sexta-feira, setembro 02, 2022

'Freeway': Chapeuzinho Vermelho cai nos anos 1990. E descobre que os lobos são mais malvados



Desde que o conto de Chapeuzinho Vermelho chegou na Europa em 1697, passou por um longo processo de depuração. Até os Irmãos Grimm tirarem todo o sangue e canibalismo da versão original. E Disney transformar em entretenimento moral. Porém, na década de 1990 Chapeuzinho descobriu que os lobos são maiores e mais malvados. Lenhadores não irão salvá-la e a heroína precisará de muito mais recursos. Essa é a premissa do filme “Freeway – Sem Saída” (1996) um filme que, à época, passou sem o devido impacto. Porém, envelheceu bem, virando um cult. Principalmente pela performance selvagem de Reese Witherspoon e Kiefer Sutherland. Uma “white crap” foge dos pais delinquentes e da assistente social e viaja para a casa da avó. Mas no caminho, está a sua espera um pedófilo e assassino em série. Um mix enlouquecido de Chapeuzinho Vermelho, David Lynch e Tarantino. 

O que acontece quando você cruza o clássico dos Irmãos Grimm “Chapeuzinho Vermelho” com David Lynch, um pouco de Tarantino, tudo dentro da mitologia norte-americana das freeways? O resultado podemos encontrar na incisiva sátira Matthew Bright Freeway - Sem Saída (1996). Um filme pouco conhecido, mas que ao longo das décadas se transformou em um clássico cult.

Desde que o escritor Charles Perrault, em 1697, fez chegar a história do Chapeuzinho Vermelho na Europa (o conto tinha suas origens no norte dos Alpes, apresentando imagens muito cruéis), sempre chamou a atenção as versões bem mais adultas, anteriores a dos Irmãos Grimm. Que retirou toda a parte sangrenta das primeiras versões – o vermelho representando a sangue menstrual da protagonista adolescente que acaba de entrar na vida adulta, canibalismo (sem saber, Chapeuzinho come a própria avó num prato preparado pelo Lobo) entre outros detalhes menos palatáveis.

Dos Irmãos Grimm às versões Disney, Chapeuzinho Vermelho transformou-se num conto moral maniqueísta, abandonando a ambiguidade cruel das origens. 

Porém, na década de 1990 Chapeuzinho descobriu que os lobos são maiores e mais malvados. Ela precisaria de muito mais recursos e coragem extra, abandonando as esperanças de que lenhadores irão salvá-la. Principalmente se estiver nas autoestradas norte-americanas que, nessa década, ganharam uma atenção ainda maior: desde que em 1994 milhões assistiram a fuga ao vivo de O.J. Simpson pelas autoestradas da Califórnia, perseguido pela polícia e acompanhado por helicópteros das TVs, ficaram comum imagens semelhantes de fugitivos menos famosos. E sempre acompanhado ao vivo por programas sensacionalistas de TV.



Freeways são uma mitologia americana: contrastando com o caos e decadência urbana, elas são retas, organizadas, planificadas, representado a liberdade e a pureza dos pioneiros que desbravaram a América.

Porém, estamos nos anos 1990 democratas e liberais da era Clinton e início da Globalização. Com seus primeiros impactos no país: a desindustrialização (pela nova cadeia produtiva global, indústrias e empregos foram para a Ásia), desurbanização, novas tensões sociais e o fenômeno do “white crap” – a geração “nem-nem” (nem estuda e nem trabalha) numa economia sem mais perspectivas. Uma grande massa dependente do seguro-desemprego, presos em casa diante da TV divertindo-se com programas policiais sensacionalistas.

O reflexo na cultura pop foi imediato: animações como Os Simpsons e Beavis and Buthead; ou filmes como Assassinos por Natureza, Joe Sujo, Joe e as Baratas, Trailer Park Boys etc.




Produzido por Oliver Stone (Assassinos por Natureza), Freeway capta esse espírito do tempo da década, trazendo o conto do Chapeuzinho Vermelho ao seu terreno original: com muito sangue, violência e sexo. Mas não num tom slasher. Ao contrário, no tom estético pop que marcou a década: o trash.  

Também dentro desse espírito do tempo (a década da hegemonia da Globalização e do neoliberalismo), as intenções estão delineadas desde o início: usando humor negro, sangue e performances tremendas de Reese Whiterspoon e Kiefer Sutherland, Freeway espeta em cada um dos seus alvos. O primeiro é o sistema de bem-estar da América. Depois o sistema judiciário. Em seguida, o sistema penal. E, quando você junta todas as peças, percebe que Freeway está fazendo uma declaração penetrante sobre o interminável fascínio da população em geral pelo lúgubre e o violento – marcas daquela década.

O Filme

Escrito e dirigido por Matthew Bright, já nos créditos iniciais vemos as intenções de Freeway: desenhos de cenas de Chapeuzinho vermelho e o Lobo Mau numa versão adulta violenta com bandidos habitam um covil.



