sábado, julho 10, 2010

No princípio era a crise: a ontologia do Mal no Filme Gnóstico

A estrutura narrativa do filme gnóstico simbolicamente representa o drama cósmico descrito pelas narrativas do Gnosticismo: Criação e Queda em um único Ato. Um cosmos corrompido desde o início da Criação, o Mal como elemento principal de um escript que aprisiona um protagonista exilado das suas verdadeiras origens espirituais.

Se um gnóstico escrevesse uma bíblia, seu primeiro versículo seria “e no princípio era a crise”. Já que no princípio era a Crise e não o Verbo, o mundo físico foi um produto terminal, em crise e declínio desde o seu início. Para o Gnosticismo, a criação do mundo já é Queda pela presença ontológica do Mal na sua própria constituição, existência e dinamismo. Identificar o Mal com a existência material não significa incorrer na concepção religiosa tradicional da oposição entre matéria/espírito, Verdade/Mentira, Bem/Mal etc., num dualismo onde a matéria é considerada moralmente má por ser a fonte do pecado e da decadência espiritual. Ao contrário, o Mal para o Gnosticismo tem uma concepção Ontológia e não moral, isto é, o Mal é a essência constitutiva do próprio cosmos físico. Isso significa que ele possui algo de corrompido e falso desde o início.

A principal narrativa mítica da gênese da Criação/Queda e a concepção do Emanacionismo: a criação do mundo físico veio por uma serie de desdobramentos de cima para baixo com gradações de carências e perdas. O eixo espacial desse movimento são as diversas esferas ou éons. Esse dinamismo afeta a própria divindade que do repouso da sua eterna pré-existência é atirada na História do mundo. Isso significa que o Demiurgo, ao tentar reproduzir a plenitude do Pleroma nas esferas inferiores, incorreu em sucessivas dispersões do “Um”, em constantes espelhamentos ou emanações sucessivas, numa cadeia de irradiações que vão enfraquecendo até resultar num cosmos falso ou mal na sua essência.

Duas conseqüências práticas resultam dessa condição ontológica do Mal:

Primeiro, do ponto de vista do gnosticismo cátaro do pensador francês Jean Baudrillard, o mundo é tomado por uma “reversibilidade simbólica”: cada ação resulta no seu oposto – a Paz na Guerra, a construção na destruição, a utilidade no desperdício, o Bem no Mal etc. Cada nascimento do novo resulta numa reversão, devolução.

Segundo: a absolvição da humanidade por ela não ser a culpada pelo estado de coisas. Nunca houve um pecado original, a não ser dentro da própria divindade demiúrgica que criou esse mundo. Portanto, a “salvação” não viria da renúncia de si mesmo, da negação do indivíduo como origem do pecado ou do Mal. Pelo contrário, através da Gnose buscar dentro de cada um de nós as partículas de Luz que se dispersaram com o caótico dinamismo da cadeia de emanações que criaram esse cosmos físico. Salvação é conhecimento daquilo que foi perdido. Conhecer é lembrar, a partir da conscientização de exilados que todos nós somos.

A presença do Mal no Filme Gnóstico

A narrativa do filme gnóstico vai representar simbolicamente essa narrativa mítica da gênese do Mal. Isso vai tornar o filme gnóstico estruturalmente distinto do filme tipicamente hollywoodiano ou “comercial”.

Qual a estrutura prototípica de um filme “hoolywoodiano” ou de um “produto de monopólio”? Quem nos dá essa resposta de uma forma sintética é o pesquisador alemão Dieter Prokop que identifica a seguinte elaboração da consciência do público na estrutura do “produto de monopólio”:


“Nos produtos de monopólio domina o esquema do questionamento e da reconstrução da ordem. Os valores vigentes são desrespeitados, atacados e novamente restaurados. É um jogo necessário da fantasia, pois repete-se todas as vezes na estrutura do produto e nas expectativas; é uma tentativa de tornar-se consciente do que custa o desvio das normas.” (PROKOP, Dieter, "Fascinação e Tédio na Comunicação: produtos de monopólio e consciência" IN: Dieter Prokop (Coleção Grandes Cientistas Sociais), Sâo Paulo: Ática, 1986, p. 178,



