quinta-feira, novembro 04, 2010

A Experiência Cinematográfica pode ser Transcendente? - 3: Estratégias de neutralização

Nessa terceira e última postagem da nossa trilogia sobre a possibilidade de uma experiência transcendente no cinema, vamos mapear as principais estratégias pelas quais a indústria do entretenimento confina, neutraliza ou, simplesmente, impede que a experiência transcendente aconteça no evento cinematográfico.

Encerramos a postagem anterior afirmando que o prazer do espectador envolve um duplo vínculo entre o fascínio pelos conteúdos arcaicos (arquétipos, transcendência etc.) e estruturas narrativas que impedem que experiências potencialmente transcendentes sejam desenvolvidas.

Em termos sócio-políticos, esse duplo vínculo se traduz no drama da quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem: por um lado, o desejo de quebrar a rotina, fugir do tédio do cotidiano em busca de uma experiência arrebatadora; e do outro a necessidade de manter o equilíbrio psíquico necessário para o cumprimento dos deveres e obrigações em um mundo cada vez mais instável e competitivo.


sábado, outubro 30, 2010

A Experiência Cinematográfica pode ser Transcendente? - 2: O Prazer do Espectador

Dando continuidade a nossa trilogia de postagens sobre a transcendência e experiência cinematográfica vamos nos deter no duplo vínculo que envolve o prazer cinematográfico: monotonia versus princípio do prazer, profano versus sagrado, tédio versus fascinação, arquétipo versus civilização. A articulação desses dois pólos dentro da narrativa fílmica é uma ritualística que mimetiza o drama da quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem. Por trás do prazer do espectador cinematográfico esconde-se o conflito potencial entre o espírito humano que aspira por transcendência e a ordem social e política que procura o oposto: o controle e a estabilidade.

Toda estrutura da obra de arte busca ultrapassar a si mesma. Vimos na postagem anteriora que o cinema, da mesma forma, contém elementos que buscam transcender o próprio meio. Por ser o cinema, desde o início, uma síntese criativa de diversas artes ou mídias (fotografia, pintura, literatura, música etc.), sua evolução estética e tecnológica força os limites das regras do ambiente perceptivo.

terça-feira, outubro 26, 2010

A Experiência Cinematográfica pode ser Transcendente?

Aproximar o conceito de “transcendência” de Theodor Adorno (a experiência da alteridade, do “inteiramente outro”) com a experiência de transcendência como evento espiritual ou místico decorrente de um estado alterado de consciência é o desafio para a pesquisa atual sobre as conexões entre o Cinema e o Audiovisual com o Sagrado e Religioso. Se, como em toda obra de arte, o cinema busca ultrapassar a si mesmo ("transcendência"), talvez aí esteja uma explicação para o crescente interesse dos roteiros fílmicos pelo fantástico, o espiritual, o sincrônico, o místico e o gnóstico.

Quando Adorno apontava para a alteridade e transcendência contidas na arte, ele aproximava-se da temática central da Teologia Negativa: a busca do “inteiramente outro”, do “plenamente diferente”, do “diferente por excelência”, ou seja, aquilo que está além da representação. Adorno pensava o conceito de transcendência não no sentido religioso como epifania ou experiência mística de fato, de uma forma positiva. 

sábado, outubro 23, 2010

Sophia e a Gnose são derrotados pelo Clichê no filme "Sonhando Acordado"

Tom de falso documentário, sonhos como uma realidade paralela, frases com filosofias gnósticas e a personagem mítica de Sophia interpretada por Penélope Cruz nos fazem pensar estarmos diante de um novo Vanilla Sky, ou seja, um filme gnóstico e crítico. Engano! Todos esses elementos de fantasia presentes nesta comédia romântica servem para, além de sintonizar o filme com a agenda tecnognóstica vigente em Hollywood, aprisionar os potenciais elementos transcendentes e críticos no velho clichê da "quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem".

Gary (Martin Freeman) é um músico talentoso, porém frustrado por fazer jingles para campanhas publicitárias. No passado foi músico de rock pop, até a banda acabar e ver seu parceiro de composições de sucesso (Paul - Simon Pegg) se tornar bem sucedido financeiramente no campo da Publicidade, enquanto ele se deprime numa atividade profissional frustrante e sua vida conjugal cada vez pior, vítima da sua melancolia e depressão crescentes.

domingo, outubro 17, 2010

Uma "teologização" do Espiritismo no filme "Nosso Lar"

Se aspectos da divisão do trabalho na produção e o meio de distribuição e produção influenciam a estética e conteúdo do filme, então "Nosso Lar" é um bom exemplo. Para adequar o livro original às exigências internacionalizadas de produção e distribuição, "Nosso Lar" teologiza o Espiritismo e o enquadra dentro de um "ecumenismo pós-moderno" da ideologia da nova ordem mundial globalizada.

Muito se discute nos estudos acadêmicos sobre cinema como o meio produtor dos filmes (grupo de autores, técnicos, colaboradores da criação) ou os aspectos socioeconômicos (filme de produção independente ou não, aspectos de distribuição etc.) influenciam ou condicionam os conteúdos das produções.

O que mais vem chamando a atenção na área das pesquisas cinematográficas nas últimas décadas são as consequências da crescente internacionalização e globalização da divisão do trabalho da produção cinematográfica.

sexta-feira, outubro 15, 2010

Ciclismo e Estado Alterado de Consciência: Gnose no Esporte?

Qual a representação do imaginário da bicicleta na cultura pop? Para nossa surpresa encontramos uma conexão entre o estado de consciência que a bicicleta proporciona (pela seu singular design que funde homem e máquina) e o gnosticismo de Basilides: o estado mental de "suspensão" que permite silenciar o ruído da linguagem para que ouçamos o espírito que busca a Gnose.

Basilides, um dos primeiros professores gnósticos em Alexandria, Egito, no século II da Era Cristã, nutria uma radical desconfiança em relação à capacidade da linguagem apreender a realidade. Sua teoria pode ser resumida na ideia da Grande Negação: se a verdade sobre Deus está além do conhecimento humano, a negação do conhecimento e da linguagem é o sagrado caminho.

No seu escrito “Sete Sermões aos Mortos” Basilides afirma que diante da plenitude (Pleroma – a origem de onde tudo foi emanado) “pensamento e existência cessam porque o eterno é desprovido de qualidade”. O mundo criado (o cosmos físico), ao contrário, é regido pelo princípio de “diferenciação” onde aquilo que era uno é cindido em qualidades opostas. Através da linguagem e do conhecimento o homem torna-se obcecado em apreender as qualidades do devir nomeando-as através de conceitos e palavras uma realidade que é difusa, fluída, relativa. Se as qualidades do Pleroma são pares opostos que se anulam mutuamente (a união dinâmica dos opostos: plenitude/vazio, belo/feio, tempo/espaço, energia/matéria etc.), ao contrário, a linguagem humana as diferencia, discrimina, tonando-nos vítimas dos pares de opostos.

