Os EUA irradiaram para todo o planeta uma autoimagem que mistura realidade e ficção, a tal ponto que a ilusão parece sempre preceder a realidade. Só um estrangeiro para entender a dinâmica onírica dessa nação. Ou melhor, dois estrangeiros: a dupla de cineastas iranianos Shirin Neshat e Shoja Azari, que dirigiu e adaptou um roteiro de Jean-Claude Carrière, colaborador de longa data de Luis Buñuel. É o filme “Land of Dreams” (2021) que acompanha uma recenseadora do US Census Bureau que faz uma pergunta inusitada aos entrevistados: qual foi seu último sonho? Além de querer entender o porquê de o Estado Profundo estar tão interessado em colecionar os sonhos dos cidadãos, o filme faz um mergulho no imaginário dos EUA. "Land of Dreams" não esconde suas intenções políticas: mostrar um país construído por imigrantes que se tornaram invisíveis.
O cineasta David Lynch talvez seja aquele que melhor soube capturar imageticamente a atmosfera americana: a América, um país que criou uma autoimagem tão intensamente constituída por símbolos que, de tão recorrentes na cultura, se transformaram em arquétipos. Uma nação em que ficção e realidade começam a se misturar, ao ponto de que a ilusão parece sempre preceder a realidade.
De Veludo Azul (1986) a Cidade dos Sonhos (2001) e Império dos Sonhos (2006), o que vemos é um diretor mergulhando numa realidade em que sonho e vigília sempre estão se misturando.
O que dizer então de uma dupla iraniana de cineastas (Shirin Neshat e Shoja Azari) descrevendo imageticamente essa atmosfera americana? Uma dupla que toma emprestado esse olhar lynchiano para colocar na tela um roteiro do ex-colaborador do diretor surrealista Luis Buñuel, o francê Jean-Claude Carrière (1931-2021).
Esse é Land of Dreams (2021), um filme em que as inclinações satíricas e surrealistas do roteiro de Carrière encontram o território de expressão na atmosfera americana lynchiana que produz uma curiosa meta estranheza: a estranheza do olhar de David Lynch o permitiu a ter o distanciamento necessário para descrever sonhos e pesadelos do seu país; mas em Land of Dreams temos o olhar de uma dupla de autênticos estrangeiros que olham para a América com a lente de um “estrangeiro nativo”.
Shirin e Shoja olham para a América e veem cowboys machões que tentam emular a suposta pureza dos pioneiros, teorias conspiratórias de um Estado Profundo, evangelizadores pentecostais exortando fiéis para uma guerra contra o Mal, imigrantes ilegais condenados à invisibilidade, a classe média kitsch hipnotizada pela TV, poetas beatniks vagando pelas estradas etc. Um filme ao mesmo tempo lúdico e sério, desapegado e engajado.
Tudo emoldurado por magníficas imagens da horizontalidade dos desertos, o simbolismo dominante do imaginário americano: ao contrário do caos urbano, os horizontes de desertos e pradarias do Meio Oeste dos EUA sempre prometeram a esperança, a renovação, a descoberta da verdadeira América do espírito indômito dos pioneiros – e, ao mesmo tempo, aridez de paisagens quase extraterrestres que lembram a condição gnóstica estrangeira humana nesse mundo.
Mas, ao mesmo tempo, a dupla iraniana nunca esconde suas intenções políticas em particular por meio de uma anedota contada em um bar na qual um jovem imigrante é o único aluno de sua classe a conhecer os autores de citações famosas da história americana, como "Give me liberty, or give me death!" e “governo do povo, pelo povo, para o povo”. Além dos excessos destruidores da liberdade pelas tecnologias de vigilância.
É nessa confluência entre imaginário e política que Land of Dreams apresenta um futuro não tão improvável. Um futuro em que vemos computadores quânticos e celulares elegantes e sensuais, salas de jantar adaptadas a videoconferências, tudo isso convivendo com atitudes xenofóbicas e um nacionalismo persistentes governado por um Estado que ainda quer investigar de formas cada vez mais profunda os cidadãos, sempre com a desculpa esfarrapada da “segurança nacional”. Dessa vez, uma vigilância mais profunda: através do US Census Bureau que coleta os sonhos das pessoas por meio de um recenseamento feitos por pesquisadores que vão com formulários e gravadores de porta em porta.
Land of Dreams explora essa a aparente contradição entre a defesa da chamada “realidade” mediante a contabilização dos sonhos dos cidadãos. Para conhecermos uma América Profunda (aliás, irradiada pera todo o planeta através da sua indústria de entretenimento) na qual a realidade é permeada tanto por sonhos quanto pesadelos.
