domingo, maio 28, 2017

A Cracolândia e o documentário "Arquitetura da Destruição"


No filme “Ele Está de Volta” (2015) Hitler aparece no século XXI e vê os neonazistas na Alemanha. Irritado, chama-os de “fracotes!”. Para ele, não passavam de imitadores. Mas aqueles que realmente entenderam o seu legado não estão nas ruas: são os gestores em governos e corporações. Chamada pela mídia corporativa de “megaoperação de combate às drogas”, a ação na Cracolândia no Centro de São Paulo, comandada pelos “gestores” prefeito João Dória Jr. e o governador Alckmin é uma irônica confirmação daquele filme. Escavadeiras, demolições e a internação obrigatória de dependentes químicos são evidências de como dois princípios do legado nazifascista inspiram esse século: o “embelezamento do mundo” e o “princípio das ruínas”. Um dos melhores estudos do fenômeno nazi, o documentário “Arquitetura da Destruição” (1989) descreve que projetos nazistas como a “Nova Berlim” acreditavam que o embelezamento somente seria possível através da destruição e higienização social.  Projetos atuais como “Nova Luz” e o Programa “Cidade Linda” em São Paulo parecem confirmar a maior fé de Hitler: as ruínas da arquitetura monumental nazi de uma Alemanha derrotada inspirariam as gerações futuras.

O leitor certamente já deve ter assistido, ou pelo menos ouvido falar, no documentário do sueco Peter Cohen Arquitetura da Destruição. Produzido em 1991, é um dos melhores estudos sobre o Nazismo. Traça o percurso de Hitler e de seus mais próximos colaboradores com a arte - do sonho de se tornar artista ao ponto em que suas antigas gravuras foram utilizadas como modelos para colossais obras arquitetônicas, depois de chegar ao poder.

Mas o documentário principalmente descreve o princípio fundamental de “embelezamento do mundo”, vinculado diretamente a “limpeza”: urbanística, arquitetônica, médica e racial – a eliminação dos judeus como doença que poderia “deformar o corpo da nação”.

Embelezar o mundo, nem que para isso fosse necessário destruí-lo.

Enquanto a guerra acontecia, Hitler e seu arquiteto (e favorito para sucedê-lo) Albert Speer trabalhavam freneticamente na construção de obras monumentais na Alemanha, principalmente o projeto da “Nova Berlim” – mais de 20 mil apartamentos de judeus e inimigos do regime foram demolidos no projeto de reconstrução de Speer. Cem mil pessoas foram desalojadas, presas e finalmente confinadas em campos de concentração.

A Nova Berlim de Albert Speer

Princípio das Ruínas


Porém, o mais curioso por trás desse conceito de “embelezamento do mundo” estava presente o chamado “Princípio das Ruínas” idealizado por Hitler e Speer. Eles imaginavam um futuro distante em que todos as gigantescas obras nazistas em mármore e granito ruiriam, formando ruínas pitorescas que seriam descobertas por arqueólogos. Então, ficariam estupefatos e inspirados diante da grande revelação dos princípios que motivaram essas obras, estremecendo sociedades futuras – Hitler falava explicitamente esse princípio em seus discursos.

Speer costumava apresentar para Hitler desenhos de como seria o aspecto daquelas obras monumentais em ruínas e cobertas pela vegetação.  

 O paradoxo desse princípio é que a vitória na guerra não era tão importante para Hitler (talvez isso explique os nazistas travarem uma guerra moderna com objetivos e estratégias antigas). Para ele, a queda da Alemanha e as ruínas da sua arquitetura monumental inspirariam gerações futuras.

E parece que Hitler com a sua, por assim dizer, “arquitetura subliminar” estava com razão. Além da propaganda de Goebels, o “princípio das ruínas” e do “embelezamento do mundo” da dupla Hitler/Speer não só perpetuaram para a História os valores da eugenia, racismo e intolerância mas, principalmente a associação da arquitetura e urbanismo com a destruição ao invés da integração.

O projeto "Nova Luz"

Da Nova Berlim à Nova Luz


Setenta anos depois, na maior cidade da América Latina, ao invés da “Nova Berlim” temos o projeto da “Nova Luz”; e no lugar do “embelezamento do mundo”, a instituição do programa “Cidade Linda” comandada por João Doria Jr. Um prefeito que, certa vez, considerou a cidade de São Paulo um “lixo vivo” e “filme escabroso” com pancadões (bailes funk) “patrocinados por atividade criminosa”.

A região conhecida por Cracolândia (no centro da cidade de São Paulo onde a partir dos anos 1990 desenvolveu intenso tráfico de drogas com a comercialização e consumo principalmente do crack livremente pelas ruas) sempre foi pensada como um grave  problema social no qual furtos, mendicância e prostituição gravitam em torno do problema das drogas.

Programas sociais da Prefeitura como Recomeço e Braços Abertos sempre visaram o acolhimento, tratamento e reintegração à sociedade das almas perdidas nessa região da São Paulo.

Tudo mudou com a chamada “megaoperação de combate ao tráfico de drogas”, como a mídia corporativa quis que parecesse - ação policial em blitzkrieg com bombas, prisão de traficantes e apreensão de drogas e armas na manhã do domingo do dia 21 que culminou com a decisão da Justiça de autorizar a Prefeitura de internar à força dependentes químicos que forem encontrados pelas ruas da Cracolândia.