O resultado é o Mal: na busca do Belo, o homem produz o feio; na busca da paz acaba produzindo a guerra, na busca do eficaz por meio da tecnologia acaba produzindo a inutilidade, etc. Essa reversão irônica da linguagem (a não transitividade entre linguagem e realidade) acaba tornando o homem prisioneiro dos próprios conceitos e palavras, não conseguindo ouvir, dentro de si, a reminiscência do Uno, do Pleroma, da plenitude original que o uniria a Deus.
“O que não deveis esquecer jamais é que o Pleroma não tem qualidades. Somos nós que criamos essas qualidades através do intelecto. Quando lutamos pela diferenciação ou pela igualdade, ou por outras qualidades, lutamos por pensamentos que fluem para nós a partir do Pleroma, ou seja, pensamentos sobre as qualidades inexistentes do Pleroma. Enquanto perseguis essas idéias, vós vos precipitais novamente no Pleroma, chegando ao mesmo tempo à diferenciação e à igualdade. Não a vossa mente, mas o vosso ser constitui a diferenciação. Eis por que não deveríeis lutar pela diferenciação e pela discriminação como as conheceis, mas sim por VOSSO PRÓPRIO SER. Se de fato assim o fizéssemos, não teríeis necessidade de saber coisa alguma sobre o Pleroma e suas qualidades e, ainda assim, atingiríeis o vosso verdadeiro objetivo, devido à vossa natureza. No entanto, como o raciocínio aliena-vos de vossa real natureza, devo ensinar-vos o conhecimento para que possais manter vosso raciocínio sob controle.”(BASILIDES, “Sete Sermões aos Mortos” disponível em: http://www.gnosisonline.org/teologia-gnostica/sete-sermoes-aos-mortos/)

Por isso Basilides propõe um singular estado de consciência: o silêncio, o estado de “suspensão”, o esvaziamento da mente por meio da suspensão de toda atividade dos mecanismos de abstração da linguagem (diz-se que os discípulos de Basilides eram obrigados, como ritual de iniciação, a ficarem em silêncio por três anos...). Manter o “raciocínio sob controle”, lutar “contra a diferenciação”. Com esses termos Basilides refere-se a um estado de suspensão entre os pares opostos, o “tertium quid”, o terceiro elemento que solde as qualidades.


A Experiência da Bicicleta: estado de "suspensão"


E o que essa longa introdução tem a ver com ciclismo? Se fizermos um sobrevoo nas representações da cultura pop em relação à bicicleta e ciclismo, veremos que essa prática desportiva e meio de transporte ocupa uma posição especial, uma especial confluência entre especiais estados de consciência e esforço físico, corpo e mente.

Um primeiro exemplo é o Kraftwerk (grupo pop alemão considerado os padrinhos da música Techno e industrial), cujos membros são apaixonados pelo ciclismo e que, a partir do mecanismo, ergonomia e design da bicicleta, destilaram o “ethos” da sua proposta musical: a união entre Homem, Máquina e Natureza. Certa vez, um dos integrantes do grupo, Ralf Hütter, fez a seguinte afirmação após a elaboração do clássico single “Tour de France” de 1983: “a bicicleta é mais do que um mero instrumento de lazer, é algo mais próximo da declaração política. Não é para férias, É o homem-máquina. Sou eu, o homem-máquina na bicicleta. Velocidade, equilíbrio, uma certa liberdade de espírito, manter a forma, técnica e perfeição tecnológica, na aerodinâmica”.

Para ele, a bicicleta é em si um instrumento musical: o som ritmado da corrente, engrenagens, a respiração e batimento cardíaco, tendo como fundo o som contínuo “shhhhhh” do contado do pneu no asfalto. Tal como um mantra, confere uma “liberdade ao espírito” ao esvaziar a mente, seja pela repetição de sons e movimento, seja pelo esgotamento físico.

Aqui podemos fazer uma surpreendente conexão entre Basilides e a bicicleta: o estado de consciência de suspensão na bicicleta é, ao mesmo tempo, simbólico e literal. Montar na bicicleta e se deslocar velozmente como se estivesse suspenso e, ao mesmo tempo, o som ritmado do corpo e do mecanismo anulando o trabalho mental.

Por experiência própria, é surpreendente os “insights” ou ideias que, paradoxalmente, advém desse vazio mental. A união dos opostos. Assim como na criação por brainstorming onde um estado caótico de ideias desconexas produz, ao longo do tempo, uma massa crítica que, de repente, produz um salto qualitativo: do nada, do caos, surge repentinamente a ordem, uma ideia.

É como se o barulho da atividade mental racional e cotidiana não nos deixasse ouvir as camadas mais profundas do nosso interior. É necessário silenciar a mente, nem que seja por meios violentos como no filme “O Clube da Luta”: a luta tem um aspecto de disciplina, ascese, tal qual um mantra onde os pensamentos e a racionalidade são subjugados à disciplina da repetição até que se convertam no oposto: o estado de suspensão de sentido para a libertação da consciência.

Músicas como “Bicycle Race” do Queen apontam para esse silêncio da racionalidade.
Você diz preto eu digo branco
Você diz barca eu digo picada
Você diz tubarão eu digo ei, cara
Tubarão nunca foi minha cena
E não gosto de “Guerra nas Estrelas”
Você diz Deus dê-me uma escolha
Você diz Deus eu digo Cristo
Eu não acredito em Peter Pan, Frankenstein ou Super Homem
Tudo o que quero fazer é
Bicicleta, Bicicleta, Bicicleta
Eu quero montar na minha bicicleta
Conceitos, escolhas, palavras são como ruídos que impedem a liberdade do espírito ouvir a si mesmo, suas reminiscências que o faça se conectar de volta à plenitude.

Esvaziamento da mente e liberdade de espírito alcança o estado alterado de consciência que chega à catarse e transcendência que altera a maneira como enxergamos a relidade, como na música “Bicycle, Bicycle, You are my Bicycle” da banda "Be Your Own Pet":
Vamos mudar a cor dos olhos
De cada senhora
Somos rápidos, nós somos rápidos
Somos rápidos, estamos explodindo
Tudo porque

Estamos sobre duas rodas, garota
Estamos sobre duas rodas, garota

Mude as cores da sua maquiagem
Todos os dorminhocos vão acordar
Tudo porque todos, porque todos, porque
Porque, porque ...

Sem engrenagens, sem freios
Nada real, nem falso

Transcender ao ponto das engrenagens e freios da bicicleta desaparecerem. Tal liberdade conduz à suspensão: nada real e nem falso, a busca de uma experiência que supere o dilema dos pares opostos, da armadilha que a linguagem e o conhecimento não conseguem se libertar. Ir além das engrenagens e freios (razão e linguagem).

A arquetípica figura em contra-luz de um ser extraterrestre montado em uma bike BMX no pôster do filme ET de Spielberg é uma síntese das representações pop em torno do imaginário da bicicleta: suspenso no ar tendo a Lua como fundo. A representação icônica de todo um imaginário gnóstico que envolve a bicicleta: suspensão como um estado alterado de consciência que possibilite o silêncio que nos faça ouvir a voz íntima da gnose.

segunda-feira, outubro 11, 2010

Os sonhos contra-atacam no filme "Sonhando Acordado"

Rompendo com a tradição romântica do cinema que vê o universo onírico sempre submetido ao píncípio da realidade, em "Sonhando Acordado", Michel Gondry anarquicamente inverte a fórmula, ao apresentar os sonhos subvertendo a realidade. Ao partir do princípio freudiano da "teoria das sentinelas", Gondry mantém sua crítica às "tecnologias do espírito" apresentada no filme anterior "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças"(2004).

Ao escrever e dirigir “Sonhando Acordado” (La Science dês Rêves, 2006), o francês Michel Gondry continua afiado em seu posicionamento crítico em relação às chamadas “ciências do espírito” (neurociências e toda a gama de subprodutos de técnicas e terapias que prometem felicidades e realização pela autoprogramação da mente).

