Uma startup britânica chamada Improbable
pretende criar a verdadeira Matrix: uma simulação em larga escala do mundo
real. E o ponto de partida já existe – a plataforma SpatialOS e o jogo de
computador Worlds Adrift, ainda restrito a acadêmicos e cientistas. O aporte de
milhões de dólares na startup por empresas de capital de risco, além do
interesse militar e indústria de entretenimento pelo projeto revelam evidentes
aplicações nas áreas estratégica, bélica e engenharia social: construir mundo
virtuais para simular o surgimento de extremismos violentos nas populações e
comportamentos econômicos. Mas a iniciativa dos co-fundadores Herman Nerula e
Rob Whitehead é também uma evidência da motivação místico-religiosa que possui
atualmente o Vale do Silício: Tecnognosticismo, imortalidade e a crença de que
já vivemos em uma gigantesca simulação. O game Worlds Adrift seria mais um
exemplo de como a ciência experimental se encontra com a prática religiosa: a
Teurgia.
Em uma manhã qualquer de fevereiro desse ano um grupo do alto
escalão da indústria do entretenimento, política e segurança se encontrou em um
terreno de 25 hectares, cercados de armazéns, em uma espécie de cidade fantasma
com ruas largas, calçadas, uma biblioteca, um banco, lojas, além de uma entrada
para o metrô com escadas que não levam para lugar algum.
O grupo incluía o presidente de um grande estúdio de animação, o
diretor de uma conhecida franquia de super-heróis, parlamentares britânicos e
militares de alta patente dos EUA e Reino Unido.
O encontro foi em Burbanck, Califórnia, e a “cidade fantasma” nada
mais era do que uma imensa cenografia na qual recentemente foram filmadas cenas
de La La Land. O que esse grupo tão
heterogêneo fazia em um encontro privado nessa propriedade da Warner Brothers?
Todos estavam ali no interior de um dos edifícios cenográficos,
atentos para as palavras de Herman Narula, CEO e co-fundador da Improbable,
startup tecnológica britânica que recentemente arrecadou mais de 540 milhões de
dólares em financiamentos de empresas de capital de risco como a SoftBank,
Horizons Ventures e Andreesen.
Os co-fundadores Herman Narula e Rob Whitehead |
E quais eram as palavras de Narula que despertaram tanto a atenção
daquele grupo? A Improbable organizou o encontro nesse lugar tão emblemático (a
indústria dos sonhos) para mostrar como a tecnologia computacional poderá criar
realidades artificiais. Mas não num sentido abstrato como o cinema ou mesmo a
realidade virtual. Mas, segundo Narula, “de uma forma genuína, na qual as
pessoas poderão viver, respirar dentro de recriações da realidade, que permitam
as pessoas tenham experiências totalmente novas”.
Muito além da Inteligência Artificial
Para Narula, a Inteligência Artificial (IA) vem recebendo todos os
holofotes da mídia. Porém, o futuro está na simulação – recriar a própria
realidade se tornará mais significativo do que a IA. “Simplesmente, queremos
construir a Matrix”, arremata o CEO.
E a startup já tem o ponto de partida: a plataforma chamada
SpatialOS e um game MMO - o Worlds Adrift.
A notícia pode parecer velha. Afinal, todos os jogos de computador
são, em certa medida, recriações da realidade. Porém, essas simulações ainda
não conseguem ainda dar conta de toda a complexidade emergente de grandes
realidades – causas e efeitos simultâneos:
Imagine uma rua de Londres no horário de pico. Há uma colisão na estrada. Com as pistas bloqueadas, o tráfego para. Quando os condutores se desviam, outras rotas começam a ficar obstruídas. A alguns quilómetros atrás, começa a formar-se uma fila na autoestrada. Motoristas resmungando em voz baixa; ligam para o trabalho para cancelar suas reuniões, sobrecarregando as torres celulares próximas. As entregas estão atrasadas. No hospital, uma ambulância é redirecionada, o que significa que outro paciente enfrenta uma espera mais longa para atendimento médico... ("If Were living in a simulation, this UK startup probably built it", Wired, 12/05/2017)
Esse nível de simulação complexa e realista exigiria uma
gigantesca capacidade de processamento. E é exatamente isso que a Improbable
quer ser capaz de criar através daquilo que Herman Narula chama de “tecnologia
subjacente”, um tipo de infraestrutura que ainda não existe para criar
simulações em larga escala.
Entidades, Componentes e Sistemas
Colocando em termos mais simples, o SpatialOS divide uma simulação
em “entidades” (cada edifício, pedestre, carro, segmento de estrada etc.). Cada
entidade possui estados, chamados de “Componentes” (a quantidade de combustível
em um carro, o motorista apressado etc.). E cada Componente é governado por
“Sistemas” que, tal como na Física, interagem com eles – carro bate, o
motorista resmunga, começa a chover e a pista alaga etc.
Para lidar com tamanha complexidade, normalmente jogos online
limitam o número de jogadores em cada servidor. Com o SpatialOS temos um “jogo
de cadeiras cibernético” – se a exigência de processamento é demais para um
“trabalhador” (abstração do sistema para os servidores), traz servidores
adicionais para distribuir a carga em tempo real.
O game Worlds Adrift (um mundo de navios piratas voadores e ilhas
flutuantes) é o laboratório de ensaios para essa tecnologia inspirada no
tráfego de alta frequência dos sistemas financeiros no qual “velocidade é
dinheiro”.
