sexta-feira, maio 19, 2017

Jogo Baleia Azul e suicídio: a morte é mais um produto à venda?, por Marcelo Gusmão


Torne a mentira grande, simplifique-a, continue afirmando-a, e eventualmente todos acreditarão nela”. Essa frase de Adolf Hitler descreve bem esse ‘e-fenômeno’ que se tornou o Jogo da Baleia Azul nos últimos meses.  O que aconteceu foi algo semelhante à frase do ditador, ou seja, o jogo é a mentira que se tornou grande, e por isso foi curtida, comentada e compartilhada tantas vezes mundo afora que, eventualmente, muitos acreditaram nela. Sabe-se agora, após investigações de sites especializados, que o Jogo da Baleia Azul é um “fake news” (notícia falsa), fruto do velho e conhecido telefone sem fio. Mas também a vida imita a arte: o  suposto jogo Baleia Azul foi explicitamente inspirado no filme “Nerve: Jogo sem Regras” (2016). E vice-e-versa, a arte imita a vida: a série "Os 13 Porquês” surge no momento em que a ONU divulga números de que ocorre um suicídio a cada 40 segundos: coincidências? sincronismos? Ou também a morte transforma-se em mais um produto à venda?

Sabe aquele dito popular “quem conta um conto aumenta um ponto”, então! É a história que alguém ouviu de outro alguém e, ao contá-la, aumentou e/ou distorceu fatos e elementos do evento original, passando adiante uma informação ainda mais customizada que a versão anterior.

Mas afinal qual é o "Conto", e o qual é o "ponto aumentado" a ele, para que o Jogo da Baleia Azul se tornasse um viral na internet?

Vamos aos autos (ou ausência deles). Primeiro: ‘o Conto’, o fato - refere-se a morte de Rina Palenkova, 17 anos, que cometeu suicídio ao jogar-se nos trilhos do trem da cidade de Ussuriysk, no extremo oriente russo. Posteriormente constatou-se que a garota participava de sites e grupos de discussão sobre a temática da morte, suicídio e depressão em geral.

Segundo: “o ponto aumento ao Conto”, ou seja, a mentira - refere-se a notícia publicada no periódico russo Novaya Gazeta de que adolescentes (Rina Palenkova) estariam se matando após acessarem um jogo online chamado The Blue Whale (A Baleia Azul) contendo 50 tarefas para serem executadas diariamente e em graus crescentes de dificuldade culminando com o suicídio do participante, tudo a mando de seus administradores.

Para os investigadores do site Snopes.com (um site especializado em apurar boatos na Internet), essa história do jogo é cheia de suposições e sem nenhuma evidência realmente consistente. Rastreando as publicações eles conseguiram chegar à reportagem inicial, encontrada no referido periódico russo, de onde se confirmou a ausência de apuração e de fatos concretos para embasar a notícia. Endossando ainda mais essa constatação, no último dia 27, a ONG SaferNet na Inglaterra, publicou nota confirmando que nenhum caso de suicídio até então estaria ligado diretamente ao Jogo da Baleia Azul.


Jogo da Baleia Azul, o tabu que virou mercadoria em um mundo 
marcado pela indiferença.

Internet, depressão e morte


A verdade é que a internet está repleta de grupos e sites com temáticas de suicídio, depressão, automutilação e morte. E sendo um ambiente competitivo, estes sites criam as mais variadas formas de manter-se no topo das buscas as custas dos mais diversos e às vezes duvidosos meios. Como é este o caso, um grupo de administradores de mídias sociais voltados a esse tema, compartilharam as fotografias de Rina próxima a linha de trem em que se matou e criaram o boato de que ela fazia parte de uma seita suicida.

Para promover o grupo russo hashtag #F57, por exemplo, e torná-lo popular, os moderadores desenvolveram um Jogo de Realidade Alternativa conhecido pelas iniciais em inglês ARG - Alternate Reality Game. Um ARG, resumidamente é uma realidade virtual sobreposta ao mundo real. Inicialmente o projeto desse grupo não relacionava-se com o suicídio, mas depois que incorporaram ideias de moderadores mais underground a coisa mudou. Um dos elementos do projeto foi um cronômetro de contagem regressiva acionado 70 dias anteriores a uma determinada data, que seria o dia dos suicídios em massa.