Se em “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) ele satiriza as tecno-ciências que pretendem trazer a felicidade mediante o apagamento das memórias “ruins”, para que prossigamos em frente sem culpas ou mágoas, em “Sonhando Acordado” Gondry foca na defesa do sonho diante de toda tentativa da realidade em domesticá-lo para atender às suas finalidades.

Stéphane Miroux (Gael Garcia Bernal) faz um rapaz que retorna à Paris sob a promessa de sua mãe que lhe arranjara um emprego supostamente criativo como ilustrador. Stéphane, segundo sua própria definição, nunca consegue terminar nada a que se propõe e vê nesse novo emprego uma chance de se firmar na vida. Mas o emprego é uma chatice e nada criativo, na verdade apenas fazer past up para produção de calendários populares com mulheres nuas. Ao mesmo tempo, começa a flertar com a nova vizinha, Stephanie (Charlotte Gainsbourg). Com a ajuda desajeitada do colega de trabalho Guy (Alain Chabat), tenta conquistá-la, mas sem resultados.

O problema de Stephane é que ela “sonha acordado”, na verdade ele vive em constantes sonhos lúcidos que misturam sonho e realidade, dificultando a interação com as pessoas. Consciente do problema, inicia uma espécie de investigação (a “ciência do sono”, do título original) com direito inclusive a um talk-show onírico onde discorre sobre receitas de sonhos, recebe convidados, tudo na tentativa de descobri um porquê.

A primeira sequência do filme é impagável: o talk-show da Stephane TV, dentro da cabeça do protagonista, onde Stephane apresenta em um estúdio com câmeras de papelão e parede de caixas de ovos. Ele procura encontrar os ingredientes dos sonhos, resultando na fórmula que será base da sua “ciência do sono” que tenta entender e aplicar ao longo do filme:
“Como podem ver, é a combinação de ingredientes complexos. Primeiro, inserimos os pensamentos. Logo, acrescentamos um pouco de reminiscências do dia misturadas a algumas lembranças do passado. De duas pessoas. Amor, amizade, relações, e todos esses tipos, com canções ouvidas durante o dia e coisas que viram. E também, com um toque pessoal... Certo, certo. Acho que já é um... Já funcionou, sim! Sim...”

E vai jogando todos os ingredientes numa panela como um programa de receitas culinárias.

Ao longo da narrativa, quanto mais tenta controlar os sonhos para se adaptarem às exigências da realidade, mais realidade e sonho se confundem, agravando os problemas do protagonista. Entre as suas invenções malucas para entender o porquê dos sonhos e as complexas relações da mente com o encadeamento dos fatos inventa uma máquina de controlar o tempo que antecipa e atrasa alguns segundos da vida e uma técnica de controlar o sono REM com fios fixados nas órbitas dos olhos.

Dentro das cenas dos seus sonhos (engenhosamente elaboradas em animações stop motion com papelão, papel-machê, céus com algodão e água em papel celofane) ele tenta controlar os elementos da fórmula descrita no talk-show da abertura do filme, porém, cada vez menos bem sucedido.

Como vimos em postagens anterioras (veja links abaixo), essa é a ambição da atual agenda tecnognóstica: escanear, mapear e, no final, apresentar uma cartografia e topografia da mente para aplicação prática de controle e a mais fácil inserção de programações, ideias e memes nas mentes. Em referência a esta ambição tecnognóstica, as falas de Stephane são carregadas de termos que lembram física quântica e neurociências: “é simplesmente uma aplicação da teoria do caos”, “Causalidade Paralela Sincronizada”, “vínculo complexo” etc.

Suas invenções são ironizadas pela vizinha Stephanie como, por exemplo, quando o protagonista apresenta óculos para ver tudo em 3-D: “Mas a vida já não é em 3-D?”, pergunta Stephanie diante da inutilidade da invenção.

Freud e os mecanismos de defesa do sono

A originalidade do filme “Sonhando Acordado” está em apresentar um novo viés no confronto Sonho X Realidade, velho tema da história do cinema: tudo sempre gira em torno do choque ou confronto entre as duas esferas e dos mecanismos conspiratórios da Realidade (Estado, Governos, Cientistas etc) mobilizados para dominar e derrotar o mundo onírico. Por exemplo, os filmes de Terry Gilliam (“Brazil, o Filme”, “O Pescador de Ilusões” ou o recente “O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus”) insistentemente abordam esse tema comum, resultando numa abordagem romântica onde o mundo onírico e da imaginação sempre perde no confronto com o mundo frio e cruel da racionalidade.

Ao contrário, “Sonhando Acordado” apresenta a reação dos sonhos onde, através de um engenhoso mecanismo de defesa, vai incorporando os estímulos da realidade exterior até incorporá-la dentro da lógica onírica, conduzindo à vitória final.

Esse “mecanismo de defesa” é a chamada “teoria das sentinelas”, apresentada por Freud na abertura do seu livro “A Interpretação dos Sonhos” e, por muito tempo, ignorado. Desse livro de Freud, o que sempre foi colocado em destaque foi a interpreção simbólica dos sonhos por meio das condensações e deslocamentos. Mas o que primeiro chamou a atenção de Freud foram conteúdos dos sonhos que tinham a ver com elaborados mecanismos de proteção do sono contra fatores perturbadores internos (desde dores de cabeça ou preocupações) ou externos (barulhos de trovões ou sons de relógios despertadores).

Por exemplo, se o despertador toca é muito comum o sonho disfarçar a campainha de alarme, tecendo com ela um história qualquer...Você está na igreja, com os sinos tangendo; ou então num escritório, onde um telefone estridente reclama que o atendam". Dado o estímulo, o sonho cria o cenário, fornece atores e adereços para as cenas, tudo isso extraído das experiências e impressões do dia-a-dia de quem está dormindo. O sono é uma necessidade fisiológica e o sonho tenta protegê-lo.

Parece que Gombry inspirou-se nessa característica dos conteúdos dos sonhos para apresentar a reação do universo onírico frente a invasão da realidade. Como grita, a certa altura do filme, a personagem Stephanie: “Anarquia para os Celofanes!” para defender a supremacia dos sonhos sobre a Realidade. Quanto mais a narrativa avança, os sonhos vão se sobrepondo à realidade, dando uma continuidade onírica a cada evento do mundo real. Quando, por exemplo, Stephanie abre a torneira e sai água em papel celofane. A cada estímulo externo, o mundo onírico responde incorporando-o para dar a continuidade dentro do sonho, até dominar a realidade e o protagonista cair no sono final.

A “ciência do sono” é derrotada na vã esperança de tornar produtivas as relações do protagonista no mundo real (no amor, no trabalho, na família). É a defesa do sonho e do inconsciente frente ao assalto das tecnologias do espírito tecnognósticas. Portanto, ANARQUIA PARA OS CELOFANES!

Ficha técnica
  • Filme: Sonhando Acordado (La Science dês Rêves)
  • Direção: Michel Gondry
  • Roteiro: Michel Gondry
  • Elenco: Gael Garcia Bernal, Charlotte Gainsbourg, Alain Chabat, Miou-Miou
  • Produção: Gaumont, France 3 Cinema, Partizan Films
  • Distribuição: Warner Independent Pictures
  • País: França, Itália
  • Ano: 2006



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sexta-feira, outubro 08, 2010

Livros "Cinegnose" e "O Caos Semiótico" lançados na Universidade Anhembi Morumbi

Entre as várias palestras e atrações do Encontro de Comunicação da Universidade, os dias 6 e 7 de outubro foram marcados pelo lançamento dos livros "Cinegnose" e "O Caos Semiótico" para a comunidade docente e discente. Em edições sob demanda ("on demand") em breve os títulos estarão disponíveis para venda em sites como da Livraria Cultura e da Giz Editorial, inclusive em versão e-book. Aguarde!