Temos nessa análise de Prokop a estrutura-clichê de “quebra-da-ordem-e-retorna-à-ordem”. O roteiro do filme começa apresentando um cosmos ordenado, com a vigência de normas e valores normais (primeiro ato: a família feliz, o grupo de amigos, a sociedade em sua rotina cotidiana etc.). Repentinamente temos a quebra da ordem com a irrupção do Mal (ponto de virada para o segundo ato onde o Mal se desdobrará: serial Killer, assaltante de bancos, terroristas, explosões, incêndios, assassinatos etc.). E finalmente a restauração da ordem original descrita no primeiro ato (o terceiro ato: o duelo final entre o Bem e o Mal, com a vitória dos personagens representantes do Bem e o retorno à ordem).

Esse é o significado profundo do chamado Paradigma Sydfield dos três atos de um típico roteiro cinematográfico.

Ao contrário, o filme gnóstico começa com a Crise, Queda, logo no Primeiro Ato: os protagonistas já se encontram numa situação inautêntica, corrompida, conspiratória. Sentem que há algo de errado, sensação de estranhamento, de não pertencer àquele mundo. Pressentem o Mal na própria realidade e não como resultante de pecados dos seus próprios atos.

Em Donnie Darko (2001), por exemplo, o filme começa com o protagonista acordando de um estado sonambúlico no meio de uma estrada com sua bicicleta ao lado. Como parou ali? O filme já começa em desordem. Como também no filme gnóstico europeu O Homem que Incomoda (Den Brysomme Mannem, 2006), cujo filme começa com o protagonista descendo de um ônibus em uma estranha e inóspita localidade, sem saber o quê faz ali e nem como chegou lá. Ou ainda em A Passagem (Stay, 2005) onde não só o psiquiatra protagonista, mas o próprio espectador (por meio da fotografia “estourada”) sente, desde a primeira cena, que há algo de errado naquela cidade onde as ações de desenrolam.

O Mal está na própria realidade que envolve o protagonista, e não nos atos “pecaminosos” dos personagens (ações de quebrem a ordem “boa”). Por exemplo, no filme “de monopólio” o Mal está presente em cada ação “errada” do personagem que desestabiliza a ordem e é punido por isso: o jovem que desobedece a mãe vai para o acampamento onde Jason o espreita (Jason de Sexta-Feira 13 não é o Mal, mas o anjo que pune os pecadores), os terroristas punidos ao final em Duro de Matar por terem quebrado o harmonioso mundo de um Shopping Center.

O filme gnóstico simbolicamente retrata essa cosmogonia corrompida e em Queda. Protagonistas se descobrem jogados dentro de uma trama que não sabem quando começou, o porquê da sua existência e o que fazem ali. O todo é falso é a única verdade semente pode ser encontrada dentro de si. Por isso, as narrativas gnósticas exigem personagens paranóicos, exasperados, à beira da psicose, esquizofrenia e loucura. É a revolta da verdade presente no indivíduo contra uma totalidade falsa desde o início:

“No início era a crise’ – assim seria a primeira frase de uma bíblia gnóstica, se eles conseguissem a proeza de se contentar com uma única Escritura. E já que no início foi a Crise, e não o Verbo, o mundo corpóreo é o produto terminal desse épico de declínio. O drama, num só ato, de Criação e Queda, requer protagonistas à altura: exorbitantes, impulsivos, expressivos, barulhentos. (...) intensidade no limite da histeria, estardalhaço, promiscuidade de impulsos, vontades e afetos feéricos.” (FIORILLO, Marília. O Deus Exilado – breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 119.)