Depois pulamos para a protagonista Vanessa (Reese Whitespoon) na escola, aos 15 anos, com dificuldades para ler a frase “O gato bebe leite” escrita na lousa – ela é a quintessência do “White crap”: semianalfabeta, amoral, niilista e sem perspectivas familiares ou sociais.

Ela tem o que pode ser chamado de "problemas domésticos". Sua mãe (Amanda Plummer) é uma prostituta e seu padrasto (Michael T. Weiss) é um viciado em drogas. Exige respeito de Vanessa: “Você sabe quantas horas passamos na fila para pegar o auxílio-desemprego?”.

Quando os policiais prendem os dois, Vanessa enfrenta mais uma vez a ameaça de voltar ao reformatório. Então, em vez disso, ela foge para tentar encontrar sua avó paterna que nem sabe da sua existência, que mora no norte da Califórnia. Seu namorado (Bokeem Woodbine) lhe dá uma arma como presente de despedida. 

Pouco depois de entrar numa freeway, seu carro quebra. Um motorista de passagem chamado Bob Wolverton (Kiefer Sutherland) dá uma carona a ela. Enquanto eles dirigem para o norte, ela começa a se abrir para ele, contando a triste história de sua vida. Suas intenções são tudo menos altruístas – ele é um assassino em série de mulheres, cuja fama está sendo repercutida pelos programas de “mundo cão” televisivos.

Mostrando que Vanessa é uma versão de Chapeuzinho bem adaptada aos anos 1990, consegue virar o jogo: defende-se da agressão sexual, imobiliza o psicopata, pergunta a ele se acredita que “Jesus é o seu Salvador”, esvazia a arma nele e vomita de asco pela figura que acabou de matar.



O que faz ficar o filme ainda mais interessante é que ele sobrevive. Descobrimos que Bob é um cidadão acima de qualquer suspeita, casado com uma dondoca materialista Mrs. Wolverton (Brooke Shields) e que acaba para a opinião pública e para a polícia como vítima. Enquanto Vanessa vai para a cadeia. Porém, ela está obcecada perseguindo o seu objetivo: chegar à casa da sua avó. E a cadeia e policiais não serão páreo para a astúcia que Vanessa aprendeu no submundo das ruas.

Sutherland, que já interpretou grandes vilões antes, desta vez se supera. Os tiros de Vanessa fizeram um enorme estrago em Bob. Os médicos o transformaram em um monstro do Dia das Bruxas cujo rosto foi baleado, mal consegue falar, fuma por um buraco na garganta e cujas outras enfermidades e amputações são angustiantes demais para serem listadas aqui. Apoiado por sua esposa totalmente alienada, ele aparece na televisão para liderar uma campanha contra lixos humanos como Vanessa.



Lei de Roger Ebert

O olhar neoliberal (triunfante naquele momento em que a Globalização vivia o auge messiânico) contra o Estado de Bem-Estar Social é flagrante em Freeway: benefícios públicos só servem para perpetuar a ociosidade e a criminalidade. O fenômeno white crap seria menos o resultado das transformações econômicas globais liderada pelo financismo dos EUA e muito mais produto de uma burocracia estatal improdutiva.

Portanto, o filme é uma peça ideológica e um sismógrafo do zeitgeist dos anos 1990. Mas, mesmo assim, é um filme surpreendente como linguagem, mostrando que, quase 30 anos depois, envelheceu bem. 

Isso faz lembrar a chamada “Lei de Roger Ebert” (grande crítico de cinema do Chicago Sun-Times, até sua morte em 2013): “Um filme não é sobre, mas é sobre como”. Não importa o conteúdo, tema, objeto ou pretensão ideológica que pretende narrar. O que importa é como é feita a narração – o “sobre como”. 

Por exemplo, um dos gênios cineastas precursores da linguagem cinematográfica, D.W. Griffith, dirigiu dois filmes para uma América ainda saudosa da ordem escravocrata pré-Guerra Civil: O Nascimento de Uma Nação(1915) e Intolerância (1916). Porém, foi o primeiro a utilizar dramaticamente o close, montagem paralela, movimentos de câmera etc.

"Freeway" é uma sátira ácida daquelas reportagens sensacionalistas sobre crimes reais que excitam os lascivos com recriações detalhadas de eventos indescritíveis. A América sempre teve um grande apetite neste país por livros, programas de TV e filmes sobre assassinos em série, eremitas pervertidos, homens-bomba loucos e torturadores patológicos - contanto que seus atos estejam envoltos em julgamentos moralistas.

O que não é o caso de Freeway, com um final ambíguo que não deixa nada a dever ao close final em Alex, no filme Laranja Mecânica.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Freeway

Diretor: Matthew Bright

Roteiro: Matthew Bright

Elenco:  Reese Witherspoon, Kiefer Sutherland, Bokeem Woodbine, Dan Hedaya, Brooke Shields

Produção: The Kushner-Locke Company, Illusion Entertainment

Distribuição: Alpha Films

Ano: 1996

País: EUA

 

 

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