Os livros “Cinegnose” e “O Caos Semiótico” tiveram o seu debut no Primeiro Encontro de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. Anderson Meneses, seguidor desse humilde blog, foi o primeiro a adquirir um exemplar do “Cinegnose”. Entusiasmado, falou que vai lê-lo detalhadamente para partilhar suas opiniões através de comentários nesse blog.

Pela natureza paradidática do livro, “O Caos Semiótico” foi bastante procurado pelos alunos do curso de Comunicação. Bem conhecido por ex-alunos, agora é re-lançado em uma nova versão atualizada e ampliada para ser aplicado em sala de aula, tanto nas aulas de Comunicação Visual como na disciplina Estudos da Comunicação.

Já o livro “Cinegnose” chamou a atenção do corpo docente pelo ineditismo do tema: a
confluência entre gnosticismo e cinema. Esse livro é o primeiro dentro da bibliografia nacional a explorar esse tema dentro do campo da produção cinematográfica, audiovisual e cultura pop. Embora seja um tema já conhecido e discutido entre pesquisadores norte-americanos e europeus (Erik Davis, Erik Wilson, Victoria Nelson etc.) ainda no país essa discussão é incipiente.

Ambos os títulos foram impressos em processo digital e sob demanda (“on demand”). Portanto, o livro brevemente poderá ser adquirido através da Internet pelo sites da Livraria Cultura e da Giz Editorial. Também estará disponível para venda no site da editora a versão e-book dos títulos.

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sábado, outubro 02, 2010

Noites de Lançamento dos livros "Cinegnose" e "O Caos Semiótico"

Os livros "Cinegnose" e "O Caos Semiótico", cujo autor é esse humilde blogueiro que lhes escreve, terá seu lançamento dentro da programação do I Encontro de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, nos dias 06 e 07 de outubro. O evento é aberto para o público, em especial para os seguidores e leitores desse Blog. Estão todos convidados!

Finalmente teremos as noites de lançamento e autógrafos dos livros "Cinegnose" e "O Caos Semiótico", pela Giz Editorial de São Paulo. Ocorrerão nos dias 06 e 07 de outubro dentro do I Encontro de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. No dia 06 o evento começará às 21h na sala 511B, no primeiro andar do prédio da Unidade 5 no Campus Vila Olímpia (Rua Casa do Ator, 294). No dia 6, o evento ocorre no mesma unidade, dessa vez na sala 515 (também no primeiro andar) com início também às 21h.

O livro "Cinegnose: a Recorrência de Elementos Gnósticos na Recente Produção Cinematográfica Norte-americana" é o livro que deu origem a esse blog. O livro é a dissertação de Mestrado defendida na Pós em Comunicação Contemporânea (Análise de Imagem e Som) da Universidade Anhembi Morumbi-São Paulo no ano passado.

Nesse trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana recente (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados em narrativas míticas do Gnosticismo (conjunto de seitas sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos da era cristã).

Temos a frequência de temas como conspirações cósmicas, universos paralelos, amnésia e paranóia, além da ambivalente relação entre o sujeito e a realidade, consciência (especialmente alterada por estados de consciência iluminados) e revolta contra sistemas autoritários de controle. Filmes como Cidade das Sombras (Dark City, 1998), a Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998), Show de Truman (Truman Show, 1998), Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001), entre outros, apresentam uma idéia geral de que o mundo que percebemos é uma ilusão criada por alguém que não nos ama e que a chave para revelar a ilusão e descobrir a realidade reside numa forma de autoconhecimento ou iluminação. Uma pista para descobrirmos essa conexão entre gnosticismo e cinema passa pela discussão entre misticismo e imaginário tecnológico. Esse período da produção cinematográfica norte-americana refletiria um imaginário tecnológico que alguns autores definem como “gnosticismo tecnológico” ou “tecnognose” (veja o Sumário do livro abaixo).


O Caos Semiótico

Já o livro "O Caos Semiótico - Ensaios Críticos de Estudos da Comunicação" é um relançamento, atualizado e ampliado. Lançado em 1996 teve duas edições pela Editora Terra. Esgotado o livro, não houve tempo para uma terceira edição com o fechamento da Editora Terra lá pelos idos de começo desse novo século.

Bem conhecido entre meus alunos da Universidade Anhembi Morumbi, passou, então, a frequentar sebos reais e virtuais na Internet e diversas cópias digitais em PDF.

Pois bem, finalmente teremos um relançamento com uma versão atualizada e ampliada. Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno”( veja abaixo o Sumário do livro).

A novidade é o último ensaio do livro: “Tecnognose: do Vale do Silício à Hollywood”. Foi um artigo apresentado no II Simpósio Nacional da ABCIBER – Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura realizado em outubro de 2008 na PUC/SP. Esse trabalho foi o ponto de partida de um projeto desenvolvido no Mestrado em Cinema da Universidade Anhembi Morumbi sobre como o imaginário místico (ou gnóstico) por trás novas tecnologias computacionais vão contaminar a produção cinematográfica da recente produção norte-americana nos aspectos temáticos, narrativos, iconográfico e simbólico.


Lançamento dos livros "Cinegnose" e
"O Caos Semiótico"
  • Dia 06/10/2010 - 21h às 23h na sala 511B (primeiro andar) Unidade 5 Campus Vila Olímpia.
  • Dia 07/10/2010 - 21h às 23h na sala 515 (primeiro andar) Unidade 5 no Campus Vila Olímpia.
  • Local: I Econtro de Comunicação - Universidade Anhembi Morumbi (Rua Casa do Ator 294, Vila Olímpia, São Paulo).
Sumário do livro "Cinegnose"


Sumário do livro "O Caos Semiótico"


sexta-feira, setembro 24, 2010

"Neon Genesis Evangelion": a Ascensão do Gnosticismo nas Animações Japonesas

Assim como os ocidentais absorvem religiões orientais pelo estilo exótico e fluidez, os orientais parecem adotar as tradições abraâmicas. Tais tradições mitológicas parecem traduzir melhor os mundos distópicos e ultra-violentos de batalhas futuristas das narrativas das "Animes" japonesas. Neon Genesis Evangelion, por exemplo, é uma verdadeira enciclopédia de temas do Gnosticismo clássico, onde o homem se confronta com divindades insanas e indiferentes na luta pela posse dos elementos remanescentes das origens do Cosmos.

Abaixo apresentamos uma tradução de parte do artigo de Miguel Conner "Gnostic Themes in Japanese Anime", publicado no site "Exanimer.com National". O texto didaticamente sintetiza o Gnosticismo em quatro mitos básicos (Mito do Demiurgo, da Alma Decaída, do Salvadore do Feminino Divino) que são explorados pela Ficção Especulativa, desde filmes clássicos como Matrix até as Anime (animações) japonesas. Além disso, Conner procura entender o porquê da ascensão dos temas gnósticos na cultura pop japonesa.

Miguel Conner é escrtor de ficção científica norte-americano e apresentador do programa "Aeon Byte Gnostic Radio" uma Internet Radio com entrevistas e debates semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop.

