O filme de Craig Gillespie, A Garota Ideal (Lars and the Real Girl, 2007), tinha tudo para dar errado: uma premissa ridícula que parece ter sido desenvolvida tendo em mente Adam Sandler ou Will Ferrell, ou seja, algo que não deve ser levado a sério. Tinha também tudo para ser um filme rude, grosseiro e lascivo. Porém, o que deveria ser um conjunto de piadas e trapaças sexuais se transformou em um filme inteligente, reflexivo e tocante.
Há tantas maneiras que o filme A Garota Ideal poderia dar errado que se torna até divertido assistir ao filme e perceber o quão habilmente o diretor foge das armadilhas para construir algo inteiramente novo: uma declaração de esperança na vida e da afirmação do outro e da alteridade.
O filme é da primeira década do século XXI: vemos monitores de computador com tubo de imagem, não há smartphones e nem redes sociais. Mas, como em toda história de qualquer mídia, já estão na Internet sites da milionária indústria pornográfica, promovendo vídeos e produtos eróticos. Entre eles, bonecas sexuais de látex em tamanho natural. Um jovem chamado Lars Lindstrom (Ryan Gosling) não apenas tímido, mas dolorosamente fechado em si mesmo e incapaz de qualquer intimidade e socialização, adquire um exemplar desse brinquedo sexual que logo chama de Bianca, diz ser sua namorada e decide apresentá-la a todos.
Mais seguro de si por ter uma “namorada”, abre-se para a convívio social sempre acompanhado de “Bianca”, diante dos olhares perplexos de familiares e colegas de trabalho.
Acompanhamos um milagre acontecendo no filme: aos poucos uma pequena cidade gelada de Ontário se transforma com a presença da boneca de vinil Bianca – todos começam a compreender que Lars não utiliza a boneca para sexo, mas como a companheira ideal com uma função terapêutica para ele sair da sua redoma de traumas e frustrações familiares. Tudo começa a virar uma espécie de roler play game e a comunidade começa a aceitar o jogo inconsciente de Lars que integra Bianca em festas a eventos sociais.
A questão em A Garota Ideal é tematizar esse papel psíquico do jogo presente em nossas relações, muito mais do que podemos imaginar: a projeção de si mesmo no outro como um alter. Imagine toda a indústria envolvendo produtos para pets com os quais nos relacionamos como fossem membros de nossa família, espelhando nossas personalidades. Ou como a publicidade normaliza relações fetichistas como objetos inanimados (carros, roupas, perfumes etc.) como produtos dotados de propriedades muitas vezes terapêuticas supostamente adquiridas – com eles passamos a nos sentir empoderados, como se absorvêssemos suas propriedades positivas.
Apesar das situações involuntariamente cômicas (levar a namorada adquirida na Internet para uma missa numa igreja luterana, por exemplo), o filme é um conto sobre como essa relação com um alter animado ou inanimado é mais comum do que imaginamos.
Tratar um cachorro como fosse um filho e comprar um bolo de aniversário pet para comemorar o seu aniversário em um bufê especializado em bichinhos de estimação é tão comum para nós como normalizar a boneca Bianca como a namorada de Lars nos eventos sociais daquela cidadezinha.
A diferença é que A Garota Ideal exala um inabalável otimismo em qualquer mudança ou progresso de que esse jogo evolua da alienação para o autoconhecimento: no final, a possibilidade abrir-se para o outro e a alteridade através de um jogo que inicia paradoxalmente na alienação de si mesmo.
O Filme
Lars Lindstrom um jovem dolorosamente tímido que mal suporta o toque de outro ser humano. Ele é aparentemente funcional e tem um emprego num escritório, mas à noite, ele se senta sozinho na garagem no fundo do quintal da casa de sua família. Sua mãe morreu anos atrás, e seu pai depressivo mais recentemente. Agora a casa grande é ocupada por seu irmão Gus (Paul Schneider) e a cunhada grávida Karin (Emily Mortimer). Ela faz questão de convidá-lo para jantar, para compartilhar suas vidas, mas ele sempre inventa uma desculpa esfarrapada atrás da outra para ficar sentado sozinho, no escuro.
Um dia, um colega de trabalho no escritório, navegando por sites de pornografia na Internet, mostra a Lars uma boneca de vinil em tamanho real que pode ser encomendada de acordo com as especificações. Algumas semanas depois, uma caixa de embalagem é entregue a Lars, e logo seu irmão e cunhada são apresentados à boneca. E descobrem que ela se chama Bianca.
