Diante da adversidade de ver Lula livre dos cárceres da PF de Curitiba, a grande mídia rapidamente buscou uma mais-valia semiótica: criou o discurso da “polarização” – Lula livre faria crescer a “radicalização”, atrapalhando as “reformas” que fariam a economia “crescer”. O discurso da polarização criou toda a mitologia da “terceira via”: o bom-senso, o nem-nem, e toda uma associação de ideias que desmoraliza a política e a militância, enaltecendo o “suprapartidário” e o “ativismo social”. Nesse ano eleitoral, o discurso da polarização ganha novos sentidos estratégicos: empoderar a terceira via para forçar um segundo turno (no qual o consórcio PMiG e grande mídia apontarão seus tradicionais canhões semióticos) e reforçar a pedagogia do medo ao associar a violência política com a polarização – na qual a própria vítima é também culpada por “polarizar”. E mantendo as ruas vazias e as esquerdas presas ao jogo da judicialização.
Até Lula ser solto dos cárceres da Polícia Federal de Curitiba, a grande mídia não falava em “polarização”. Talvez em momentos específicos, como no arremate da guerra híbrida brasileira em 2018, quando apertou o botão “eject” (ao ver que não tinham um “campeão branco” para tocar a agenda neoliberal) e apoiar a “decisão difícil” Bolsonaro.
Aturdida ao ver Lula ser solto e refazer de trás para frente o caminho que o levou à prisão em 07/04/2018 (saiu caminhando do prédio da PF de Curitiba, fez um discurso na Vigília Lula Livre e voltou para São Paulo para um discurso em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo, onde se entregara mais de um ano antes), a grande mídia entabulou um discurso da qual tirasse algum proveito semiótico da situação adversa: “Lula livre representa um risco, porque o País não precisa de radicalizações e polarizações, justamente nesse momento em que as reformas farão a economia crescer e o emprego voltar...”, rezavam em uníssono os “colonistas” – aqueles jornalistas especializados em “agrojornalismo”, plantando notas de fontes interesseiras.
O discurso de reposicionamento da grande mídia ficou naquele momento cristalizado num quadro que tinha no Fantástico chamado “Isso a Globo Não Mostra”: “Afinal, de que lado ela está?”, perguntava a atriz Lilia Cabral depois de serem mostradas imagens de arquivo de Bolsonaro e Lula atacando a Globo.
Não obstante o fato de que a grande mídia, na guerra híbrida brasileira (na qual mergulhou de cabeça como partido de oposição), ter deliberadamente açodado todo o “Brasil Profundo” (ódio, racismo, preconceito, intolerância etc.) para apontá-lo contra o PT e a presidenta Dilma, agora o jornalismo corporativo tinha que elaborar uma espécie de discurso da polarização 2.0. Em dois movimentos bem específicos.
Primeiro movimento
Se existe a “polarização”, seria necessário mostrar o seu oposto: o “bom senso”. Então, o jornalismo corporativo começou a operar essa construção semiótica. Problemas sociais e desigualdade passaram a ser nominados como “desafios”; iniciativas para o combate dessas mazelas seriam as “boas práticas” ou “soluções” avaliados por critérios como “eficiência” ou “produtividade”. E seus idealizadores passaram a ser figurados como alguma coisa entre o “empreendedorismo” e o “ativismo social” – militância, ideologia e Estado passaram a ser termos de conotação negativa porque político-partidários.
Isso foi em 2019, época em que o apresentador global Luciano Huck passou a ser incensado como a “terceira via” – a alternativa do “bom moço” que contava com o apoio de organizações como o “Agora!” (oferecendo suporte técnico e intelectual ao apresentador) e o “Renova BR” (fábrica de políticos que oferece bolsa e educação para novatos que queiram migrar para a carreira política).
Foi o início da construção da mitologia “nem-nem” ou “ninismo” em que Huck era uma versão menos caricatural do que o candidato das eleições de 2018 João Almoedo (do NOVO), que mais parecia um candidato a CEO em uma corporação do que postulante à presidência.
Nessa construção semiótica, no campo da polarização estaria tudo que é negativo (ideologia, militância, partido, protestos, incerteza política etc.) e na terceira via o positivo e virtuoso (programa, propostas, suprapartidário, ativismo, justiça, apolítico etc.).
Segundo movimento
Nesse momento, a um mês das eleições, a operação semiótica deve associar mais uma faceta negativa à polarização: a violência política.
O assassinato do tesoureiro do PT, Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu (PR) tornou-se o evento exemplar para essa operação semiótica. Arruda comemorava o seu aniversário com a temática Lula, ex-presidente e pré-candidato do PT à Presidência na eleição de outubro. O homem foi morto a tiros pelo policial penal Jorge Guaranho, apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL) - ele também foi baleado.