Temas Gnósticos nas Animes Japonesas
Miguel Conner


Ao contrário da maioria das religiões, o Gnosticismo não consegue limitar a sua heresia à bidimensionalidade do papel. Além da verdadeira ausência de uma canonização, seu caráter sincrético e parasitário permitiu o espírito do gnosticismo se manifestar ao longo da história por meio de diversas mídias. Além disso, a gnose (o despertar do conhecimento divino) é muitas vezes melhor servida através das expressões artísticas de cada época. Mago Simon, Valentino, Mani, WB Yeats e William Blake eram poetas tão sofisticados como também criadores de blasfêmias.



Nos tempos atuais, o gnosticismo foi reativado tanto pela popularidade da Ficção Especulativa como também pelas descobertas da Biblioteca de Nag Hammadi e do Evangelho de Judas. A Ficção Especulativa talvez seja o veículo ideal para a teologia gnóstica já que ambos se baseiam fortemente na psicologia, mitologia e estados alterados de consciência.


Mais do que um veículo, Gnosticismo e Ficção Especulativa são muito mais do que a Câmera Nupcial Valentiana, um casamento feito nos infernos da audácia artística onde, muitas vezes, não se tem consciência de se estar mergulhando nas nascentes Sethianas e Valentianas. Isto é evidente na frenética tempestade digital dos irmãos Wachowski, em Matrix, uma visionária exploração da ficção de Philip K. Dick, ou, então, os delírios alquímicos encontrados nas HQs de Alan Moore. Bastante se tem escrito sobre essas e outras expressões gnósticas contemporâneas.


Mas o que se tem dado pouca atenção é um já amadurecido campo de Gnosticismo numa forma semi-underground de ficção especulativa diferente do ocidente, uma espécie de masturbação mental sexo-masculino-adolescente com símbolos fálicos em forma de robôs gigantes, entre Aphrodites, distópicos mundos alternativos e ultra-violentos e catárticos ciber punks.

É a Anime (definido por Merriam-Webster como “estilo de animação originário do Japão que se caracteriza por gritantes gráficos coloridos retratando personagens vibrantes em ações frequentemente preenchidas por temas do fantástico e futurismo”).


Há pouca evidência de que esse fenômeno seja proposital. Há provavelmente duas razões para o Gnosticismo se encontrar com a animação japonesa (além do fato óbvio de que a Anime já é flagrantemente sincrética e parasitária com sua frenética agitação de produtos que fogem da estética Bollywood para buscar uma audiência mundial).


A primeira razão é que, sem os mandamentos da comercialização de Hollywood, a imaginação dos escritores e animadores japoneses está mais desapegada, permitindo ir a fundo nos poços da psicologia, mitologia e estados alterados de consciência.


A segunda tem a ver com o romance. Assim como os ocidentais absorvem elementos místicos de religiões por causa do seu estilo exótico e fluidez, os orientais parecem adotar as vertentes esotérica das tradições Abraâmicas que melhor traduzem as intensas fantasias policromáticas das paisagens Anime. A história revela que simbolismo ocultista e narrativa, uma relação tão incompreendida, cria ficções muito poderosas (a sedução da Alemanha pela filosofia oriental no século XIX poderia ser um óbvio exemplo).


Antes de abordarmos os evangelhos gnósticos em que se tornaram as séries de Anime, vamos fazer uma breve exposição da mitologia Gnóstica através de um sintético quadro:


1. O Mito do Demiurgo: A Criação, o Mundo ou a própria realidade é controlada por uma divindade inferior e os seus agentes. Esses anjos (ou arcontes) lançaram um véu de ilusão, ignorância ou desespero existencial sobre aqueles que procuram dominar (e às vezes se alimentam). No gnosticismo clássico, o caráter do Deus do Antigo Testamento era um modelo preferido para o vilão extramundano. Ele é muitas vezes referido como o Demiurgo. Nos evangelhos gnósticos pós-modernos, o Demiurgo não tem necessariamente de ser um antagonista do divino, mas pode assumir a forma de qualquer entidade opressora incluindo ETs , tecnologias opressoras e até mesmo as instituições humanas.Tudo se resume a questão do controle humano versus a liberdade humana. Esse mito inflama a questão sobre o que é real e o que é falso em intrincados níveis ontológicos (ou dimensões).


2. O mito da alma decaída. A ideia de que a semente divina, proveniente de um lugar chamado Pleroma (ou Plenitude) tenha caído em um mundo estranho. Este esperma-luz, a matéria prima da auto-realização, reside dentro de cada mortal, também conhecida como “centelha-divina”. É exatamente pela qual que as criaturas espirituais do Demiurgo anseiam ou querem corromper. Descansando no sono ou estupor, a jornada épica começa verdadeiramente quando um mortal descobre ou é escolhido para realizar o seu potencial transcendental. Uma guerra de libertação tende a entrar em erupção. No Anime e na ficção especulativa normalmente envolve uma agitação do protagonista durante a vigília por algum poder latente ou um presente que o obrigue a cumprir um destino heróico. Este mito provoca a pergunta do que é ser consciente e os níveis de consciência que o ser humano pode chegar.

3. O Mito do Salvador. Pode assumir duas formas. O primeiro é que após o despertar para a sua constituição sobrenatural, o protagonista não deve apenas salvar aqueles ao redor dele dos poderes que criaram o regime ilusório, ele deve também divulgar o conhecimento (gnose) para os outros, para que possam compartilhar as mesmas liberdades ou descubram habilidades semelhantes. A segunda forma é que uma figura salvadora precisa de outra figura salvadora, pois a relação de um hierofante para um neófito é central no Gnosticismo (a ocidental caricatura do professor sábio oriental ajudando o herói). Este mito acende a questão do significado do ser humano, e todos os seres humanos são verdadeiramente iguais, mesmo que alguns possuam maiores habilidades do que outros (um tema predominante nas HQs, óperas de ficção científica e até mesmo em séries de televisão, tais como “Heroes”).

4. O Mito do Feminino Divino. No gnosticismo clássico, Sophia ocupa o centro do palco, simultaneamente, como ser caído e uma redentora da humanidade. Sua encarnação já assumiu várias formas, incluindo a Shekinah de Deus na Cabala, Maria Madalena no Cristianismo esotérico, e Gaia no neo-paganismo. Sylvia em “O Show de Truman” e Trinity em “Matrix” são duas das mais famosas nos domínios da Ficção Científica e da Fantasia. A encarnação pode ser o protagonista, o professor do protagonista, e toda uma gama de variações. Ela resgata ou é resgatada, ou ambos, nas batalhas contra os agentes da opressão e da quebra da realidade falsa. É difícil negar a obsessão das Anime com a confusão com o feminino e sexualidade em geral (que se afasta ou, talvez, complementa a atitude gnóstica da desconfiança em relação ao sexo). Isso agrava a questão dos diferentes níveis de amor, amizade e individualidade no que poderia parecer um universo frio e indiferente.

Há um novo elemento que permeia os quatro mitos, muito relevante para as gnósticas Animes e para ficção especulativa. Em sua luta para entender o que realmente definiu o homem e seu destino no cosmos, o Gnosticismo clássico cogita a tripartição entre Matéria-Homem, Mente e Espírito. O Gnosticismo Contemporâneo tece essa tríade no interior da Máquina – tecnologia avançada, inteligência artificial, cibernética, realidade virtual, etc. A Máquina acrescenta um componente filosófico mais profundo, como o Deus que faz o homem e o homem que faz a Máquina, e os três se encontram frequentemente tentando imaginar quem está no controle e quem realmente existe na percepção de cada um. A Trilogia Matrix e os escritos de Philip K. Dick certamente focam essa revelação gnósticas modernista.


