Não é por menos que sempre o último debate antes da eleição ocorre na maior emissora do País, a Globo – emissora com maior audiência, é sempre a janela de oportunidade para a “bala de prata”: a criação de um acontecimento que controle o cenário eleitoral, seja com um freio ou um contrapeso. Pela primeira vez a “Terceira Via” atuou em casa, ou seja, na emissora que a criou e deu pernas. Para gerar o contrapeso que impeça a vitória de Lula no primeiro turno. Aquilo que foi esboçado no debate da Band, na Globo foi colocado exponencialmente em prática: abduzir Lula para o ciclo vicioso de ataques e pedidos de resposta, enquanto Tebet, Soraya e D’Ávila olhavam para a câmera, balançando a cabeça e se queixando da “polarização” que impede “propostas”. Além do chefe do Executivo poder contar com um alter ego, o simulacro de padre chamado “Kelmon”, fazendo o trabalho “hard” para Bolsonaro poder falar mais mansinho. Para a Globo, ficou um farto material para uma possível edição “matadora” às vésperas da eleição.
Os apreciadores de futebol, ou até mesmo de outros esportes coletivos, sabem que um time que atua em casa, em partida decisiva, sob a pressão da sua torcida, joga com grande intensidade na primeira meia hora. Tenta corresponder à pressão das arquibancadas e abrir o placar logo nos primeiros minutos. Por isso, parte com tudo para cima do gol adversário.
Pois o debate da Globo dessa noite-madrugada (bizarro detalhe temporal para um evento que a emissora definia como “festa da Democracia” – estava mais para “balada”) entre candidatos à presidência estava possuído por esse espírito, por assim dizer, “futebolístico”: a chamada “Terceira Via” estava jogando em casa, isto é, na poderosa emissora que inventou essa verdadeira linha auxiliar para o candidato chefe do Executivo, dentro da meta de arrastar a eleição presidencial para o segundo turno.
A todo custo, Lula NÃO pode vencer no primeiro turno. Ele pode eventualmente até vencer. Mas deverá pagar um alto custo semiótico, para, chegando ao Governo, encontrar um país deflagrado e dividido. Assim como a presidenta Dilma, que saiu enfraquecida após a vitória em 2014 – sobre isso, clique aqui.
A “terceira via”, aquela que supostamente apresentaria “propostas” que furariam a bolha da “polarização” que estaria prejudicando um debate eleitoral “propositivo”.
Pois não é que, de cara, logo nos primeiros minutos, Ciro Gomes voou na jugular de Lula com uma sanha nada “propositiva”? “E a corrupção, hein!”... “E o mensalão, hein!”... “E o petrolão, hein!”... Arrancando de Lula o espanto: “o candidato está muito nervoso!”, exclamou.
“Ex-presidiário”, “ladrão”, “líder de quadrilha”, “mentiroso contumaz” eram acusações que se ouviam do capitão-mito e do inefável Padre Kelmon (de qual festa Junina ele saiu?) num frenesi que por algum tempo capturou Lula numa sequência “bate-rebate” de direitos de respostas concedidas pelo mediador William Bonner ao ex-presidente.
Uma coreografia perfeitamente executada. Porém, com um fatal erro de timing. O ápice foi quando finalmente Lula caiu na armadilha do monofásico Padre Kelmon (já acusado de “padre de festa junina” anteriormente pela candidata-onça, e verdadeira criadora de memes, da senadora Soraya Thronicke, do União Brasil). Lula o chamou de “padre laranja”, iniciando um bate-boca generalizado, com os microfones fechados e a câmara fechada em Bonner, passando “sabão” nos dois como um professor passa o pito em crianças desobedientes da turma do fundão.
Erro de timing: já passava da meia-noite e a “festa” já tinha se transformado numa “balada” com audiência menor. Um grave erro de cálculo de um ápice que deveria ocorrer dentro da primeira hora.
Porém, a coreografia já estava evidente algum tempo antes: depois das provocações iniciais de Ciro Gomes, Bolsonaro e Padre Kelmon, exigindo de Lula insistentes direitos de resposta, entraram Felipe “à Meia Noite privatizarei sua alma” D’Ávila (do Novo) e Simone Tebet (MDB), disparando: “agora vamos falar do Brasil real”, reforçando o mote que Tebet já havia dito a Bolsonaro alguns minutos antes: “Lamento muito, estamos a dois dias das eleições e o que vemos aqui não é apresentação de propostas, mas ataques mútuos para ver quem roubou mais...”.
Felipe "À meia noite privatizarei sua alma" D'Ávila e Padre "Que Medo" Kelmon |
Esse foi o modus operandi: depois de cada bate-boca do trio Ciro-Padre-Bolsonaro contra Lula, sempre entrava um candidato “terceira via”, dramaticamente olhando diretamente para as câmeras, lamentando para o espectador a ausência de um “debate de propostas”.
Manjado recurso de roteirização cinematográfica do protagonista autoconsciente que quebra a quarta parede: no meio da ação, para e olha para a câmera para fazer um comentário ao espectador numa espécie de autoconsciência metalinguística.
Da festa à balada
Na verdade, àquela altura, Lula poderia fazer o que quisesse: quando a festa se transformou em balada madrugada à dentro, seus eleitores já estavam há horas na cama, para trabalhar, “empreender” ou tentar sair do desemprego no dia seguinte.