A distinção entre o filme gnóstico e o filme “comercial” vai além das diferenças estéticas ou temáticas: reside nas diferentes concepções do Mal. No filme “de monopólio” o Mal está presente do indivíduo que “peca” (quebra da ordem pela sua ignorância, maldade, vício, corrupção, egoísmo etc.) devendo ser punido para redimir a ordem e mostrar ao espectador o quanto custa desestabilizar a Ordem.

Ao contrário, no filme gnóstico o Mal deixa o campo moral para alcançar um estatuto ontológico: o protagonista prisioneiro de um drama em um só ato, vítima de mais um desdobramento de um equívoco de dimensões cósmicas.

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domingo, julho 04, 2010

Trabalho de conclusão da pós da UAM estuda a recorrência de anjos na recente produção cinematográfica

Entender como a figura mitológica e arquetípica do Anjo é representada no cinema a partir de análises fílmicas, análise da imagem e Mitologias foi o objetivo de Ionara Lermen e Milton Siqueira Jr. com o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) "Cinema e Mitologia: a representação fílmica do personagem anjo", defendido em banca pública no dia 19/06 na pós-graduação em Cinema da Universidade Anhembi Morumbi (UAM).

A oportunidade que tive em orientar este TCC dentro do programa de pós em Cinema, Fotografia e Multimídia da Universidade Anhembi Morumbi foi de grande sincronicidade. O projeto de Ionara e Milton foi apresentado para mim num momento em que ministrava a disciplina Estrutura de Roteiro na Graduação em Comunicação e estava envolvido nas discussões em torno de Campbell, Vogler e a utilização de arquétipos e narrativas míticas nos roteiros cinematográficos e, ao mesmo tempo, vinha de recente defesa da dissertação de mestrado sobre a recorrência de elementos do Gnosticismo na produção cinematográfica.

A partir do filme de Win Wenders, Asas do Desejo (1987), a pesquisa da dupla detectou um crescimento no número de filmes que trabalham com o personagem arquetípico do anjo. O por quê dessa tendência, a pesquisa apontou para três hipóteses:

Primeiro: o crescimento na utilização da simbologia arquetípica em diversas narrativas midiáticas audiovisuais como publicidade, telenovela etc., com o objetivo de despertar desejos e associar temas, emoções e sentimentos a marcas, como na Publicidade.

Segundo: partindo das idéias de Nelson Brissac Peixoto, a recorrência do personagem Anjo no cinema seria um sintoma da saturação das imagens e estímulos sensoriais organizados como clichês dentro da Pós-Modernidade. A figura do Anjo representaria o anseio pela pureza, inocência perdida, um "olhar da primeira vez" de um anjo que vivia na eternidade e, de repente, cai no mundo material e experimenta as experiências banais pela primeira vez, buscando a transcendência no mundo material.

Terceiro: A própria evolução tecnológica do cinema que não mais precisa de luzes e película para as suas produções. Através de ferramentas oferecidas pela computação gráfica e seus efeitos especiais a criação de personagens etéreos e divinos torna-se mais fácil, tornando-se uma tendência considerável nos últimos anos. Soma-se a isso, personagens como gnomos, duendes, fadas, ETs etc.

A partir de análises de filmes como Asas do Desejo, Dogma, Anjos Rebeldes, Cidade dos Anjos, Constantine, a dupla de pesquisadores descobriu que as características mitológicas são conclusivamente judaico-cristãs.

O Curta-Metragem


Ao final a dupla apresentou sua produção audiovisual no formato curta-metragem "Se Essa Rua Fosse Minha" (o TCC da Pós em Cinema e Fotografia da UAM consiste na produção de artigo científico e de um produto audiovisual). O projeto teve o objetivo de inverter a fábula presente na cantiga infantil contando a história de um relacionamento entre um anjo e uma menina, o mundo da "miticidade" e o da realidade "mundana".
Mais do que isso, através de uma atmosfera dramatúrgica permeada de ludicidade e surrealismo, o curta re-interpreta a figura do anjo por um viés gnóstico: através de elementos simbólicos como o céu, a pena (que representa as asas), as brincadeiras infantis, a maçã, o caminho de brilhantes e o coração, o anjo abandona as representações tradicionais judaico-cristãs para ingressar no universo mítico do Gnosticismo. Nesse curta, o a anjo quase vira um Aeon!