Neon Genesis Evangelion é uma das principais Anime gnósticas.

Humanidade enfrenta anjos não só pela sua existência, mas pela sua própria alma. A superfície da estória é flagrantemente gnóstica. É o clichê Anime típico de um mundo pós-apocalíptico, duelo de robôs gigantes e angústia adolescente . Mas Neon Genesis Evangelion abriga uma camada ainda mais profunda de temas gnósticos de várias escolas (Clássica, junguiana, Dickiana e Cabalística).

As origens da humanidade são muito semelhantes aos da cosmogonia gnóstica de Valentino, onde a queda de Sophia do Pleroma cria o universo e seus habitantes. Em Neon Genesis Evangelion, Sophia é substituída por um ser chamado Lilith, cujo material remanescentes são descobertos na Antártida e, em seguida, salvaguardados pelo homem moderno no Japão, num esconderijo subterrâneo chamado Tokyo 3. Logo depois, a civilização sofre o Dia do Julgamento, quando um outro ser chamado Adam (ecoando as Adamas celestes do Gnosticismo, Maniqueísmo e Cabala) de alguma forma se choca contra a Terra. Metade da humanidade é destruída e os sobreviventes são forçados a viver no subterrâneo. O aquecimento global e outros cataclismos prejudicam os recursos do planeta. Um mundo despótico emerge das cinzas.

E depois vêm os anjos para piorar as coisas.

Estas criaturas buscam recuperar os restos mortais de Lilith e Adam das garras da humanidade, pois eles também são a Mãe e Pai primordiais. Os anjos querem a mesma coisa que os líderes da humanidade – reintegrarem-se com Lilith e Adam, a fim de criar uma consciência coletiva piedosa que se torne uma lei suprema. Enquanto os cientistas humanos tentam desbloquear as essências de Lilith e Adam, eles também utilizam partes de seus corpos titânicos para criar monstros chamados unidades Evangelion (ou Evas), a fim de repelir a invasão divina. Evas aparecem como elegantes e estereotipados robôs gigantes, mas são realmente semideuses bestiais que querem associar com os agentes humanos. Isso tudo constitui o cenário de uma batalha grandiosa e brutal que assola a civilização, ainda mais que os anjos não se encarnam na Terra como dândis alados, mas como pesadelos ao estilo Lovecraft.

Apenas alguns jovens talentosos podem pilotar os Evas. O protagonista principal é Shinji Ikari, um adolescente torturado, que não apenas se torna o salvador da humanidade, mas o representante de muitos dilemas psicológicos e existenciais. Suas esposas-irmãs são as tempestuosas Asuka Langley (a ruiva símbolo de Maria Madalena) e o astral Rei Ayanami (de cabelos prateados, símbolo místico de Sophia). Esses jovens não só passam pelas várias fases clássicas da maturidade de crescimento humano e do herói, mas também representam a confusão da inocência que se perde num mundo louco, não apenas de adultos, mas também de divindades insanas e indiferentes.

Neon Genesis Evangelion empurra todos os aspectos da exploração gnóstica nas diferentes fases de plots brutais, realidades despedaçadas e emboladas, e visões psicológicas da alienação pós-industrial, através de extensos monólogo interiores, todos banhados pelo fedor e desespero de uma civilização condenada. A série também leva o público para a fronteira da insanidade e desolações teológicas através de um elenco de personagens cansados e frequentemente sobrenaturais que atritam a trindade anti-heróica de Shinji, Asuka e Rei (e suas psiques, eventualmente, são absorvidos primeiro pelas Evas e, mais tarde, pelos próprios anjos). Da sobrevivência às falsas realidades para as viagens em planos celestiais através dos horrores pré-criação, “Neon Genesis Evangelion” é uma enciclopédia de Gnosticismo.



domingo, setembro 19, 2010

O Sabor Gnóstico no Filme "Um Sonho Dentro de Um Sonho"

Embora o filme não aborde explicitamente temas gnósticos, "Um Sonho Dentro de Um Sonho" tem um "sabor gnóstico" ao adotar uma consciência auto-reflexiva não só da realidade como da própria linguagem cinematográfica. Ao fazer uma referência direta a um poema de Edgar Allan Poe, o filme se associa à tradição da "ironia romântica" que tematiza a angústia humana em ser prisioneiro da linguagem que não consegue apreender uma realidade que se perde no cruel fluxo do tempo.

Eric Wilson, em seu seminal livro sobre o “cinema gnóstico” “Secret Cinema: Gnostic Vision in Film” (onde defende o surgimento de um novo gênero cinematográfico, o “filme gnóstico"), classifica a presença do gnosticismo nos filmes em quatro categorias: os filmes propriamente gnósticos (filmes onde a cosmologia e teologia gnósticas são explícitas como em "Matrix" (Matrix, 1999) e Show de Truman (Truman Show, 1998), filmes Cabalísticos (onde a aspiração gnóstica por transcendência passa por robôs, próteses e servo-mecanismos – o filme "RoboCop" (RoboCop, 1987) seria um exemplo, filmes alquímicos (que descrevem como a vida emerge da morte, o espírito cresce a partir do corpo e a verdade surge a partir do caos – "Beleza Americana" (American Beauty, 1999), e "Homem Morto" (Dead Man, 1995) seriam exemplos dessa categoria.

Wilson fala também de filmes com “sabor gnóstico”, filmes que não abordam propriamente temas do gnosticismo, mas contêm o espírito ou a atitude gnóstica frente à realidade. Um questionamento, por assim dizer, metalinguístico frente o real: pode ser o real um plot dentro de um plot? Uma narrativa dentro de outra narrativa?

O Filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho” (Slipstream, 2007), estrelado, dirigido e escrito por Anthony Hopkins certamente se enquadra nessa categoria. O título em português não poderia ter sido mais feliz. Retirado de uma das linhas de diálogo do filme, é uma referência a um poema de Edgar Allan Poe "Dream Within a Dream", escrito quando ele tinha 18 anos, em 1827.

Tal como a literatura do Romantismo do século XIX, os principais temas desse filme são a consciência “meta” da vida e da própria arte e a angústia diante do fluxo do tempo. Assim como no poema de Poe onde protagonista não consegue segurar a areia dourada que se esvai entre os dedos (“Oh Deus como segurar/o que não posso agarrar?/Oh Deus não posso salvar/Um grão desse cruel mar?).

Hopkins é Felix Bonhoeffer, um roteirista que, próximo da terceira idade, é contratado para reescrever um filme de mistério. Na verdade, tentar solucionar problemas de enredo decorrentes de eventos inesperados na produção do filme. Felix começa a viver em dois mundos distintos que, ao longo do filme vão se confundindo: o real (a produção do filme e a elaboração do roteiro) e a sua mente (referências imagéticas da sua vida se mesclando com os personagens do roteiro que tenta escrever).

Com inspiração nitidamente Linchyana (como Cidade dos Sonhos de David Lynch que metalinguisticamente trata dos meandros de Hollywood), Felix se defronta com matadores de aluguel, candidatas a atriz e produtores de cinema, tipos suspeitos que, ao longo da narrativa, transitam entre a realidade e o mundo paralelo criado pelo roteiro que tenta redigir.

