“OtherLife” (2017) é um filme australiano independente (disponível na
Netflix) que aborda o tema da realidade virtual, mas não através da perspectiva
da simulação através de um software. Mas a realidade virtual como uma ideia
química e biológica. Mais precisamente, por meio de um “software biológico”: se
as nossas memórias são resultantes de complexas reações químicas, poderiam ser
codificadas e transformadas na última interface da história da tecnologia: a
bioquímica-digital. Uma droga na qual a realidade virtual comprime o
tempo-espaço, lembrando a abordagem de “A Origem” de Nolan: um minuto do tempo
real corresponderia a um ano de “férias” virtuais em praias paradisíacas ou nas
montanhas nevadas de cartão postal. Para pessoas “sem tempo para ter tempo
livre”, como anuncia a startup que promove o produto “OtherLife”. Mas conflitos
corporativos, além do drama pessoal da cientista criadora da droga virtual, tornarão a
interface “OtherLife” em um jogo perigoso. Filme sugerido pelo nosso emérito leitor Felipe Resende.
Dizem
que os olhos são as janelas da alma. Ou em termos dos tempos atuais sob o
domínio das ciências computacionais e neurociências, uma interface entre o
cérebro e os estímulos do mundo exterior. Mais uma interface tecnológica entre
as diversas da história das tecnologias: bio-mecânica (ferramentas manuais,
carruagens etc.), elétrico-mecânico (motores elétricos), bio-elétrica (marca-passo,
p.ex.), elétrico-eletrônica (TV, computadores etc.) e assim por diante.
Restaria
a última interface: a eletrônica-neuronal com as experiências de
servomecanismos comandados pelos impulsos elétricos do cérebro. De William
Gibson com seu livro “Neuromancer” (1984) até o filme Matrix (1999), o subgênero cyberpunk explorou esses mundos virtuais
nos quais uma rede neuronal se conectaria diretamente com uma rede digital,
imergindo o ego em ambiente digitais.
Mas o
filme australiano OtherLife (2017) vai
além ao imaginar as implicações da descoberta de uma nova interface: a
digital-neuronal. Em outras palavras, um software biológico chamado “otherLife”,
projetado por meio de códigos e “impresso” numa impressora 3D cujo resultado é
um líquido escuro aplicado nos olhos (as janelas da alma) com um conta-gotas. O
que faz o usuário imergir em uma realidade virtual dos sonhos: praias
paradisíacas ou aventuras em snow-board
em montanhas cobertas de neve.
Se as
memórias e todos os estímulos do mundo externo (percepção do tempo-espaço) são
processados de forma química pelo cérebro, então poderiam ser digitalizados e depurados
em linhas de códigos por um programador.
Mas há
algo mais: a compressão do tempo-espaço, assim como comprimimos arquivos
grandes em computadores: um minuto no tempo-espaço real corresponderia a um ano
nas férias imersivas em OtherLife. Algo parecido com as sucessivas camadas da
mente em tempos diferentes do filme A
Origem (Inception, 2010) de
Christopher Nolan.
O
filme OtherLife tem o mérito de
revelar muitas facetas da nova cultura hypster-digital de startups e
aplicativos: como a tecnologia está criando mundos cada vez mais solitários
para os seres humanos habitarem – basta ver como os algoritmos atuais criam
bolhas virtuais para cada usuário nas redes sociais e mecanismos de busca.
E
também, como a tecnologia de realidade virtual reproduz formas de lazer ou de
tempo livre inspiradas em fantasias escapistas e compensatórias. E sempre
solitárias.
O Filme
Ren
(Jessica De Gouw) é uma programadora e inventora dessa nova interface. Mas o
gênio atrás de OtherLife vive um drama pessoal: seu irmão Danny (Thomas
Coquerel) está em estado de coma no hospital após um acidente em uma praia –
num mergulho bateu a cabeça em uma pedra. Ren está obcecada com a ideia de que
o coma é uma prisão bioquímica na qual de alguma forma pode-se encontrar uma
saída para a consciência ainda viva em seu interior.
Ren
consegue codificar essa prisão em uma espécie de narrativa digital: se fizer o
ego do seu irmão entrar nessa narrativa virtual de uma cela de prisão, no
interior da mente poderia imaginar a própria fuga, despertando para o mundo
real.
Mas o
processo de desenvolvimento desse software biológico é caro. Por isso se
associa à startup de Sam (T.J. Power) que vê na invenção de Ren uma
oportunidade comercial: transformar em um aplicativo em realidade virtual para
aqueles que “nunca têm bastante tempo livre”. Uma inédita forma de lazer para
pessoas muito ocupadas: que tal velejar no Caribe por um ano, enquanto na
realidade só se passou um minuto?