A terceira via finalmente estava jogando em casa, no laboratório do jornalismo corporativo que a criou e deu pernas. Para sair por aí falando em “propostas contra a polarização”, reforçando o script midiático da normalização – a narrativa de que estaríamos num processo eleitoral absolutamente normal, com “instituições funcionando” e candidatos fazendo seus “lances” e “apostas” no “tabuleiro do xadrez eleitoral”.
Aliás, o “pré-jogo” do debate (as horas que antecederam o evento pareciam muito mais um “pré-jogo” das transmissões esportivas da SporTV do que análises políticas de cenários e conjunturas) o que víamos era um grupo de “colonistas” que se transformaram em crianças radiantes e excitadas como se divertissem num parque temático da “festa da Democracia” – um constrangedor espetáculo de tautismo (tautologia + autismo midiático – sobre esse conceito clique aqui) no qual víamos Natuza Nery exclamando: olha lá o William Bonner testando o microfone!... olha lá os candidatos chegando!... olha lá a urna (como não poderia deixar de ser, transparente!) com os temas para propostas!
Mauro Paulino tentou dar o tom grave à "Festa da Democracia" |
O ex-diretor do DataFolha, Mauro Paulino, bem que tentou dar o necessário tom da gravidade histórica do evento: “que eu me lembre, é a eleição mais importante desde a redemocratização...”. Mas não adiantou: a atmosfera era de celebração autopromocional tatutista como se tudo não passasse de uma festa. Que virou balada para descolados que se dão ao luxo do tempo ocioso da madrugada – não exatamente eleitores de Lula.
Como é de praxe, tudo o que se espera no último debate global nos poucos dias que antecedem o pleito é a famosa “bala de prata”. Por isso que a maior emissora do país quer deter esse privilégio: para criar freios ou um contrapeso, de acordo com o cenário eleitoral do momento.
A “bala de prata” já estava na tática do time da terceira via que jogava em casa: a intensividade das jogadas desde o primeiro minuto para atrair Lula em direção da armadilha da “polarização sem propostas”. Porém errou o timing: o gol só aconteceu depois da meia-noite, quando já estávamos na “balada da Democracia” dos eleitores descolados.
Ok! Mas a grande mídia, e a Globo em particular, tem ainda uma poderosa arma para a tão buscada mais-valia semiótica: a posteriori, as matérias editadas dos telejornais nas horas que antecedem a eleição – nada impede que a Globo repita a infame edição do Jornal Nacional de 1989: destacar os melhores momentos da terceira via, os piores de Lula e sumir com suas tréplicas.
Alter ego
No “pré-jogo” que antecedeu o debate, os “colonistas” da emissora discutiam sobre qual Bolsonaro se apresentaria na Globo: o golpista que hostiliza mulheres? Ou a versão paz e amor? Dúvida desnecessária. A estratégia da equipe do candidato criou um alter ego beligerante de Bolsonaro: o Padre Kelmon. Ele fez o jogo todo o jogo sujo (temas de guerra cultural, comunistas e esquerda latino-americana perseguindo padres, sexo nas escolas etc.), enquanto Bolsonaro se apresentava com um estudado ar estafado e compenetrando como alguém na boa luta de um debate: camisa saindo da calça, cabelo desarrumado, colocando e tirando óculos etc.
Trocando papéis
Parece que as regras estabelecidas para o debate foram perfeitas para que Bolsonaro e o seu alter ego, Padre Kelmon, sentassem lado a lado no set do debate. Uma “coincidência” tão feliz que permitiu que os dois trocassem seus papéis e anotações. Detalhe: o Alter ego do chefe do Executivo leu (mal) todas as perguntas como se todas já estivessem pré-estipuladas. Verdadeiro deboche: o primeiro candidato que vem a um debate pedir apoio ao candidato pretensamente rival.
Convite à dança
O debate da Globo serviu para tornar evidente um modus operandi de Bolsonaro: convidar à dança seus aliados que simulam serem opositores do presidente. A TV Globo foi a primeira, no horário político gratuito do candidato – foram usadas imagens de jornalistas da casa como William Bonner e Rodrigo Bocardi, no auge do jornalismo de guerra, noticiando as delações contra Lula vazadas pela Lava Jato e anunciando “o primeiro ex-presidente preso da história”... Agora foi a vez da senadora Soraya Thronicke ser também convidada à dança: suposta ex-aliada, Bolsonaro jogou na cara da senadora os seus pedidos por cargos no governo. E não aceitos. Desnorteada, a candidata quase virou onça e descarregou a raiva no alter-ego do seu algoz.
Mais script de normalização
Segundo fontes de bastidores, enquanto o Padre Kelmon roubava a cena, o filho Carlos Bolsonaro e Mario Frias rachavam o bico de tanto rir, vendo a estratégia dando bons resultados. Mas, apesar do evidente personagem simulacro que o ex-candidato Roberto Jefferson criou (sempre ele, desde a sua seminal denúncia que deu início ao Mensalão), os “colonistas” da Globo tiveram que manter a fleuma, como se tudo fosse normal, republicano, democrático... Fernando Gabeira chegou ao cúmulo de querer ver algo de positivo no simulacro de sacerdote: “sua proposta positiva foi lembrar dos músicos de rua no debate sobre o tema Política Cultural...”.
Um deboche!