Já se tornou um lugar-comum na paisagem urbana: pessoas caminhando, sentadas em pontos de ônibus ou em terraços de café ou bares com as costas curvadas, cabeça inclinada e olhares fixos para a tela do smartphone. As nossas vidas nas bolhas das redes sociais e nos aplicativos de mensagens instantâneas nos obriga a olhar para baixo, blindando-nos de “felizes acidentes”, o acaso, o espanto, insight, a experiência do sublime ou mesmo inspiração poética no espaço real das ruas e parques. Em síntese, a experiência urbana do flâneur, tão enaltecida tanto por Charles Baudelaire quanto pelo filósofo Walter Benjamin como o personagem que fazia ponto crítico ao capitalismo, por estar no contrafluxo, resistindo à disciplina. Mas o capitalismo não pode tolerar tempo e espaço livres. A indústria cultural foi o primeiro passo para a disciplina do tempo livre. Depois, inventaram o smartphone.
Nas suas memórias sobre a Comuna de Paris de 1871 (importante insurreição popular do século XIX), Walter Benjamin lembrava os tiros espontâneos dados por populares nos relógios em vários pontos de Paris quando a grande revolução aconteceu. Para Benjamin, um ato pleno de simbolismo: uma espécie de inconsciência coletiva de que era necessário parar o tempo para deter o sentido ideológico da disciplina do tempo imposto pela Modernidade.
São conhecidas as reflexões de Benjamin em sua obra mais ambiciosa e inconclusa, o trabalho das “Passagens”, em que fez reflexões em torno do personagem do “flâneur” criado por Charles Baudelaire no século XIX em seus textos sobre a modernidade urbana.
O flâneur seria um ponto crítico do capitalismo: um misto de cidadão e vagabundo que passeia (flana) pela cidade, “sentindo-se tão à vontade entre as fachadas dos prédios quanto um burguês entre quatro paredes”. Observando a diversidade inesgotável nas calçadas, terraços de cafés e todo um mundo após o trabalho. É aquele que observa o ambiente, criando um contraponto ao fluxo mecânico e disciplinado. Vive, portanto, no contrafluxo. Ele resiste ao ritmo do progresso, do tempo imposto pelo capital.
Esses eram tempos seminais, quando ainda o ritmo da modernidade estava tentando ocupar todos os espaços do tempo livre: aquele tempo ocioso, que se opõe ao ritmo do trabalho, no qual podemos dispor do tempo da forma que quisermos.
Tempos em que a ascensão das fábricas estava tirando o tempo de trabalho das atividades artesanais para o tempo institucionalizado pelo ritmo do trabalho das máquinas e linhas de montagem – o dia de trabalho dominado pelo princípio de desempenho ou performance: eficácia, eficiência e produtividade.
Desde então, o capitalismo simplesmente não pode tolerar tempo e espaços livres. A indústria cultural (conceito tão incompreendido de Theodor Adorno) fez parte desses movimentos de ocupação do tempo livre das pessoas. Ao transformá-lo em tempo de entretenimento e de consumo (assistir à TV e consumir imaginariamente o que é vendido nos intervalos publicitários ou ir ao cinema em shoppings como um convite ao combo entretenimento/consumo), tornamos o tempo livre dominado pelo princípio do desempenho, numa situação análoga ao cumprimento obrigatório das metas do mundo do trabalho.
Até surgir o smartphone. Um dispositivo que nos obriga a olhar para baixo e ignorar a diversidade urbana que outrora fascinava o flâneur. Olhando para baixo, com o olhar fixo para a tela, é como se fossemos encapsulados, completado pelos fones para os ouvidos que nos desencoraja a ouvir os sons e sussurros do planeta.
E talvez o mais nefasto, temos a Apple e o Google Maps que conspiram para tomar nosso tempo e espaço ao mesmo tempo. Já não se joga o dado e vai-se embora, como André Breton e os seus colegas surrealistas faziam para planejar as suas “flanagens” pelas ruas. Em vez disso, escolhe-se um destino e caminha em direção a ele. Ao longo do caminho, a rota é mercantilizada. Restaurantes sugeridos em vez de encontrados. Parques delineados digitalmente em vez de delineados pelos contornos de nossos passeios.