Em entrevista ao site Lenta.Ru, o administrador do grupo “Sea of Whale“, disse que o criador do grupo hashtag #F57, Filipp Lis Budeykin (preso em novembro de 2016, acusado de ser o mentor do The Blue Whale) não tinha a intenção de incentivar os adolescentes a cometerem suicídio, e sim,  promover suas páginas no VKontakte (rede social de origem russa, similar ao Facebook) para ganhar dinheiro. Lis lançou o mito da “seita” e usou Rina Palenkova para promovê-lo. Ele vendeu as páginas clonadas da adolescente, além de seus reposts, vídeos e fotos de seu túmulo, bem como screenshots de sua correspondência.


Depois que o site VKontakte removeu o grupo #F57, ele, Filipp Lis, criou grupos semelhantes, como o f57Terminal5751 , ςψ ςψ ςψ 666. Ele insistiu que seu objetivo era dissuadir adolescentes propensos a pensamentos suicidas, mas pra isso era necessário primeiro “se tornar um deles”. Em outras palavras, fingir ser suicida. Segundo o site Radio Free Europe não é raro que jovens em depressão e que praticam automutilação, ou cutting, entrem em grupos fechados sobre o tema. Eles frequentam grupos em comuns na internet, independente da existência de jogos como o da Baleia Azul.

A vida imita a arte


O filme ‘Nerve – Um Jogo Sem Regras’ foi lançado em 2016 antes da Baleia Azul ser conhecido mundialmente, e parece ter inspirado os criadores desse infame jogo suicida. Com direção de Ariel Shulman e Henry Joost (criadores e produtores do programa jovem da MTV Catfish ) o filme, inspirado no livro homônimo de Jeanne Ryan, conta a história da estudante Vee que, pressionada pelos amigos, decide participar do jogo online ‘Nerve’, que faz desafios reais aos seus jogadores em troca de dinheiro. Porém, o jogo toma um rumo assustador e, ao chegar no estágio final, Vee precisa tomar decisões que irão determinar o seu futuro.

O filme começa com uma simples brincadeira onde a protagonista deve "beijar um estranho por 5 segundos" para ganhar cem dólares, em outra cena um jogador deve "ficar de baixo de um trem em velocidade", curiosamente Rina Palenkova cometeu suicídio ao jogar-se nos trilhos de um trem. A semelhança entre o filme e o jogo da baleia azul é tamanha que podemos dispensar a coincidência.

Temos agora elementos suficientes para imaginar por um instante a hipotética situação: inspirados em Nerve: Um Jogo Sem Regras, um grupo de administradores de sites de temática suicida se articulam para promoverem as suas páginas na internet e criam uma versão virtual de notícias reais de adolescentes suicidas que supostamente participaram de jogos de desafios que os levaram a morte, surge assim o jogo da Baleia Azul e suas vítimas. Essa mentira então viraliza na internet e ganha crédito.


Brasil e o efeito contágio


No Brasil a notícia desencadeia o chamado “efeito contágio” com consequências reais, e não virtuais, como foi o caso de uma menina de 16 anos que morreu no Mato Grosso após se afogar em uma lagoa na região central de Vila Rica, a cerca de 1.200 km de Cuiabá, supostamente ligada ao jogo da Baleia Azul. Apesar de ter ganhado muita credibilidade, no fim, esse ‘Conto’ felizmente não matou ninguém diretamente e só fez levantar a discussão sobre o suicídio e seu significado, causas e consequências.

Voltando ao filme Nerve a ideológica sugerida no jogo desperta a atenção de quem assiste a este thriller adolescente, ainda mais em tempos de Pokémon Go cujo fascínio compara-se ao contido neste filme. Interessante que ele remete mais uma vez a figura do Grande Irmão, onde a todo momento pessoas observam e são observadas, o que levanta também a questão da perversão que existe por trás daquilo que secretamente desejamos ver o outro realizando.

(CUIDADO SPOILER!!) No final do filme, quando a protagonista encontra-se entre a vida e a morte, a cena remete aos tempos do império romano quando gladiadores se confrontavam até a morte no Coliseu, não por acaso o ambiente do filme no qual a cena final se desenrola faz lembrar a famosa arena romana. Assim como no Império os romanos decidiam a sorte do derrotado com um gesto do polegar, no filme, os observadores tem que decidir também sobre o destino de Vee com um toque no celular, clicando em ‘Sim’ ou ‘Não’ para a morte da adolescente. 

Rina Palenkova cometeu suicídio ao jogar-se nos trilhos de um trem aos 17 anos, situação análoga retratada no filme ‘Nerve’    

Suicídio como grito de alerta


Assim como o jogo baleia azul surgiu envolto em indefinições e boatos, também não há uma explicação oficial sobre a origem de seu nome, no geral associa-se ao histórico desses cetáceos de encalharem nas praias em grupo, geralmente por desorientação ou seguirem um líder doente, interpretado erroneamente como um suicídio coletivo. O fato de seguirem um líder pode-se relacionar ao funcionamento do jogo no qual um curador seria o responsável em conduzir o jogador, verificando a execução das tarefas e determinando as próximas a serem executadas até finalmente induzi-lo a morte no final do jogo. 