Bianca é um brinquedo sexual, provocantemente vestido e anatomicamente correto, comprado na internet de uma empresa chamada “Real-Dolls”, que lhe forneceu uma pequena biografia: ela é uma missionária religiosa, meio brasileira e meio dinamarquesa (o toque de exotismo da retórica pornográfica). Lars a trata como se ela fosse absolutamente real, mas ainda mais tímida do que ele, então ele age como seu intérprete. Lars a leva para todos os lugares em uma cadeira de rodas. Ele tem uma explicação para tudo, inclusive porque ela não fala nem come.
De alguma forma, a narrativa sugere que, embora a boneca venha anunciada com "orifícios", Lars não usa Bianca para sexo. Não, Lars a vê apenas como a companheira ideal (afinal, sem críticas, sem perguntas), até porque nunca poderá tocá-lo. Com uma serenidade que beira o surreal, Lars a leva para todos os lugares, até para a igreja. Ela é tão real quanto qualquer pessoa em sua vida pode ser, neste ponto do desenvolvimento de suas habilidades sociais.
Gus está mortificado. Karin é mais receptiva; ela acredita que, para Lars, qualquer mudança é progresso. O casal convence Lars e Bianca começarem a ver Dagmar (Patricia Clarkson), uma terapeuta, que os aconselha a permitir que Lars viva com sua fantasia. Dagmar então começa a "tratar" Bianca – na verdade, está terapeutizando Lars através da mediação do seu alter, Bianca. Sentimos que Dagmar pensa que Bianca funciona da mesma forma que os animais de estimação fazem com algumas pessoas solitárias.
As pessoas da comunidade de Lars chegam a um acordo tácito para tratar Bianca com a mesma cortesia que Lars trata. Aos poucos, toda a cidade se transforma com a presença de Bianca. Ela é colocada em comitês, faz parte das atividades com crianças na escola local, é acolhida por mulheres locais para que ela se torne uma companheira mais adequada para Lars. A princípio, ele fica com ciúmes da atenção de todos, mas aos poucos começa a mudar, a ser retirado de si mesmo, e inferimos que aos poucos ele está finalmente se conformando com a morte da mãe no parto e a recente falecimento de seu pai.
No entanto, o filme não se preocupa com explicações psicológicas e, embora superficialmente realista, é uma fábula moral que explora a bondade, a compreensão, o amor e a aceitação da diversidade humana.
Na década de 1950, o sociólogo norte-americano David Riesman foi o primeiro pesquisador a abordar empiricamente o tema da solidão na vida moderna no seu livro clássico A Multidão Solitária. Para ele, o principal traço da solidão na multidão é a personalidade “alter-dirigida”, isto é, orientada exclusivamente para o meio externo já que o indivíduo carece de auto-estima: ele procura aprovação nos outros – “Mais do que ser estimado, a personalidade Ater-dirigida quer ser amada, não necessariamente para controlar os outros, mas para se relacionar com elas”.
Para Riesman, o triunfo desse tipo de personalidade é completo na atualidade. Voltando-se ao exterior e alienando-se de si mesmo, procuramos “muletas” para mediar nossas relações com os outros ou mesmo a aprovação, gratificação e aceitação.
De animais de estimação aos gadgets promovidos pela sociedade de consumo, tornam-se alters sobre os quais projetamos nossa própria alienação, na esperança de que esses objetos facilitem nossa inclusão no mundo externo.
No entanto, A Garota Ideal é um conto otimista, de pureza e esperança. Mesmo através de uma boneca sexual (talvez o paroxismo dessa tendência de fetichização das relações humanas), Lars conseguirá descobrir o outro e a alteridade – encontrar uma namorada real e redimir-se de todos os traumas familiares. É claro que o elemento decisivo nesse conto é depurar do relacionamento entre Lars e Bianca qualquer traço de desejo sexual masturbatório – ele vê nela apenas um meio para entrar em contato e ser aprovado pelo mundo exterior.
Questão delicada que se transforma na grande virtude do filme: o diretor Gillespie resiste à tentação de exagerar na mão e abusar da piada a ponto de não ser mais engraçada. Há muita tristeza - tristeza que Lars' educação com um pai frio e de coração partido o deixou se sentindo mal-amado, e tristeza que Lars tem muito medo de intimidade real para deixar alguém tocá-lo fisicamente. Por isso, consegue desenvolver algo inteligente e reflexivo.
Ficha Técnica |
Título: A Garota Ideal |
Diretor: Craig Gillespie |
Roteiro: Nancy Oliver |
Elenco: Ryan Gosling, Emily Mortimer, Paul Schneider, Patrícia Clarkson, |
Produção: MGM, Sidney Kimmel Entertainments |
Distribuição: MIB |
Ano: 2007 |
País: EUA/Canadá |