Não se perca no infeliz título em português,
que faz parecer uma comédia romântica de sessão da tarde. “Complicações do
Amor” (The One I Love, 2014) é uma crítica ambígua e até sombria (ao melhor
estilo das atmosferas da série “Além da Imaginação”) contra todo aparato
fármaco, psicoterapêutico e neurocientífico atual mobilizados para supostamente
nos fazer felizes. Porém o efeito colateral prático é viciosidade, dependência
e compulsão. Afinal, é a alma do negócio para manter todos sob controle – as
chamadas “tecnologias do espírito”. Um casal em crise terminal procura um
terapeuta para tentar resgatar os momentos felizes que foram perdidos no
passado e que fizeram Ethan e Sophie ficarem juntos. O terapeuta sugere um
final de semana a sós em uma remota casa de campo onde tentem resgatar o que foi perdido na relação. O problema é que lá
encontrarão uma espécie de sala de espelhos cada vez mais perturbadora com
resultado imprevisível e ambíguo - e até elementos CosmoGnósticos. Matrix nas relações conjugais?
"Será que uma coisa tão boa
Pode simplesmente não funcionar mais?"
(“Love Will Tear Us Apart”, Joy Division)
Pode simplesmente não funcionar mais?"
(“Love Will Tear Us Apart”, Joy Division)
Em 2004 o filme Brilho
Eterno de Uma Mente Sem Lembranças abria o século XXI mostrando até onde
poderiam chegar as chamadas “tecnologias do espírito” (autoajuda, neurociências,
psicoterapias etc.) e a sua popularização por meio da “cultura Prozac” que
promete deletar nossas inquietações trazendo para nossa mente e relacionamentos
a paz dos cemitérios – um pequeno empreendimento chamado Lacuna Inc. ganhava a
vida apagando eletronicamente lembranças das mentes de corações partidos.
Nesse filme, o diretor Michel Gondry focava a crítica às
tecnologias do espírito pela questão das memórias e o esquecimento voluntário:
para podermos seguir em frente nas nossas vidas, devemos apagar o peso
emocional das lembranças. Todo o aparato das tecnologias do espírito
(fármaco-eletrônico-neurocientífico) nos concederia o esquecimento voluntário e
a alienação de nós mesmos. E o que é pior: transforma tudo isso em troca
mercantil.
Já o filme Complicações do
Amor (The One I Love, 2016),
filme independente dirigido por Charlie McDowell e escrito por Justin Lader,
apresenta uma crítica mais sinistra e sombria. Tudo sob a aparência de uma
comédia romântica (para começar no horrível título em português) bobinha,
dessas de sessão da tarde.
Se Gondry mirava a crítica cínica na questão do esquecimento
voluntário e na alienação feliz, McDowell e Lader centram em um tipo especial
de memória: a repetição neurótica de lembranças felizes, mas que não estão
funcionando mais em relacionamentos conjugais.
Aqui em Complicações do Amor
acompanhamos um casal que busca um terapeuta conjugal para tentar salvar um
relacionamento que não está mais dando certo. Eram felizes mais jovens, quando
se conheceram. Desesperados, tentam reencenar as mesmas situações felizes do
passado mas a química parece que desapareceu – não riem mais juntos e, o que é
pior, não fazem mais sexo.
Não conseguindo melhor resultado com métodos psicoterapêuticos
tradicionais, o terapeuta decide mandá-los para uma casa de campo acolhedora
longe da rotina habitual do casal. Ele diz que cada casal enviado para lá
voltou “renovado” – expressão ambígua, como o leitor observará no filme.
Mas lá encontrarão uma sinistra armadilha, no melhor estilo da
famosa série Além da Imaginação –
crítica altamente simbólica de McDowell e Lader sobre as tecnologias do
espírito: repetição e dependência, seja dos fármacos, seja do nosso apego
neurótico a memórias de prazer exploradas tanto pelas psicoterapias quanto pela
sociedade de consumo.
O Filme
Ethan (Mark Duplass) e Sophie (Elizabeth Moss) são um casal que
foi muito feliz, divertido e com senso de humor. Mas agora, nada funciona. Nem
mais o sexo. Lembram dos momentos divertido do início da relação (pular à noite
na piscina de uma casa estranha ou tomar ecstasy no Lollapalooza). Tentam
repetir juntos as situações, mas a magia do passado não retorna.
Acreditando que tudo é apenas um problema de comunicação, recorrem
a um terapeuta de casais. Mas conversas, jogos, dinâmicas, nada funciona. Até
que o terapeuta (Ted Danson) sugere a eles passar um fim de semana em um retiro
no campo a curta distância de carro. Uma propriedade completa com casa de
hóspedes, piscina e laranjais.
Ethan e Sophie concordam em ir, embora a tensão entre eles
persista. Lá ficarão à sós em uma imensa propriedade. Quem sabe voltem ao
início de relacionamento, quando eram irreverentes e felizes.
