O filme argentino “Tiempo Muerto” (2016) é
mais uma incursão do cinema atual no tema da viagem do tempo, mas por um viés
bem particular – loops temporais e paradoxos como obstáculos para a “segunda
chance” que possa alterar a linha do tempo. Inconformado com a morte da sua
esposa, o protagonista contrata um “tempo morto” – um estranho ritual que
envolve xamanismo, ocultismo e fenômenos quânticos. Tempo, psiquismo e memórias
são contínuos que esbarram em um traço da natureza humana: a compulsão a
repetição. Sem conseguirmos seguir em frente, ficamos neuroticamente fixados em
experiências de prazer ou dor no passado, repetindo a cena do trauma. Quem sabe
pensando que um dia o Titanic não afunde.
Psiquismo, tempo e memória são conceitos indissoluvelmente conectados.
São contínuos, ligados por uma mesma natureza: a repetição.
Lá na antiguidade grega, os filósofos estoicos propunham uma
repetição do mundo – o mundo se extinguirá numa conflagração ardendo em fogo
para tudo ser reconstruído para depois se repetir da mesma forma.
Nietzsche também incorporou essa ideia ao acreditar que estamos
sempre presos a um número limitado de eventos: por exemplo, guerras e epidemias
se repetiriam no futuro assim como ocorreram no passado. Como a História não
tem objetivo e finalidade, tudo tenderia a se repetir. Nietzsche denominou isso
como “eterno retorno”.
Além de médico psiquiatra, Freud também era um costumeiro leitor
de filosofia: a ideia de eterno retorno nietzschiana está no centro da
concepção de trauma e neurose concebidos pela psicanálise - nossa vida inteira pode estar determinada por
certos eventos traumáticos da primeira infância (localizados nas famosas fases
do desenvolvimento do psiquismo: oral, anal e genital).
Simplesmente não conseguimos seguir em frente, condenados a
viciosamente repetir experiências de prazer e dor pelo restante da vida,
variando apenas as situações, narrativas e instrumentos – perversões,
compulsões, impulsividades, obsessões etc.
Mas essa natureza viciosa humana ganhou seu ponto de viragem no
século XX quando o seu sobrinho, Edward Bernays, transformou essa descoberta
filosófica e psicanalítica em instrumento de manipulação de massas nos EUA através
das relações públicas, publicidade e sociedade de consumo – repetição,
compulsividade e vício instrumentalizadas para objetivos políticos (engenharia
de opinião) e mercadológicos (exploração das fantasias no consumismo).
Na cinematografia recente o tema da repetição começa a ser desenvolvido
no outro lado da moeda do psiquismo: o tempo. A repetição através de loops
temporais, armadilhas do tempo, repetições entre universos alternativos, mas
não como estrutura – mas agora decorrente da viciosidade neurótica (culpa,
obsessão etc.) do protagonista.
A tendência do loop temporal
O filme argentino Tiempo
Muerto se inscreve nessa tendência que mais ou menos podemos localizar o
início com Os 12 Macacos (1996), e a
retomada atual desse eterno retorno temporal com The Discovery (2017), Arq
(2016), Donnie Darko (2001), série 12 Monkeys (2015-) entre outros.
A pergunta que transpassa o filme e atormenta a mente do
protagonista é: “Se você tivesse a oportunidade de rever a pessoa que você mais
ama já falecida, o quê diria para ela?”. Aproveitaria a oportunidade para se
despedir dignamente com palavras de amor e inspiração? Ou tentaria por todas as
formas reverter a linha do tempo para impedir o dia da morte fatal? Permitiria
a pessoa amada seguir em frente, assim como você mesmo?
Filmes como Efeito Borboleta
já alertaram sobre a possibilidade da criações catastróficas de linhas do tempo
alternativas infinitas. Mas Tiempo Muerto
explora o risco de ficarmos prisioneiros em um loop temporal. Assim como nos
tornamos prisioneiros em nosso psiquismo na compulsão e repetição neuróticas
freudianas.
Nietzsche chamava de “eterno retorno” e Freud de “neurose”. No
filme argentino chama-se “tempo morto”.
O Filme
A narrativa nos conta as desventuras de Franco (Guillermo
Pfening). Para começar, como perda sua mulher, uma jornalista chamada Julia
(María Nela Sinisterra), em um atropelamento logo após sair de casa para o
trabalho.