Ficha Técnica:

  • Roteiro e Direção: Ionara Lermen e Milton Siqueira Jr.
  • Atores: Rafael Reigado (Anjo Azhazel), Ana Beatriz Cedro (Isabel criança), Fernanda Migotto (Isabel adulta).
  • Direção de Fotografia e Montagem: Milton Siqueira Jr.
  • Direção de Arte, Figurisno e arte gráfica: Ionara Lermen
  • Trilha Sonora: André Cortada
  • Agradecimentos: Ultrassônica Produções e ITD-Instituto Tecnológico Diocesano Santo Amaro
  • Orientação: Prof. Me. Wilson Roberto V. Ferreira

sábado, julho 03, 2010

A mídia racionaliza a presença do Mal: a desclassificação do Brasil na Copa

Se para o Gnosticismo, desde que foi criado, o Universo é imperfeito pela presença do Mal, o papel da indústria do entretenimento é o de encobrir essa natureza ao tentar racionalizar com scripts moralizantes eventos originados puramente do acaso e do inesperado. A Copa do Mundo e a desclassificação do Brasil é mais um exemplo dessa estratégia midiática.

Nos grandes eventos midiáticos, não importa o gênero, desde os atentados de 11 de setembro nos EUA à cobertura de um evento esportivo como a Copa do Mundo de Futebol, ficam mais evidentes os mecanismos pelos quais a indústria do entretenimento elabora, racionaliza e, depois, neutraliza a presença do Mal. No caso, a desclassificação do Brasil diante da seleção da Holanda. Simplesmente a indústria do entretenimento não pode aceitar o acaso, o imponderável, o reversível, o inesperado.

Acontecimentos devem ser enquadrados no interior de estruturas-clichê, verdadeiros scripts que racionalizam ou dão um sentido, um “valor de uso”, a eventos destituídos de qualquer sentido. São a mera expressão de uma ausência de sentido, do acaso, da presença do Mal como constituinte do cosmos em que habitamos.

Antes de prosseguirmos, temos que explicar de que “Mal” estamos nos referindo. Não estamos falando do Mal no sentido moral, diabólico (o “mau”) e, muito menos, no sentido disfuncional ou da ignorância. Dentro da visão gnóstica o Mal tem a ver com a própria constituição do cosmos físico, a forma imperfeita e decadente como esse universo foi criado pelo Demiurgo. A criação já foi queda, crise, desde o seu início. Há uma existência ontológica do Mal na História. Para além do pecado, ignorância ou maquinações malignas, o Mal tem a ver com um drama de dimensões cósmicas: um universo criado de forma imperfeita e decaída. E por que este mundo material criado pelo Demiurgo é imperfeito? Por que nele encontram-se inconciliáveis e, ao mesmo tempo, inseparáveis, o Bem e o Mal. Dessa forma, para cada ato bom produz-se um efeito perverso: a produção reverte-se em destruição, a paz produz a guerra, a realidade a ilusão, e assim por diante.

Talvez onde mais se expresse esta natureza do Mal seja nos jogos infantis: as crianças divertem-se com o jogo, com o acaso, com a reversibilidade, com o girar, ficar tontas, experimentar a própria natureza do cosmos no interior do qual se reencarnaram: brincar com o inesperado e o reversível – objetos se transformam em outro, caixinhas em trens, e bolas são lançadas sem saber exatamente onde vão cair. A criança ri do inesperado, do incerto.

Voltando à cobertura da Copa e a desclassificação do Brasil, a indústria do entretenimento simplesmente não pode aceitar a natureza de “jogo” do futebol. A derrota deve ser racionalizada e inserida a fórceps num script já anunciado: a derrota da “Era Dunga”.