Feliz acidente
Em outras palavras, os smartphones impedem um acontecimento particular do flâneur: a serendipidade– fenômeno amplo e multifacetado, cuja definição mais aproximada seria “feliz acidente”, a descoberta de coisas surpreendentes e agradáveis por puro acaso. Uma circunstância interessante que pode trazer espanto, insight, a experiência do sublime ou mesmo inspiração poética.
Na verdade, a nossa atitude diante dos smartphones (curvados, olhando para baixo, fixados na tela e os fones de ouvidos completando o fechamento operacional) é uma expressão exterior de algo que já acontece na interface desses dispositivos: as bolhas solipsistas criadas pelos algoritmos dos sites de busca e das redes sociais nos quais a realidade exterior é uma mera impressão sem existência própria – o filme Não Olhe para Cima é a melhor expressão desse fenômeno.
Fenômeno paradoxal que um jogo chamado "Pokémon Go" levou ao paroxismo: centenas de jovens andando pelas ruas de forma aleatória (quase análogo a um flâneur) explorando os arredores, saindo pelas ruas e parques procurando Pokémons. Mas não reais, em realidade aumentada como se colocasse uma fina interface sobre a realidade em busca de criaturas digitais que emerjam de trás de lixeiras, carros ou árvores.
Declarar-se flâneur foi o protesto de Baudelaire contra o laço cada vez mais apertado em torno de nossa liberdade. Vagar sem rumo, tropeçar em encontros aleatórios, improvisar nesses encontros é a verdadeira essência da vida; executados corretamente, os dias de um flâneur poderiam ser vividos ao som das notas tocadas por um conjunto de jazz.
Princípio do desempenho
Porém esse aspecto do empobrecimento da percepção e da nossa experiência no mundo é apenas um lado da questão da morte do flâneur. O outro aspecto é esse: com o smartphone realiza-se finalmente o projeto da modernidade totalitária representado pela indústria cultural: a ocupação do último espaço e tempo livres no capitalismo: a situação de simplesmente caminhar ou estar a sós consigo mesmo.
Em 1972 o pesquisador alemão Busselmeir foi profético nesse aspecto:
No espaço de tempo fora da fábrica, a rapidez do trabalho, a imposição do rendimento e da concorrência continuam a ser praticados. A perfeição técnica, a eficácia, o pensamento quantitativo, o isolamento e suas consequências, como forma de pensar particularizada e a estrutura pulsiva prejudicada, são tão determinantes quanto no local de trabalho. O domínio da máquina e dos aparelhos sobre o ritmo de vida humano, impõem-se de todas as formas – BUSSELMEIER, Michael. “Entretenimento de Massas na Esfera do Trabalho e do Lazer”, In: MARCONDES FILHO, Ciro. A Linguagem da Sedução, Editora Com-Arte, 1985, p.50.
Na TV o fenômeno já era evidente: depois de passar o dia inteiro na fábrica disciplinado pelo princípio de desempenho do mundo do trabalho (eficiência, eficácia, produtividade etc.) correndo contra o tempo, o trabalhador retorna para casa e se entretém torcendo por concorrentes num quiz show que também correm contra o relógio para responderem a perguntas que valem prêmios. Diverte-se vendo pessoas que passam por uma situação análoga à sua no trabalho. É o que Busselmeier chamava de controle ou disciplinarização do tempo livre.
O smartphone cumpre a mesma função social dessa espécie de pedagogia da disciplina: se o mundo do trabalho exige de nós foco e digitalização generalizada da experiência (planilhas eletrônicas, por exemplo), o smartphone, com suas múltiplas funções para além da simples telefonia, evita que andemos distraídos, flanando ou pensando autonomamente. Exige de nós concentração, eliminação da visão periférica ou de qualquer voo da imaginação, concentrados na interface digital.
Enquanto mapas e imagens de satélites nos orientam no espaço, atrofiando nossos próprios sentidos de orientação – memória, sentido de direção, percepção espacial etc.
Tudo em nome do princípio do desempenho – o princípio mais invisível e abstrato que cimenta a nossa realidade ao transformar o tempo de trabalho e o tempo livre como os dois lados da mesma moeda da Modernidade.