Em meio à comoção do funeral, Franco recebe um telefonema de outro
jornalista, Luis Ayala (Luis Luque), que suspeita de que a morte de Julia não
foi acidental – ela estaria envolvida com uma pesquisa sobre algo parecido com
uma seita.
Mexendo nos pertences de Julia, Franco encontra um diário com
estranhas descrições sobre ocultismo, conhecimentos arcanos e referências a um
ritual chamado “tempo morto” que permitiria aos vivos reencontrar com os mortos
em uma determinada etapa das suas vidas por meio de lembranças através de
fotografias. Para, então, ter a breve oportunidade de dizer as últimas palavras
e despedir-se do ente ou conseguir revelações sobre questões jamais respondidas
em vida.
Através das pistas do diário, Franco chega a uma livraria
especializada em publicações esotéricas que o conduzirá a um outro contato, uma
senhora chamada Ada – ela é uma intermediadora para pessoas interessadas em
contratar o “tempo morto”: um estranho ritual com toques indígenas xamânicos
misturados com o fenômeno quântico da dobra do tempo e do espaço.
Por isso o diretor Víctor Postiglione rodou o filme na Colômbia
com grande número de atores locais. Para ele, as raízes xamânicas daquela
cultura enriqueceria bastante o projeto.
A ideia do diretor para o filme foi autobiográfica: “tudo surgiu a
partir de um sonho em que reencontrava com meu falecido pai, para quem dizia
coisas que em vida não pude”.
Por isso Postiglione passou a pesquisar demonologia, astrologia,
ritos pagãos e mesclar tudo isso com fenômenos quânticos – uma espécie de
viagem no tempo xamânica através das memórias.
Memórias e viagem no tempo – aviso de spoilers à frente
Assim como o filme The
Discovery (2017 – clique aqui) converge o tema da vida
após a morte e a viagem no tempo, também em Tiempo
Muerto há essa conexão, porém uma pista narrativa falsa para o espectador.
O filme é essencialmente uma discussão sobre a possibilidade da viagem no tempo
através das memórias.
Dessa maneira, Tiempo Muerto
apresenta uma narrativa ambígua para nós: será que de fato Franco empreende uma
viagem no tempo real no qual a memória, fotografia e a estranha bebida xamânica
que toma são meios para alcançar um tipo de memória ainda gravada no espaço
astral? Memórias voláteis e que tendem a desaparecer?
Ou tudo não passou de efeito alucinógeno de alguma droga indígena,
uma “bad trip” da qual o protagonista não consegue sair vivendo um loop de
memórias infinitas?
O protagonista Franco vive um tema recorrente dos filmes sobre
viagens no tempo: a tentação da “segunda chance”, mudar o passado para alterar
o presente e o futuro. E como sempre, acaba vítima de uma armadilha temporal: o
loop, curto circuito no qual linhas temporais se engatam e se repetem, tal como
a serpente Ouroboros que morde a própria cauda.
O alerta dado pelo mago-xamã a Franco foi explícito: aproveite bem
o tempo no passado com a pessoa que você ama, mas não tente mudar a linha do
tempo! É claro que Franco será tentado pela oportunidade da “segunda chance”.
Mas, como a personagem Dra. Jones na série 12 Monkeys vaticina: “O Tempo sempre cobra de volta aquilo que é
seu” – Franco será vítima de uma paradoxo insolúvel, uma prisão criada pela
tendência viciosa do psiquismo humano em ficar preso a determinadas
experiências seja de dor ou prazer no passado.
Sem conseguirmos seguir em frente, repetimos de forma neurótica
fantasmas de experiências, acreditando que em algum momento a história poderá
ser alterada: finalmente o Titanic não afundará, o carro de Ayrton Senna
conseguirá fazer aquela curva em Imola e aquele avião que levava o time da
Chapecoense terá ainda a última gota de combustível no tanque que permitirá o
pouso na pista de Medellín.
Dos estoicos gregos da antiguidade aos filmes atuais sobre viagens
no tempo, a mesma intuição sobre o destino humano – prisioneiro em um eterno
retorno neurótico através do tempo, psiquismo e memória.
Ficha Técnica |
Título: Tiempo Muerto
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Diretor: Victor
Postiglione
|
Roteiro: Victor Postiglione
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Elenco: Luis Luque,
Guillermo Pfening, Maria Nela Sinisterra
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Produção: Elefante Films, Oasis Films, Patagonia
Films
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Distribuição: Netflix
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Ano: 2016
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País: Argentina
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