Não obstante o fato de a seleção ter dominado todo o primeiro tempo, e “aquelas” bolas não terem entrado para ampliar o placar e matar o jogo e o fato do primeiro gol da Holanda se originar de um cruzamento fortuito que resultou inesperadamente em gol depois do goleiro Julio César e o volante Felipe Melo “baterem cabeça”, esses simples expressões do Mal não podem ser aceitas pela cobertura midiática.

Se para a própria natureza lúdica do jogo essas manifestações do acaso que deveriam ser a fonte de diversão e graça (a reversibilidade e inutilidade dos atos), para a indústria do entretenimento deve ser neutralizadas. Por quê?

O Jogo do Terrorismo

Um exemplo dramático disso são as ações terroristas Os atos terroristas são verdadeiros incômodos para a lógica midiática. São fatos efêmeros que não podem ser interpretados ou assumidos por algum sentido ou valor. Como fato midiático, os atentados terroristas demonstram a própria reversibilidade dos sistemas de comunicação. Os atentados não são feitos para entrarem na História, mas para as ondas concêntricas da mídia.Um atentado como o de 11 de setembro nos EUA não tinha objetivo pragmático ou lógico (chegar ao poder, iniciar uma guerra etc.). Nenhuma interpretação moral ou política podia ser dada: o atentado foi uma ação sem sentido político ou estratégico - não visava a tomada do Poder e, muito menos, a desestabilização do sistema político. Espetáculo puro, aparência pura. Mas, através de uma estratégia de simulação, a mídia procura racionalizar, tenta trazer o episódio para o seu script racionalizante: fanatismo islâmico? Vingança de Bin Laden? Bonapartismo Civil de Bush? Todas as alternativas de explicação do porquê do atentado terrorista se anulam e se equivalem numa espiral interpretativa sem fim.

O Script do “Fim-da-era-Dunga”

Fazendo uma analogia com a Copa do Mundo, o script dramático da racionalização da derrota do Brasil já estava anunciado: psicólogos e psicanalistas convocados para explicar o comportamento arredio do técnico, colunistas esportivos defendendo que Dunga tirava o prazer do “futebol bem jogado” e ia contra as “verdadeiras raízes” do futebol brasileiro representadas por Garrincha e Pelé e atualizadas nos “novos craques” do Santos Neymar e Ganso, injustamente não convocados pelo “pragmático” Dunga.

A seleção brasileira tem que ser, ao mesmo tempo, lúdica e com “prazer de jogar”, mas, também, sempre vencedora. Esse script paradoxal é aplicado ao “trauma” da desclassificação, negando a própria noção de prazer e jogo que atiçam contra Dunga.

Na presença do Mal (do acaso e do inesperado) no futebol e no jogo em geral é que reside o prazer, e não numa suposta origem idílica e romântica do futebol brasileiro (supostamente negada pelo conspirador Dunga) que nos garantiria nunca perder.

Assim como os atos terroristas que não visam o Poder ou o Estado, mas apenas o espetáculo, a derrota “injusta” de uma seleção traída pelo acaso (ou pelo Mal) demonstra a inutilidade “divertida” do jogo. A indústria do entretenimento precisa racionalizar ou dar uma lição de moral à derrota, como bem demonstram as colunas dos comentaristas esportivos de hoje.

A derrota deve dar uma lição de moral (o fim do “dunguismo”) para provar que, no final, a vida tem um sentido moralmente bom e que o Mal é fruto dos nossos erros e pecados, e não um elemento que constitui e define a própria existência. O prazer irônico no Jogo e no Lúdico (sentir graça de um drama cósmico) é a sua prova inconteste.

quinta-feira, julho 01, 2010

A Realidade Oculta de Philip K. Dick em Minority Report

Traduzimos abaixo texto de Jay Kinney, autor do livro Hidden Wisdom: A Guide to the Western Inner Traditions (Quest Books, Spring 2006) e editor da coletânea The Inner West (Tarcher/Penguin, 2004). Foi editor da Gnosis Magazine no período 1985-1999. Um excelente texto abordando não apenas o filme Minority Report mas, principalmente, o gnosticismo do autor do livro que deu origem ao filme: Philip K. Dick.