Problemas
de overdose, sobrecarga neuronal e saturação do sistema nervoso começam a
ocorrer. Mas a startup corre contra o tempo para o lançamento de OtherLife. Os
custos crescentes para o desenvolvimento do software fazem buscar novos
clientes, dessa vez o governo. Preocupado com o sistema prisional lotado, um
ministro vê no OtherLife a chance de esvaziar as prisões: condenados poderão
viver anos em uma prisão virtual, enquanto no mundo real terão passados apenas
algumas semanas.
Por
isso, as pretensões comerciais urgentes de Sam e a pesquisa de Ren entram em
conflito. Principalmente porque Ren esconde do seu sócio a versão mais avançada
do OtherLife: aquela que permite o usuário interagir com o ambiente virtual. E
no caso do irmão em coma, permitiria a fuga da prisão virtual em sua mente.
Claro
que Sam desconfiará do jogo de Ren, buscando de alguma forma roubar os códigos
secretos da versão mais aprimorada do software. Nem que seja ao custo de
aprisiona-la na versão da cela penitenciária a ponto de ser vendida ao Governo.
Deterioração do tempo livre
Certa
vez perguntaram ao pensador Theodor Adorno qual era o seu hobby em seus
momentos de lazer. Adorno estranhou a pergunta, afinal, para ele, dar aulas,
fazer pesquisas e escrever livros já eram um “hobby”. Simplesmente, o pensador
não conseguia entender essa divisão entre o tempo de trabalho e o tempo livre,
no qual vivemos prazeres compensatórios para anestesiar a dor e alienação da
rotina do trabalho.
Na
cínica linha de diálogo de Sam (o OtherLife é para pessoas que não têm tempo
para ter tempo livre) está aquilo que Adorno chamava de “deterioração do tempo
livre” – a única alternativa para o tempo de trabalho monótono e entediante são
os prazeres compensatórios e fantasias escapistas. Uma breve fuga da de um
cotidiano opressivo.
OtherLife revela como, por trás das
novas tecnologias, estão velhos conteúdos da indústria de entretenimento
tradicional, aquela dos meios de comunicação de massas. Assim como no cinema e
telenovelas, a realidade virtual repete os velhos clichês do escapismo –
praias, montanhas, erotismo, pornografia etc.
Cartografias e topografias de mundos solitários
Nesse
sentido, compreende-se o porquê das novas tecnologias construírem mundos
solitários para os seres humanos: é o próprio modus operandi da válvula de
escape do psiquismo. As formas de prazeres solitários, masturbatórios, dentro
de bolhas virtuais construídas por códigos que parecem saber mais sobre nós do
que nós mesmos.
Despachando
nossos egos para mundos virtuais, abandonamos o mundo real para as corporações
que nos vendem os últimos modelos de aplicativos que nos oferecem novos prazeres
compensatórios.
Mais ainda, o filme OtherLife
se insere numa série de produções cinematográficas premonitórias sobre a
evolução do atual projeto tecnológico tecnognóstico das cartografias e
topografias da mente: o esforço interdisciplinar das
neurociências, psicologia cognitiva, cibernética, ciências computacionais,
Inteligência Artificial e teoria da informação para tentar criar um mapeamento
e cartografia digitais não só do funcionamento do cérebro mas também desvendar
o enigma da consciência. Os objetivos são imediatamente aplicáveis: manipulação
política e
controle social – mais informações sobre esse conceito clique aqui.
Filmes como Vanilla Sky (2001), passando por Brilho
Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2003), chegando a A Origem (2010), Eva (2011) ou mesmo a animação Divertida Mente (2015), vêm explorando a
possibilidade de mapeamentos literais ou metafóricos da mente humana. E de
certa forma, traduzem para narrativas ficcionais esse projeto tecnológico de
nova engenharia social.
Dentro desta lista de filmes também se insere OtherLife, com um insight ainda mais novo e insidioso: assim como
as imagens e sons foram digitalizados, também as próprias reações químicas
neuronais podem ser digitalizadas e codificada em algoritmos.
Muito além do mapeamento e topografia da mente cujo projeto era
consciência ser simulada em algum software. Para OtherLife, a própria química do cérebro poderá ser digitalizada
para ser realizada a interface final: a digital-neuronal na qual a própria
consciência em si mesma se transforme em um software.
Ficha
Técnica
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Título: OtherLife
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Diretor: Ben C. Lucas
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Roteiro: Ben C.
Lucas, Kelley Eskridge
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Elenco: Jessica De
Gouw, Thomas Cocquerel, T.J. Power
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Produção: WBMC,
Cherry Road Films
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Distribuição: Netflix
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Ano: 2017
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País: Austrália
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