sábado, maio 06, 2017

"Complicações do Amor": pode algo tão bom não funcionar mais?


Não se perca no infeliz título em português, que faz parecer uma comédia romântica de sessão da tarde. “Complicações do Amor” (The One I Love, 2014) é uma crítica ambígua e até sombria (ao melhor estilo das atmosferas da série “Além da Imaginação”) contra todo aparato fármaco, psicoterapêutico e neurocientífico atual mobilizados para supostamente nos fazer felizes. Porém o efeito colateral prático é viciosidade, dependência e compulsão. Afinal, é a alma do negócio para manter todos sob controle – as chamadas “tecnologias do espírito”. Um casal em crise terminal procura um terapeuta para tentar resgatar os momentos felizes que foram perdidos no passado e que fizeram Ethan e Sophie ficarem juntos. O terapeuta sugere um final de semana a sós em uma remota casa de campo onde tentem resgatar o que foi perdido na relação. O problema é que lá encontrarão uma espécie de sala de espelhos cada vez mais perturbadora com resultado imprevisível e ambíguo  - e até elementos CosmoGnósticos. Matrix nas relações conjugais?  

"Será que uma coisa tão boa
Pode simplesmente não funcionar mais?"
(“Love Will Tear Us Apart”, Joy Division)

Em 2004 o filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças abria o século XXI mostrando até onde poderiam chegar as chamadas “tecnologias do espírito” (autoajuda, neurociências, psicoterapias etc.) e a sua popularização por meio da “cultura Prozac” que promete deletar nossas inquietações trazendo para nossa mente e relacionamentos a paz dos cemitérios – um pequeno empreendimento chamado Lacuna Inc. ganhava a vida apagando eletronicamente lembranças das mentes de corações partidos.

Nesse filme, o diretor Michel Gondry focava a crítica às tecnologias do espírito pela questão das memórias e o esquecimento voluntário: para podermos seguir em frente nas nossas vidas, devemos apagar o peso emocional das lembranças. Todo o aparato das tecnologias do espírito (fármaco-eletrônico-neurocientífico) nos concederia o esquecimento voluntário e a alienação de nós mesmos. E o que é pior: transforma tudo isso em troca mercantil.

Já o filme Complicações do Amor (The One I Love, 2016), filme independente dirigido por Charlie McDowell e escrito por Justin Lader, apresenta uma crítica mais sinistra e sombria. Tudo sob a aparência de uma comédia romântica (para começar no horrível título em português) bobinha, dessas de sessão da tarde.

Se Gondry mirava a crítica cínica na questão do esquecimento voluntário e na alienação feliz, McDowell e Lader centram em um tipo especial de memória: a repetição neurótica de lembranças felizes, mas que não estão funcionando mais em relacionamentos conjugais.

Aqui em Complicações do Amor acompanhamos um casal que busca um terapeuta conjugal para tentar salvar um relacionamento que não está mais dando certo. Eram felizes mais jovens, quando se conheceram. Desesperados, tentam reencenar as mesmas situações felizes do passado mas a química parece que desapareceu – não riem mais juntos e, o que é pior, não fazem mais sexo.


Não conseguindo melhor resultado com métodos psicoterapêuticos tradicionais, o terapeuta decide mandá-los para uma casa de campo acolhedora longe da rotina habitual do casal. Ele diz que cada casal enviado para lá voltou “renovado” – expressão ambígua, como o leitor observará no filme.

Mas lá encontrarão uma sinistra armadilha, no melhor estilo da famosa série Além da Imaginação – crítica altamente simbólica de McDowell e Lader sobre as tecnologias do espírito: repetição e dependência, seja dos fármacos, seja do nosso apego neurótico a memórias de prazer exploradas tanto pelas psicoterapias quanto pela sociedade de consumo.

O Filme


Ethan (Mark Duplass) e Sophie (Elizabeth Moss) são um casal que foi muito feliz, divertido e com senso de humor. Mas agora, nada funciona. Nem mais o sexo. Lembram dos momentos divertido do início da relação (pular à noite na piscina de uma casa estranha ou tomar ecstasy no Lollapalooza). Tentam repetir juntos as situações, mas a magia do passado não retorna.

Acreditando que tudo é apenas um problema de comunicação, recorrem a um terapeuta de casais. Mas conversas, jogos, dinâmicas, nada funciona. Até que o terapeuta (Ted Danson) sugere a eles passar um fim de semana em um retiro no campo a curta distância de carro. Uma propriedade completa com casa de hóspedes, piscina e laranjais.

Ethan e Sophie concordam em ir, embora a tensão entre eles persista. Lá ficarão à sós em uma imensa propriedade. Quem sabe voltem ao início de relacionamento, quando eram irreverentes e felizes.