Juntos fazem o jantar. Bebem vinho e fumam maconha. Se soltam. O
riso traz o alívio e a sensação de que eles estão voltando para aquelas
sensações que fizeram ficarem juntos. Sophie sai para tomar ar e encontra a
casa de hóspedes. Para sua surpresa, lá encontra Ethan, dão mais risadas e
fazem sexo.
Mas no dia seguinte ocorre algo estranho. Quando Sophie menciona
que se encontraram na casa de hóspedes e fizeram sexo, Ethan não consegue
lembrar. Será que foi a combinação do vinho com a maconha?
Porém, coisas estranhas e anomalias começam a
acontecer. Sempre na casa de hóspedes. A partir desse ponto, o filme retoma o
tema do doppelgänger (palavra alemã
para designar “duplicata andante”, “réplica”) – o confronto do protagonista com
o seu duplo como nos filmes recentes O
Homem Duplicado (Enemy, 2013) e O Duplo (The Double, 2014).
Ao entrar na casa de hóspedes, cada um deles encontra um duplo de
Ethan ou Sophie. Porém, como amargamente observa Ethan, eles são 20% melhores
que os originais: parecem ter aquilo que cada um deles deixou no passado. O
duplo de Ethan é irreverente e fala
exatamente aquilo que Sophie quer ouvir de si mesma. E o duplo de Sophie parece
uma daquelas donas de casa em tons pastéis dos anos 1950.
Anomalia cósmica? Algum golpe? Assustados decidem fugir, mas
Sophie não consegue tirar o duplo de Ethan da cabeça. Com a sua insistência,
Ethan aceita voltar e resolver o mistério – afinal, o gosto pela curiosidade e
aventura eram qualidades do casal no passado.
Mas o que descobrirão é uma espécie de salão de espelhos cada vez
mais perturbador e os mistérios se acumulam novamente.
Uma prisão
CosmoGnóstica – alerta de spoilers à frente
A primeira impressão para o espectador é que a premissa de Complicações do Amor conduzirá a
narrativa para um final óbvio: terminaria com Ethan e Sophie cada um
acreditando estar com seu doppelgänger
perfeito, apenas para descobrir que estão na verdade um com o outro.
Mas as coisas tendem para um desfecho sombrio e ambíguo com
evidentes elementos gnósticos. Um deles à semelhança de Matrix – aquela casa de
campo é uma espécie de prisão virtual, da qual apenas um casal poderá sair.
O primeiro elemento é Sophie. Não por acaso, a personagem possui o
nome do aeon gnóstico Sophia: aquela
que veio ao mundo para despertar a fagulha da Luz espiritual no homem
prisioneiro no sono do esquecimento. Sophie é o elemento desencadeador de toda
a trama – ela vive o dilema entre ficar com o duplo de Ethan naquela casa ou partir
com o original. O que forçará o Ethan original a fazer uma reforma íntima.
Mas o principal elemento é o CosmoGnóstico:
toda a imensa e linda propriedade é uma prisão para casais em busca de uma
solução psicoterapêutica para a crise conjugal. Através de alguma tecnologia
futurista não explicada no filme (por isso a narrativa possui essa atmosfera Além da Imaginação) o casal prisioneiro
transforma-se em duplos dos novos hóspedes – por meio das informações sobre o
casal passada pelo próprio terapeuta, aprendem sobre detalhes pessoais das
vítimas.
Esse elemento CosmoGnóstico é uma crítica simbólica às tecnologias
do espírito – a “engenharia da alma”, todo um aparato de controle social a
partir da repetição, compulsão e vício. Da mesma forma como a publicidade da
rede fast food McDonald’s associa o
Big Mac com momentos felizes (o primeiro amor, o primeiro beijo etc.), da mesma
maneira autoajuda ou neurociências pretendem deletar as memórias negativas para
valorizar apenas as positivas. Para que tentemos repeti-las ad infinitum por toda a vida, presos no
ciclo vicioso satisfação/frustração.
Ethan e Sophie vão para aquela casa de campo em busca da
irresponsabilidade feliz da juventude que, acreditam, foi o que fez ficarem
juntos. Buscam uma espécie de Disneylândia conjugal.
Mas, como toda estrutura das tecnologias do espírito e de consumo,
o propósito do negócio é criar viciosidade e dependência – prisioneiros de
fármacos ou de soluções psicoterapêuticas clichês como “fins de semana a sós”.
Por isso, Complicações do
Amor é uma surpreendente fábula surreal sobre os atuais dispositivos de
controle e dependência das relações humana. Um filme que se alinha a
outras produções em tom “fabulesco” como Quero
Ser John Malkovich, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e Show de Truman.
Ficha Técnica |
Título: Complicações do Amor
|
Diretor: Charlie
McDowell
|
Roteiro: Justin Lader
|
Elenco: Mark Duplass,
Elizabeth Moss, Ted Danson
|
Produção: Duplass Brothers Production
|
Distribuição: Netflix
|
Ano: 2014
|
País: EUA
|
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