceis. Existe até um pássaro de desenho animado que dirige um caminhão de entrega, anunciando ao mundo que está “entregando sorrisos”.
Mas não demora muito para que as rachaduras comecem a aparecer. A série usa esse contraste, entre o sonho de um futuro melhor e a amarga realidade de hoje, para contar uma história tensa sobre os desafios de viver com as escolhas que fazemos.
Começa brilhante e feliz, mas conforme a realidade se estabelece, o show se assemelha a algo como Uncut Gems filtrado pelos momentos iniciais de Fallout.
A história gira em torno de Jack (Billy Crudup), um caixeiro-viajante que lidera uma pequena equipe que vende unidades residenciais para uma colônia lunar chamada Brightside. Eles vão de porta em porta, fazendo grandes promessas sobre a vida no espaço, antes de seguirem para a próxima cidade pequena. Jack é particularmente hábil nisso; em uma das primeiras cenas do show, ele consegue vender um enredo para um estranho bêbado e solitário em um bar.
O estilo de vida se encaixa perfeitamente na maioria da equipe. Isso permite que Eddie (Hank Azaria) fique em busca de vendas para pagar suas dívidas de jogo, enquanto Herb (Dewshane Williams) está apenas tentando construir um pé-de-meia para sua família, em breve em expansão. Shirley (Haneefah Wood) faz o possível para coordenar a equipe de vendas manter todos sob controle enquanto faz sua subida na escada corporativa.
O que rapidamente fica claro é que quase tudo no mundo de Olá, Amanhã! é uma farsa. Você pode ver isso em muitos dos clientes em potencial da Brightside, que, apesar de terem toda essa tecnologia incrível na ponta dos dedos, estão profundamente infelizes. Alguns estão desempregados, substituídos pelos robôs e automação, enquanto outros foram alienados por familiares e amigos que estão perseguindo um sonho de ficção científica.
Ninguém exemplifica isso melhor do que Jack, cujo vício em trabalho e sempre com um sorriso nos lábios, permitiu que ele evitasse todos os problemas reais de sua vida. Incluindo a esposa e filhos, que abandonou.
O mundo de Jack, tanto pessoal quanto profissional, é construído sobre um precário castelo de cartas. Enquanto ele mente sobre seu relacionamento com o filho, sua vida profissional também começa a desmoronar. Os foguetes para a comunidade lunar Brightside - que, pelo menos nos três primeiros episódios, não temos certeza de que realmente existam fora dos vídeos holográficos de vendas - continuam atrasando, forçando os clientes a esperar pelo próximo lançamento ou exigir um reembolso.
Mas seu estilo de vida nômade chega a uma parada surpreendente. Acontece que o fala mansa Jack tem alguns segredos, incluindo um filho de 20 anos, Joey (Nicholas Podany), que nem sabe que ele existe e não quer saber. Uma confluência de eventos leva a equipe de vendas da Brightside a uma estadia prolongada na cidade natal de Joey, onde as vendas são pequenas, mas Jack consegue encontrar pelo menos um pequeno caminho de volta à vida de seu filho.
Como dissemos acima, quase tudo na série parece ser uma farsa e o negócio da comunidade Lunar Brightside um castelo de cartas pronto para cair. Todos parecem querem fugir de algo: dívidas de jogo, problemas familiares, traições... ou quem sabe, o próprio empreendimento Brighside – tudo parece ambíguo e não sabemos que é real ou um golpe mercadológico para incautos consumidores.
Como fazer a sociedade parecer avançada
Fica claro que a estética retrofuturista das décadas de 1950-60 baseada na estética de foguetes e setas (velocidade e aceleração como princípios moralmente bons) é a seta da fantasia escapista da alienação. O futuro que fracassou porque não passou de uma ilusão de fuga do tédio, alienação e angústia existencial numa sociedade que impõe a rotina e padronização. É a própria sociedade de consumo e indústria do entretenimento.
Um dos pontos altos da série é mostrar como o avanço tecnológico e inovação pode se tornar absolutamente inútil, manifestando-se muito mais como marketing do que substância.
Em quase todas as cenas vemos gadgets que fazem barulho e máquinas ao estilo Jetsons: as pessoas se deslocam usando mochilas a jato, recebem bebidas servidas por bartenders robôs atrevidos e assim por diante. Esses aparelhos parecem a própria essência do futuro, mas fazem pouco para realmente melhorar a experiência das pessoas. Em vez disso, destacam os limites dos avanços tecnológicos: tudo pode se tornar apenas inútil ou fútil.
Por exemplo, na série quase tudo levita. Existem carros que levitam, pastas que levitam, passeadores de cães que levitam - todos acrescentando pouca utilidade. Os carros não podem realmente voar; eles simplesmente pairam na mesma altura que estariam se tivessem rodas. As pastas ainda têm alças; eles também podem ser carregados. Para que servem esses produtos avançados, além de fazer uma sociedade parecer avançada?
Esse retrofuturo iluminado e atraente se torna cada vez mais opressivo. Os objetos supostamente inovadores que cercam os personagens nada fazem para aliviar seus problemas. Uma gravata auto-amarrada não pode consertar o relacionamento de Jack com seu filho. Um bife perfeitamente grelhado de uma máquina topo de linha, assistida por uma tecnologia de aroma, não pode consertar um casamento. Em vez disso, a maioria dos itens futurísticos do programa são, na melhor das hipóteses, ornamentais.
Assim como as diversas atualizações e inovações tecnológicas no nosso próprio presente – como em Olá, Amanhã! parecem mais querer vender aparência de futuro e inovação, mas na verdade alimentam uma ilusão escapista de mudança ou fuga dos problemas reais.
Ficha Técnica |
Título: Olá, Amanhã! (série) |
Criação: Amit Bhalla, Lucas Jansen |
Roteiro: Amit Bhalla, Lucas Jansen, Jiehae Park |
Elenco: Billy Crudup, Haneefah Wood, Alison Pill |
Produção: Apple TV +, MRC Television, Mortal Media |
Distribuição: Apple TV + |
Ano: 2023 |
País: EUA |