Porém essa foi apenas a superfície midiática: as imagens do prefeito Doria Jr. subindo em uma escavadeira posando para fotografias; caminhando rápido e trajando uma jaqueta negra ao lado de um secretário entre lixo, escombros e ruínas em uma rua da região; prédios, pensões e bares sendo demolidos a toque de caixa inclusive fazendo vítimas entre moradores pegos de surpresa apontam para algo mais -  o decreto de 19 de maio declarando aquela área como “utilidade pública” o que permitirá desapropriações sumárias e demolições de quarteirões inteiros.



O pretexto do combate às drogas esconde uma intervenção urbanística radical que, assim como a Nova Berlim dos anos 1940, implica no “embelezamento” por meio da higienização social e destruição.

Um projeto sintomaticamente chamado “Nova Luz” (a flagrante alusão ao nome projeto urbanístico de Hitler e Speer não é mera coincidência) que começa exatamente ao lado dos quarteirões da Cracolândia – substituição do centro velho por um distrito de negócios elitizado com prédios envidraçados sobre a história região da Luz em São Paulo. Projeto solicitado ao escritório  arquiteto e ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner – clique aqui e aqui.

“A única higiene do mundo”


Desde que o artista italiano Marinetti, em seu Manifesto Futurista de 1906, falou em “glorificar a guerra” porque era a “única higiene do mundo” capaz de destruir tudo que era velho e clássico para instituir o moderno e “libertário”, o fascismo aliou-se às ideias de modernidade e progresso.

Guerra e a destruição eram vistas como algo positivo para a humanidade para diversos estratos da sociedade: ajudaria os jovens a se livrar dos vícios como o alcoolismo, a vagabundagem e a libertinagem sexual. Tanto o nazismo como o fascismo, com sua políticas de higienização e embelezamento do mundo, transformaram essa percepção em valores de propaganda e princípios de urbanização – leia ENGLUND, Peter. A Beleza e a Dor – uma história íntima da Primeira Guerra Mundial, Companhia das Letras.

Essa positividade na destruição chegaria até à Teoria Econômica com o conceito de “destruição criativa” criado em 1942 pelo austríaco Joseph Schumpeter para o quem a destruição de empresas pela livre concorrência seria a força motriz para o desenvolvimento econômico e inovação tecnológica.

Albert Speer e Hitler diante de uma maquete

Atropelados pelo Progresso


A estrada da Modernidade está repleta de cadáveres atropelados pelo Progresso. A modernização exige o confinamento e extermínio daqueles que estão no lugar errado e na hora errada – judeus, drogados, alcoólatras, pobres, homo-afetivos, desempregados etc. serão sempre os inimigos ou o bode expiatório da vez para que ocorra guerra e destruição.

Limpeza, higienização social, urbanização e arquiteturas monumentais são  etapas desse embelezamento do mundo baseado na destruição, desintegração e aniquilamento de tudo aquilo que é “velho”, “passado” e, por isso mesmo, suspeitos de doenças e vícios.

 A barbárie de Estado da atual operação na Cracolândia e o programa Cidade Linda é mais uma evidência da força do legado místico da arquitetura da destruição e o “princípio das ruínas” de Hitler e Speer: continuam inspirando gerações – um velho princípio agora mascarado por modernos eufemismos do jargão administrativo como “gestão”, “programa de metas”, “parcerias”, “índice de eficiência” etc. A tragédia se repetindo como farsa.


Essa barbárie de Estado é ainda mais perniciosa do que a ação direta dos famigerados neonazistas: esses pelo menos são mais identificáveis com o seu discurso estereotipado e sua violência ritualizada que tenta emular as ações da SS e SA da velha Alemanha nazista.

Ao contrário, megaoperações da guerra às drogas e coisas como “Cidade Linda” se escondem sob a aparência midiática da “gestão” e “modernização”.

Não é à toa que no filme Ele Está de Volta (mockumentary em humor negro que mostra o que aconteceria se Hitler reaparecesse no século XXI graças a uma anomalia temporal), Hitler vê os neonazistas na Alemanha e os chama de “fracotes!” – clique aqui.

   Certamente são os gestores, CEOs de empresas e toda a gama de tecnocratas, sanitaristas e urbanistas os que melhor compreenderam o cerne dos princípios que marcaram o século XX, criado por um arco formado desde os futuristas na Arte, passando pelos nazifascistas na Política até chegarmos ao neoliberais na Economia.

Grupos neonazistas são apenas “fracotes”. Os mais perigosos mesmo são os chamados “gestores” nos governos e corporações: sob o eufemístico jargão da moderna gestão, escondem o fascínio pela arquitetura da destruição e o princípio das ruínas.


Ficha Técnica

Título: Arquitetura da Destruição
Diretor: Peter Cohen
Roteiro:  Peter Cohen
Elenco:  Bruno Ganz (narração), Sam Gray (versão dublada em inglês)
Produção: Poj Film Produktion AB, SVT Drama, Svenska Filminstitutet (SFI)
Distribuição: Cult Filmes
Ano: 1989
País: Suécia

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