O filme é um quebra-cabeças. Com uma edição frenética, há trocas constante de coloração das imagens (preto e branco, sépia, colorido), troca-se a ordem das cenas, erros propositais de continuidade, troca-se o autor das falas etc. Na primeira metade do filme o espectador fica totalmente perdido diante de uma aparente colagem aleatória de cenas. Parece um filme que ainda não foi editado (esse parece ser o propósito, já que se trata da produção de um filme que não termina).

A Ironia Romântica

Certa vez, o escritor e pesquisador Stephan Hoeller afirmou que todo artista sério já era, sem saber, meio gnóstico. A sobrevivência e os constantes "revivals" do gnosticismo certamente se devem a esse caráter parasitário de uma certa consciência ou atitude gnóstica diante da existência. Uma espécie de consciência meta. No caso da arte, a intrusão da figura do autor na obra literária, isto é, o caráter auto-reflexivo, a consciência de jogo na obra e sobre a obra. Essa é a característica principal do Romantismo: a “ironia”:
... A ironia romântica (...) não se esgota na mera interrupção do fluxo narrativo com o narrador dirigindo-se ao leitor. É, muito além disso, um recurso que se destina a fomentar uma constante discussão e reflexão sobre literatura – um processo do qual o leitor forçosamente participa. Essa participação é alcançada na medida em que o escritor destrói a ilusão de verossimilhança e desnuda o caráter ficcional da narrativa, chamando a atenção do leitor para como o texto foi construído.( VOLOBUEF, K. Frestas e Arestas. A prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 1998, p.99.

Essa atitude ou consciência meta (auto-reflexiva) que vê tanto a realidade como a arte que tenta representar a realidade como "construct" (artificialismo), parece ser o tema dominante do filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho”. Na medida em que o protagonista confunde o roteiro e todas as suas referência cinematográficas (como o clássico “Vampiro de Almas”) com a própria realidade (a produção de um filme), Felix, atônito, chega ao limite da auto-reflexão: será a vida um roteiro cinematográfico, onde, dentro dele, produzimos novos roteiro? Ou, ao contrário, produzimos roteiros para, artificialmente, representarmos uma realidade inatingível?

Essa é a angústia que perpassa não apenas o filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho”, mas de todo o Romantismo do século XIX: a angústia de que perdemos uma relação plena com a realidade, uma desconfortável sensação de hiato entre homem/mundo, experiência/representação. O recurso da ironia literária (obras ficcionais com constantes auto-reflexões narrativas, trazendo incerteza tanto ao protagonista quanto ao leitor sobre qual o ponto de vista da estória que está sendo contada) é o reflexo de uma consciência gnóstica em relação à existência: a desconfiança de um artificialismo tanto da arte como da própria realidade que pretendemos representar.

O filme constantemente repete planos do protagonista atônito, olhos arregalados e boca aberta, impotente, vendo o fluxo dos acontecimentos, a edição frenética e a troca constante da voz narrativa. Felix tenta ao longo do filme, sem sucesso, entender ou capturar o fluxo do tempo. Angústia fundamental da arte: como uma representação estática pode apreender o fluxo do tempo? Tal como no poema de Poe, como segurar entre as mãos a areia dourada que cruelmente se esvai?

Das artes plásticas, passando pela fotografia e cinema, parece ser essa angústia fundamental que norteia as tecnologias das imagens. Porém, quando o cinema chega a sua maturidade artística e tecnológica, repete-se o mesmo fenômeno da literatura quando chegou ao seu ápice: a angústia da auto-reflexão, a consciência metalinguística das limitações da representação artística em apreender o fluxo do tempo e da realidade.

Mas essa consciência (ou INconsciência) gnóstica levanta uma suspeita mais profunda: e se esse próprio fluxo cruel do tempo for um artifício, um constructu no qual estamos aprisionados? Assim como Felix Bonhoeffer ou Edgar Allan Poe em seu poema, estaríamos presos nessa falha cósmica que é o fluxo do tempo?

Esse sabor gnóstico presente no filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho”, esse encontro entre cinema e romantismo literário, faz-nos compreender o porquê da sobrevivência do questionamento gnóstico ao longo da história: para além dos questionamentos cosmológicos e teológicos feitos pelos seus pensadores, o Gnosticismo não consegue se limitar à bidimensionalidade do papel. Vai mais além, numa atitude constantemente renovada de ironia e auto-reflexão em relação à vida e à arte.

Abaixo, uma tradução livre do poema de Edgar Allan Poe:
"Um Sonho Dentro de Um Sonho"
Edgar Allan Poe

Receba este beijo na testa
E agora estou lhe deixando
Confessar-me é o desejo
Você não está errado
Meus dias foram um sonho
Contudo se a esperança fosse embora
Numa noite ou em um dia
Numa visão ou em nenhuma
Restaria algo?
Tudo que nós vemos
Tudo que parecemos
Não é mais que um sonho dentro de um sonho, sonho...

Eu estou entre o rugido de uma costa
De ondas atormentadas ao mar
E eu seguro entre as minhas mãos
Grãos da areia dourada
Oh, como elas rastejam
Dos meus dedos ao profundo
Quando eu soluço, quando eu soluço
Oh Deus, como segurar
o que não posso agarrar ?
Oh, Deus não posso salvar
um grão desse cruel mar ?
Isso é tudo que vemos
Tudo que parecemos
Não é mais que um sonho dentro de um sonho, sonho...
Sonho, Sonho, Sonho...
Trailer de "Um Sonho Dentro de Um Sonho (Slipstream, 2007)


Ficha Técnica:
  • Filme: Um Sonho Dentro de Um Sonho (Slipstream)
  • Direção: Anthony Hopkins
  • Roteiro: Anthony Hopkins
  • Elenco: Anthony Hopkins, Christian Slater, Jeffrey Tambor, John Turturro, Kevin McCarthy, Stella Arroyave
  • Produção/Distribuição: Strand Releasing
  • Ano: 2007
  • País: EUA
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sexta-feira, setembro 17, 2010

"Desconfie de Todos": A Sombra de um Arquétipo

O vídeo publicitário do chocolate Bis explora a sombra arquetípica do personagem picaresco: a paranóia. A virtude desse vídeo é apresentar a "paranoia institucionalizada" dos ambientes corporativos atuais. Mas também apresenta a dinâmica da Ad-Gnose: fixar o arquétipo para produzir identificação e, em seguida, confiná-lo numa representação regressiva da paranoia.

Em postagens anterioras (veja links abaixo) discutíamos o conceito de Ad-Gnose como uma nova fase em que entra a indústria de entretenimento em geral e a publicidade em particular. Como apontam todas as tendências (agenda tecnológica, temas das narrativas fílmicas desse início de século etc.), as estratégias publicitárias atuais estão para além do comportamental, subliminar ou da captura das fantasias compulsivas ou impulsivas. Busca-se um nível mais profundo: o repertório da simbologia arquetípica da espécie humana. A fase “Este é o produto, agora compre-o!” foi deixada no passado para, em seu lugar, consolidar-se a prospecção dos simbolismos mais profundos da alma humana que procura apresentar o consumo como uma experiência espiritual, de autoconhecimento.

A Publicidade parece que assimilou todas as críticas feitas a ela ao longo da história (consumismo, superficialidade, frivolidade, materialismo etc.) e procura demonstrar que mudou, se espiritualizou e não vê mais o consumo como mero ato de aquisição, mas de enriquecimento espiritual.