Outra interpretação que se faz é associar a baleia às imersões que realiza a grandes profundidades no oceano, sugerindo assim que o jogador está no fundo do poço, por baixo, imerso em sua dor e profundamente deprimido. Quanto ao azul, ele tradicionalmente refere-se a tristeza, melancolia e depressão. É também a mais fria das cores, porém, a mais atraente. É a cor do infinito, dos sonhos, dos introvertidos e remete também às emoções profundas e eternas.

Dessa forma podemos associar o conceito de Baleia Azul ao comportamento de pessoas que se encontram desorientadas, inseguras, fragilizadas e facilmente manipuláveis por viverem um momento difícil de muita depressão, melancolia e tristeza, portanto, com todos os sintomas típicos de um potencial suicida. Não é à toa que as supostas vítimas do jogo sejam, predominantemente, compostas por pré-adolescentes, adolescentes e jovens, ou seja, pessoas em idade de transformação física e psicológica, de afirmação pessoal e muita pressão social por definição de seu papel na sociedade.


Cena do filme “Nerve” no qual um jogador recebe como desafio de seus observadores atravessar uma linha de trem (metrô). A semelhança com o suicídio da adolescente russa permite levantar a suspeita de que a Baleia Azul pode ser uma jogada de marketing desse filme.

A arte imita a vida


A série televisiva estadunidense 13th Reasons Why sucesso recente de audiência mundial, baseado no livro Os 13 Porquês de Jay Asher, retrata bem esse drama, e assim como o jogo da Baleia Azul provocou, e ainda provoca, acaloradas discussões sobre a influência da mídia no comportamento de jovens e adolescentes, levantando uma série de medidas cautelares para que os país pudessem reconhecer em seus filhos os sinais de um comportamento suicida.

A Pequena Loja de Suicídio (Le Magasin des Suicides, 2012) é uma animação francesa de Patrice Laconte, que aborda de forma explícita e com muito humor negro a temática do suicídio. A trama se passa em uma cidade extremamente triste e depressiva. Em um ambiente sempre cinza e chuvoso com pessoas melancólicas e apáticas os suicídios são tão recorrentes que o governo estipula até uma multa para quem sobrevive a uma tentativa frustrada de tirar a própria vida.

É nesse clima mórbido que uma família vê a oportunidade de ganhar dinheiro e cria uma loja onde são comercializados os mais diversos e imaginativos artigos para suicidas. Assim surge a Casa Tuvache, uma pequena loja que promete aos seus clientes “uma morte requintada”, cujo lema é: “Ajudá-lo a Morrer é a Nossa Felicidade” (Essa animação já foi tema aqui do Cinegnose, para saber clique aqui).


Imaginando agora o Jogo da Baleia Azul, o filme Nerve e a série americana como mercadorias (como de fato são) dentro da animação francesa, essas obras certamente estariam em alguma prateleira e seriam comercializadas pela pequena loja de suicídio, a Casa Touvache. Aqui a arte imita a vida, pois além de terem o suicido como tema principal, as três produções visam, em última instância, fama e dinheiro. Mas não é só isso, afinal, o mundo retratado por Patrice Laconte não está muito distante de nossa realidade hoje.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), levantados em 2016, a cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo. Curiosamente a idealização dessas obras ocorreram no período e a partir da divulgação desses dados.

Oportunismo (tal qual a Casa Touvache?), ou seria tudo um fenômeno sincromístico nascido, dentre outras coisas, da ameaça cada vez mais iminente de um conflito mundial nuclear devastador e de proporções épicas, ventilada pela mídia regularmente. O suicídio a partir dessa realidade opressora e fatalista não parece algo tão sem sentido assim afinal.

De qualquer forma e apesar das inúmeras definições e concepções elaboradas pelo Homem sobre a morte e o suicídio, lançaremos mão aqui, para finalizar, a célebre frase de um cientista: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.” - Antoine Laurent de Lavoisier, Pai da Química Moderna (1743-1794). 

Simples em sua formulação mas profundo em seu significado, podemos por analogia, com essa frase buscar algum sentido tanto para a Vida em suas infinitas expressões, quanto para a Morte em seus infinitos mistérios.

Referências da Internet:



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