O Filme
Simin (Sheila Vand) trabalha para uma agência de recenseamento do governo (a US Census Bureau) indo de porta em porta com uma missão muito inusitada: registrar o relato de seus entrevistados sobre seu sonho mais recente e recorrente. Com qual finalidade? Mesmo que ela não saiba, satisfaz-se em ficar feliz em seguir ordens e transferir os dados de áudio para o servidor através de um computador quântico em um prédio ultramoderno de seu empregador.
Ocasionalmente, se necessário, Simin dá única explicação oficial aos entrevistados quando questionada: “é para sua segurança.”
A bela e conscienciosa Simin, que leva uma existência praticamente monástica, também é secretamente fascinada por essas lembranças oníricas, a ponto de reencená-las, disfarçadas e transformadas (com perucas, maquiagem e fantasias) no apartamento de um motel, à noite, como fosse uma atriz, compartilhando esses pequenos vídeos nas redes sociais.
Mas ela também é uma estrangeira: nasceu em Shiraz, no Irã, e há muito tempo é uma exilada. Ocasionalmente as suas memórias dolorosas da família são catarticamente despertadas durante essa missão como colecionadora de sonhos. Tudo isso sob o olhar de dois homens muito diferentes que a seguem em quase todos os lugares: o cowboy cínico e machão Alan (Matt Dillon), encarregado de protegê-la, e um poeta beatnik andarilho chamado Mark (William Moseley) que está apaixonado por Simin: amor à primeira vista inexplicável, como se espera do estereótipo de um poeta.
A certa altura, a agência envia Simin para realizar seu censo na “Colônia”, um complexo secreto escondido no deserto que está cheio de contrarrevolucionários iranianos idosos – lutaram contra a revolução islâmica no Irã, a favor dos EUA – “o inimigo dos nossos inimigos são os nossos amigos”, diz a certa altura o cowboy Alan, numa síntese da política externa dos EUA.
Será esta tarefa que perturbará definitivamente a compostura profissional de Simin. O contato com os integrantes dessa Colônia leva a um acerto de contas com sua própria história e um sonho do passado que ela preferiria não lembrar.
O filme é uma visão espirituosa e emocionante de uma cultura americana que se beneficia das experiências de imigrantes e do estilo inventivo de seus criadores – assim como o próprio filme feito por uma dupla iraniana radicada nos EUA. O filme, que também é visualmente deslumbrante, examina habilmente a relação entre o estado de vigilância e a liberdade pessoal, ao mesmo tempo em que comenta um espectro surpreendentemente amplo da vida americana, da família suburbana clichê ao artista negro assombrado pelo espectro do passado da nação.
O roteiro de Land of Dreams parece ser ligado por esquetes em que são apresentados cada arquétipo que compõe o imaginário da América: o cowboy cínico, um pastor pentecostal que vê nos imigrantes o Mal na América, o poeta andarilho que tenta se distanciar mas é tão envolvido por esse imaginário como todos, o sonho americano representado em uma mesa de jantar de uma família kitsch, o artista negro assombrado pelos fantasmas da escravidão, a paranoia conspiratória e assim por diante.
A protagonista estrangeira Simin cada vez mais mergulha nesse imaginário. Fascinada, ela performa os sonhos alheios nas redes sociais. Aos poucos ela começa a confundir realidade e sonho, vida e imaginário, num país em que os papéis que as pessoas desempenham na realidade parecem ser precedidos por esse conjunto de arquétipos que parecem fundar a atmosfera americana.
Por que o Bureau está tão interessada em coletar os sonhos dos cidadãos? O objetivo está para além da invasão da privacidade – há meio muito mais invasivos e perniciosos que a tecnologia pode oferecer. Principalmente naquele futuro de computadores quânticos.
O US Census Bureau parece querer controlar a realidade por amostragem: certificar-se, através dos tropos dos sonhos, que o imaginário que mantém a nação unificada (o conjunto dos arquétipos figurados no filme) está atuante e influente nos sonhos – e consequentemente, na realidade.
Ficha Técnica |
Título: Land of Dreams |
Diretor: Shoja Azari, Shirin Neshat |
Roteiro: Shoja Azari, Jean-Claude Carrière |
Elenco: Sheila Vand, Matt Dilon, William Moseley, Anna Gunn, Joaquim de Almeida, Isabela Rossellini |
Produção: Bon Voyage Films, Palodeon Pictures |
Distribuição: MUBI |
Ano: 2021 |
País: EUA |