Juntos fazem o jantar. Bebem vinho e fumam maconha. Se soltam. O riso traz o alívio e a sensação de que eles estão voltando para aquelas sensações que fizeram ficarem juntos. Sophie sai para tomar ar e encontra a casa de hóspedes. Para sua surpresa, lá encontra Ethan, dão mais risadas e fazem sexo.


Mas no dia seguinte ocorre algo estranho. Quando Sophie menciona que se encontraram na casa de hóspedes e fizeram sexo, Ethan não consegue lembrar. Será que foi a combinação do vinho com a maconha?

Porém, coisas estranhas e anomalias começam a acontecer. Sempre na casa de hóspedes. A partir desse ponto, o filme retoma o tema do doppelgänger (palavra alemã para designar “duplicata andante”, “réplica”) – o confronto do protagonista com o seu duplo como nos filmes recentes O Homem Duplicado (Enemy, 2013) e O Duplo (The Double, 2014).

Ao entrar na casa de hóspedes, cada um deles encontra um duplo de Ethan ou Sophie. Porém, como amargamente observa Ethan, eles são 20% melhores que os originais: parecem ter aquilo que cada um deles deixou no passado. O duplo de Ethan  é irreverente e fala exatamente aquilo que Sophie quer ouvir de si mesma. E o duplo de Sophie parece uma daquelas donas de casa em tons pastéis dos anos 1950.

Anomalia cósmica? Algum golpe? Assustados decidem fugir, mas Sophie não consegue tirar o duplo de Ethan da cabeça. Com a sua insistência, Ethan aceita voltar e resolver o mistério – afinal, o gosto pela curiosidade e aventura eram qualidades do casal no passado.

Mas o que descobrirão é uma espécie de salão de espelhos cada vez mais perturbador e os mistérios se acumulam novamente.

Uma prisão CosmoGnóstica – alerta de spoilers à frente

A primeira impressão para o espectador é que a premissa de Complicações do Amor conduzirá a narrativa para um final óbvio: terminaria com Ethan e Sophie cada um acreditando estar com seu doppelgänger perfeito, apenas para descobrir que estão na verdade um com o outro.

Mas as coisas tendem para um desfecho sombrio e ambíguo com evidentes elementos gnósticos. Um deles à semelhança de Matrix – aquela casa de campo é uma espécie de prisão virtual, da qual apenas um casal poderá sair.


O primeiro elemento é Sophie. Não por acaso, a personagem possui o nome do aeon gnóstico Sophia: aquela que veio ao mundo para despertar a fagulha da Luz espiritual no homem prisioneiro no sono do esquecimento. Sophie é o elemento desencadeador de toda a trama – ela vive o dilema entre ficar com o duplo de Ethan naquela casa ou partir com o original. O que forçará o Ethan original a  fazer uma reforma íntima.

Mas o principal elemento é o CosmoGnóstico: toda a imensa e linda propriedade é uma prisão para casais em busca de uma solução psicoterapêutica para a crise conjugal. Através de alguma tecnologia futurista não explicada no filme (por isso a narrativa possui essa atmosfera Além da Imaginação) o casal prisioneiro transforma-se em duplos dos novos hóspedes – por meio das informações sobre o casal passada pelo próprio terapeuta, aprendem sobre detalhes pessoais das vítimas.

Esse elemento CosmoGnóstico é uma crítica simbólica às tecnologias do espírito – a “engenharia da alma”, todo um aparato de controle social a partir da repetição, compulsão e vício. Da mesma forma como a publicidade da rede fast food McDonald’s associa o Big Mac com momentos felizes (o primeiro amor, o primeiro beijo etc.), da mesma maneira autoajuda ou neurociências pretendem deletar as memórias negativas para valorizar apenas as positivas. Para que tentemos repeti-las ad infinitum por toda a vida, presos no ciclo vicioso satisfação/frustração.


Ethan e Sophie vão para aquela casa de campo em busca da irresponsabilidade feliz da juventude que, acreditam, foi o que fez ficarem juntos. Buscam uma espécie de Disneylândia conjugal.

Mas, como toda estrutura das tecnologias do espírito e de consumo, o propósito do negócio é criar viciosidade e dependência – prisioneiros de fármacos ou de soluções psicoterapêuticas clichês como “fins de semana a sós”.

Por isso, Complicações do Amor é uma surpreendente fábula surreal sobre os atuais dispositivos de controle e dependência das relações humana. Um filme que se alinha a outras produções em tom “fabulesco” como Quero Ser John Malkovich, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e Show de Truman.


Ficha Técnica

Título: Complicações do Amor
Diretor: Charlie McDowell
Roteiro:  Justin Lader
Elenco:  Mark Duplass, Elizabeth Moss, Ted Danson
Produção: Duplass Brothers Production
Distribuição: Netflix
Ano: 2014
País: EUA

Postagens Relacionadas












Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review