Eles também são culpados? |
O assassinato foi a pedra de toque para esse discurso: o assassinato seria consequência de uma disputa eleitoral polarizada, marcada pela intolerância e divisão na qual não se discutem mais “propostas”, mas tão somente ideologias.
Numa lógica ad absurdum no qual se baseia esse discurso, a culpa passa a ser também da vítima por “polarizar”: quem mandou fazer uma festa de aniversário “polarizada”, tendo Lula como tema...
Uma lógica que ignora uma simples verdade factual: o ódio como arma política foi iniciada pela extrema-direita como estratégia para criar o medo difuso. Tão difuso que faz as esquerdas se limitarem a oposição institucional ou parlamentar, apoiando o Judiciário “em defesa da democracia”. O mesmo Judiciário e sistema político que fizeram parte da engrenagem do “golpe de veludo” de 2016 – e no limite, co-responsáveis por passar pano na violência da extrema-direita (o chamado “gabinete do ódio”) que levou Bolsonaro à vitória eleitoral.
E mais uma vez, no episódio da tentativa de assassinato da vice-presidente argentina Cristina Kirchner, o jornalismo corporativo procura o reforço semiótico. Lá como cá estaríamos vivendo ambientes políticos polarizados. O atentado contra Kirchner ocorre quando o Ministério Público preparava pedido de prisão por corrupção, quando ela era presidente do país. Punição que, se confirmada, poderia retirar seus direitos políticos.
Apoiadores da vice-presidente iniciaram manifestações de apoio em frente a sua residência no bairro da Recoleta. Numa dessas manifestações, esgueirou-se Fernando Sabag com sua arma Bersa calibre 32.
Novamente em uníssono, os “colonistas” falam em “radicalismo cego”, “polarizações que se espalham no continente” e assim por diante. Nas entrelinhas desse discurso “nem-nem” é como se a vítima sempre fosse co-responsável por participar da polarização.
A mitologia “Nem-nem”
Se estivesse vivo, o semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980) certamente encontraria nessa estratégia semiótica midiática uma confirmação de uma mitologia retórica que ele próprio definiu como “crítica Nem-nem” ou simplesmente “ninismo”.
Em seu célebre livro Mitologias de 1957 o pesquisador francês argumentava que a crítica nem-nem decorre de um mecanismo de dupla exclusão – reduz a realidade histórica a uma polaridade simples, quantifica o qualitativo em uma dualidade e equilibra um com o outro, de modo a rejeitar os dois.
Segundo Barthes, é a Justiça como uma operação de pesagem. E a balança só pode confrontar o mesmo com o igual. De uma maneira mágica, foge-se de uma realidade intolerável (porque múltipla, contingencial, histórica), reduzindo-a a dois contrários para depois serem pesados e rejeitados.
A retórica do “nem-nem” busca na verdade excluir os contrários para tentar mostrar que ambos são iguais e simétricos na suposta radicalidade, e que a única solução é o “bom senso” – mito burguês no qual se baseia a forma moderna de liberalismo. A Justiça como uma operação de pesagem.
Arremate final
Esse segundo movimento do discurso da polarização é o arremate final simbólico, decisivo na reta final eleitoral:
(a) Reforçar o significado simbólico da chamada terceira via como a alternativa do bom-senso (no sentido pequeno burguês reformista que nunca vai a raiz das questões). Mas para quê se nem a própria grande mídia acredita nela? O objetivo é claro: a terceira via ajuda a levar a eleição para o segundo turno, partindo tudo do zero dando tempo para grande mídia e PMiG (Partido Militar Golpista) colocarem em ação as velhas táticas de guerra semiótica que levaram Bolsonaro à vitória em 2018.
Por exemplo, o acrônimo PCC já começa a aparecer nas manchetes aqui e ali (antes era ocultado pelo noticiário, substituído pela definição “organização criminosa que atua dentro e fora dos presídios”), suspeitando-se que o bom e velho jornalismo metonímico vai entrar em ação para contaminar o PT.
(b) Reforçar aquilo que este humilde blogueiro chama de “pedagogia do medo”: ao criar o medo difuso da violência política (que agora “se espalha pelo continente”) mantem esquerda e oposições estrategicamente paralisadas, militando apenas no campo parlamentar e da judicialização enquanto as ruas ficam vazias.
Enquanto praças, avenidas e ruas se mantiverem vazias, pacíficas, sem massas em movimento, as operações semióticas nas telas, para o distinto público, poderão continuar com toda calma.