É claro que o propósito da Ad-Gnose é discutível e irônico: buscar a experiência espiritual (a transcendência) numa troca econômica (imanência) que pressupõe todo um sistema econômico e político que se impõe como um princípio de realidade que confina as aspirações contidas nos arquétipos.

Um exemplo atual dessa dinâmica está no recente filme publicitário do chocolate Bis intitulado “Baia” (da Olgivy & Mather). Em um ambiente corporativo, onde cada funcionário (ou “colaborador” como eufemisticamente se diz no jargão corporativo atual) está na sua baia, o protagonista come o seu bis em silêncio, encolhido, com um olhar perdido de tédio e fastio. Um pequeno prazer individual num ambiente de rigoroso controle e vigilância coletivas.

As divisórias da sua baia vão cada vez mais se deslocando, estreitando o espaço do protagonista, na medida em que os chocolates bis misteriosamente desaparecem dos cantos da sua mesa. Contrariado, ele olha por cima das divisórias e vê seus vizinhos também comendo bis. Resignado, abre a sua gaveta para pegar outro bis de uma nova embalagem. No final, o slogan conclusivo: “desconfie de todos!”

Nesse caso temos a utilização do personagem arquetípico do Pícaro. O personagem picaresco é representado por um palhaço ou qualquer personagem cômico que carrega dentro de si o desejo de mudança da realidade. Tal qual um Dom Quixote, o pícaro luta contra os moinhos de vento da realidade, criando situações tragicômicas, principalmente porque muitas vezes onde ele vê dragões ou monstros mitológicos nada mais são do que velhos moinhos. Sua sombra é a paranoia.

O filme publicitário do chocolate Bis explora, portanto, o simbolismo arquetípico da Sombra do personagem picaresco: a paranoia. E os moinhos de ventos são os modernos ambientes corporativos das administrações flexíveis, cujas estruturas de cargos e funções mudam repentinamente de acordo com as mudanças dos ventos da economia globalizada.

Gestão do Medo

Como alguém já observou, a administração corporativa do capitalismo globalizado pode ser definida como a “gestão do medo”.

Richard Sennett já observou que no novo capitalismo a cadeia e os elos da produção estão cada vez mais flexíveis, voltados para metas de curto prazo. Em termos sociais e de relações humanas isso altera a função do trabalho em conjunto. Sennet faz uma analogia da nova organização com o toca MP3: enquanto um aparelho de MP3 pode ser programado para tocar apenas algumas faixas de seu repertório, a organização flexível pode desempenhar a qualquer momento algumas das suas possíveis funções. A consequência é a exigência por parte da organização por uma predisposição mental capaz de adaptar-se a contínuas mudanças, sempre partindo do zero.

Como demonstram as sucessivas novas ondas em gestão e administração, os aspectos objetivos de avaliação (técnico-profissionais) são colocados em segundo plano. O mais importante é a “inteligência emocional”, potencialidade e capacidade de adaptação. Para Sennett esses critérios subjetivos e sujeitos a constantes mudanças e valorações tornam a organização ambígua e misteriosa para o indivíduo:
“Isso dá a entender que as relações humanas abertas são mais importantes nas organizações flexíveis (...) nas estruturas fluidas, a sensibilidade substitui o dever. (...) a organização flexível deixa claro por que a conscientização recíproca vem a ser impregnada de ansiedade e, com demasiada frequência, paranoia institucionalizada” (SENNETT, Richard. A Cultura do Novo Capitalismo. São Paulo: Record, 2006, p. 52)

Sem os critérios objetivos da antiga meritocracia, a necessidade sempre renovada de adaptação e de entender a pragmática das relações interpessoais cria uma progressiva atmosfera de ansiedade e medo. A própria arquitetura dos ambientes corporativos torna-se móvel, flexível (baias, divisórias etc), para adaptar-se aos repentinos desaparecimentos e criação de novos cargos e funções. A ansiedade e medo gerado por essa atmosfera móvel, fluída e,ao mesmo tempo, viscosa, vai produzir a forma mais acabada de reação do indivíduo: a paranoia.

O momento de verdade da paranoia: o arquétipo

A paranoia tem o seu momento de verdade. Como falha da razão, resulta da percepção do absoluto non sense da realidade, ansiando pela mudança. O arquétipo do Pícaro ou do personagem tragicômico simboliza essa gnóstica percepção de que, no final, a realidade não tem sentido: a lógica do sistema se volta contra ele próprio e os efeitos coleterais explodem no protagonista aturdido, pego em situações cômicas e irônicas.

Mas esse momento arquetípico da paranoia pode se transformar em algo regressivo, aprisionando esse momento de verdade na lógica absurda do sistema que o produziu. A paranóia pode se transformar na “tirania da unificação ou a maldição do Um”
(QUINTAES, Marcus.” Hilman Revendo Hilman: Polêmica e Paranoia” disponível em http://www.jungianstudies.org/publications/papers/quintaesm3.pdf).

A realidade (posta anteriormente em suspeita pela paranoia) passa, então, a se unificar e é introjetada pelo indivíduo: como resultado todo o sistema passa a ser visto como um gigantesco complô contra o protagonista. Desconfia de que cada pessoa próxima, cada situação ou cada evento seja parte de uma gigantesca engrenagem que se movimenta para destruí-lo.

A Sombra no sentido Junguiano, representada aqui pela paranoia, é um importante elemento para a individuação (diferente da estrita concepção narcísica de paranóia – a idéia de que o sujeito tem de que o mundo está focado em uma perseguição contra si próprio) ao fazer o sujeito questionar o princípio de realidade. Ao contrário, a regressão da paranóia na introjeção destrói a aspiração arquetípica por mudança, produzindo confomismo, resignação e, mais tarde, ressentimento, ódio e vingança. Se na paranóia arquetípica a racionalidade do real é questionada, na introjeção paranoica temos, ao contrário, o delírio da racionalidade com a imagem de uma maquinação precisa que quer destruir o sujeito.

O filme publicitário do chocolate Bis é emblemático por três razões: primeiro, por representar tão bem os ambientes corporativos atuais fluidos, móveis dispostos em baias com pessoas entediadas. Segundo, ao representar a “paranoia institucionalizada” desses novos ambientes corporativos; e, terceiro, por apresentar o dinamismo da Ad-Gnose: o confinamento do arquétipo. O filme atrai a identificação do espectador ao apresentar esse momento de verdade, mas, ao mesmo tempo, regride o arquétipo ao reduzir a paranoia à “tirania da unificação”.

Um contraponto dessa utilização regressiva da paranoia pode ser visto em “Brazil, o filme” (Brazil, The Movie, 1985) de Terry Gilliam. Nele, vemos uma sequência que lembra muito o filme publicitário do chocolate Bis (veja essa sequência abaixo). Diferente do vídeo publicitário, Gilliam apresenta a paranoia em traços épicos e gnósticos. O protagonista Picaresco, tal qual como Dom Quixote, enfrenta monstros imaginários, fruto da sua paranoia. Mas, aos poucos, vai descobrindo a absoluta ausência de sentido num mundo dominado pela burocracia total. A paranoia vira instrumento de mudança e libertação.

Ao contrário, na Ad-Gnose do vídeo do Bis, o momento de verdade do arquétipo é fixado para produzir identificação e familiaridade (“é igual na empresa onde trabalho!”) para, em seguida, confiná-lo no slogan regressivo que introjeta a realidade que queria questionar: “Desconfie de Todos!”



Brazil, O Filme (1985)



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