Esse jogo é diferente de todos os outros games online. Narula e
seu co-fundador Rob Whitehead queriam fazer um mundo físico:
Cortar uma árvore em um jogo como Minecraft, a madeira aparentemente aparece em seu inventário. Em Worlds Adrift , as peças caem realisticamente no chão. Se colocar muito peso em um navio, e ele vai começar a afundar. O mundo também é persistente, ou seja, se eu largar meu machado e voltar dentro de um ano, ele ainda estará lá. Da mesma forma, a árvore não aparece apenas para o próximo jogador, você realmente tem que esperar que ela volte a crescer. (Wired)
O Mapa e o território
Como sempre no caso do desenvolvimento de novas tecnologias,
Narula fala das aplicações médicas nas simulações dos sistemas do corpo humano.
Mas as aplicações previstas são bem menos humanistas – os interesses imediatos
estão no campo estratégico-militar e engenharia social – construir mundo
virtuais para simular o surgimento de extremismos violentos nas populações e
comportamentos econômicos, por exemplo.
O leitor deve lembrar de um conto do escritor Jorge Luís Borges
chamado “Sobre o Rigor da Ciência”, já discutido pelo Cinegnose no caso do App
Pokémon Go! (clique aqui): em um reino obcecado pela cartografia, acabaram
fazendo um mapa tão perfeito em uma escala 1:1 que ficou do tamanho do próprio
império como um cobertor que cobria todo o reino, tornando-se inútil.
Claro que o sonho da Matrix perfeita de Narula (uma simulação em
escala 1:1 do real) possui o componente político da manipulação (“velocidade é
dinheiro”) pela possibilidade de antecipação de eventos sociais,
mercadológicos, políticos e militares – isso explica o porquê daquele grupo tão
heterogêneo na cidade cenográfica da Warner Brothers atentos à fala de Herman
Narula.
Game Worlds Adrift |
Tecnognosticismo e Teurgia
Mas há um componente a mais em desenvolvedores como Narula e
Whitehead, que o cientista computacional Jaron Lanier qualifica como uma
verdadeira motivação místico-religiosa que domina atualmente o Vale do Silício:
o Tecnognosticismo e a crença em multiversos tecnologicamente simulados.
Para quê um óculos em 3D se a realidade já é em 3D? Por trás da
inutilidade da escala 1:1 de Borges haveria o impulso da busca da imortalidade
através da Teurgia ou a chamada “Cabala Extática” – imitatio dei por generatio animae, “imitar Deus criando vida”.
Aqui no caso do SpatialOS, simulando a vida.
Esse seria mais um exemplo do esforço humano, desde o mundo
helenístico grego, de convergir a ciência experimental com a prática religiosa:
a aspiração humana do retorno à Deus através da imitação do Seu próprio ato de
Criação.
Já vivemos em uma simulação?
No caso dos geeks do
Vale do Silício a crença que vem se tornando mais forte nos últimos anos de que
poderíamos estar vivendo em uma gigantesca simulação computacional – o Universo
como uma simulação computacional finita.
Essa tese foi popularizada em artigo científico do físico e
matemático da Universidade de Oxford, Nick Bostrom, em 2003. A partir daí,
físicos como, por exemplo, da Universidade de Bonn (Alemanha) tentam encontrar
a “assinatura cósmica” na matéria escura do Universo para comprovar essa tese –
clique aqui. Ou que o pesquisador da
NASA Richard Terrile aponte para a natureza pixelada dos fenômenos quânticos
como evidência da modelagem da simulação do Universo – clique aqui.
Filme "Décimo Terceiro Andar" (1999) |
Essa convicção mística parece impulsionar o desenvolvimento da
realidade virtual, games e mundos simulados. Desenvolvedores como Nerula
parecem ser possuídos por esse ímpeto teúrgico de combinar ciência e religião:
se o Universo é uma gigantesca simulação computacional finita, toda a religião
nada mais seria do que um nível meta da realidade – dentro dessa simulação
“divina”, criaríamos nossas próprias simulações tentando traçar o caminho de
volta ao Divino.
Assim como a criança que tenta recriar cidades reais nos jogos
lúdicos de carros de bombeiro, prédios e postos de gasolina de brinquedos.
Dessa maneira, a criança buscaria criar laços com o mundo adulto “divino” –
isso, até descobrir que os adultos “brincam” com o seu mundo da mesma forma que
ela.
Uma ideia tão levada a sério no Vale do Silício que, segundo a
revista New Yorker, dois bilionários
da tecnologia chegaram secretamente a se engajar com cientistas para encontrar
uma saída dessa simulação cósmica – clique aqui.
Empresários, engenheiros e cientistas estariam revivendo, agora
com ferramentas digitais, todo um sonho da Teurgia que animou alquimistas por
séculos? Recriar a vida no interior da própria criação Divina.
O que espanta é que há 18 anos o filme O Décimo Terceiro Andar (1999) exibia uma narrativa semelhante a
esses cenários vislumbrados pela startup Improbable: três níveis de mundos simulados, um dentro
do outro. Esses níveis entram em contato por meio de uma complexa trama de
personagens que são nativos ao nível, visitantes daquele nível e personagens
que transcendem o nível: o “Simulacro Um”, o futuro aparente de Los Angeles de
2.024; “Simulacro Dois”, o aparente presente de Los Angeles de 1998; e
“Simulacro Três”, o aparente passado de Los Angeles e Pasadena em 1937.
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