A partir da célebre experiência religiosa vivida por Dick em 1974 que teria sido o ponto de virada na sua vida intelectual e pessoal, Jay Kinney discute o significado do conceito de Gnose, um conceito controvertido não só dentro do Gnosticismo mas no próprio campo das discussões místicas e teológicas. Esse artigo saiu originalmente na New Dawn Magazine, número 74, setembro-outubro de 2002. Mais abaixo postamos também uma versão traduzida da "Experiência Religiosa de Philip K. Dick, por Robert Crumb" publicada em 1986 na revista Weirdo # 17 sobre a experiência retratada no romance "Valis". A história é uma interpretação gráfica de uma série de eventos que Dick vivenciou no mês de março de 1974. Ele passou o resto de sua vida tentando descobrir o que teria acontecido durante aquele período.

A REALIDADE OCULTA DE MINORITY REPORT
A Gnose Política de Philip K. Dick
Por Jay Kinney


É difícil imaginar imaginar que há quase vinte anos foi lançado Bladerunner . Esse filme fascinante e influente foi o primeiro a ser inspirado nos escritos do autor de ficção-científica, Philip K. Dick. Seguiram-se outros filmes com diferentes graus de sucesso, incluindo Total Recall e Screamers, mas até agora a maioria dos filmes têm sido aqueles que captaram a distópica sensibilidade paranóide de Philip K. Dick, sem diretamente basear-se em um dos seus livros ou contos. O Show de Truman, They Live!, Pleasantville e, principalmente, The Matrix, foram todos filmes com Dick no coração, apesar de sua ausência nos créditos.

O recém-lançado filme de Spielberg, Minority Report, mergulha diretamente no poço profundo PKD, e apesar do inevitável final de filme Spielberguiano, consegue evocar um dos temas favoritos de Dick: como se esquivar da asfixia de um estado policial invansor? Em Minority Report, este tema assume a forma de o local do Departamento de Pré-Crime, em Washington DC, que conseguiu eliminar os assassinatos ao prender e encarcerar os criminosos antes de cometerem os crimes. Isso é feito baseando-se nas habilidades de três precogs (precognitivos), que tem o talento involuntário de ver o futuro próximo e vislumbrar os assassinatos em andamento. Como o filme revela, no ano de 2054 um referendo nacional está prestes a ocorrer sobre a possibilidade de ampliar a política de prevenção Pré-Crime para uma política nacional.

Tendo em conta as recentes iniciativas do governo Bush e dos EUA para deter indefinidamente aqueles que tenham cometido nenhum crime, mas quem pode ter planejado, a oportunidade de "Minority Report" é quase inconcebível. A história original de Dick surgiu em 1956, e o roteiro do filme foi escrito bem antes dos atentados de 11 / 9. Mas, de alguma maneira, as intuições de Dick sobre as execuções do Pré-Crime foram levadas da tela grande para a vida real. PKD, que morreu em 1982, iria saborear a ironia. Ele ainda está conosco.


Gnose

O gnosticismo é um nome comum aplicado a várias seitas dos primeiros tempos do cristianismo que enfatizavam a necessidade de receber a "gnose" (conhecimento divino da verdadeira realidade), a fim de ser salvo. Enquanto eles se consideravam cristãos, os gnósticos divergem tanto o judaísmo e do cristianismo católico em sua crença de que este mundo é uma criação imperfeita de um Demiurgo despótico que usurpou a posição de Deus. Através da agência de um Cristo redentor e sua noiva, Sophia (Sabedoria), os gnósticos esperavam o regresso, após a morte, o reino mais elevado do Pleroma (plenitude) para se unir com o verdadeiro Deus Desconhecido.

Isso, pelo menos, é um modelo resumido do gnosticismo. Se alguém tomar uma visão mais ampla, perceberá que houve muitos gnosticismos muitos e muitas "gnoses" - algumas anterioras à Era Cristã e algumas completamente independentes do Cristianismo. Gnose, como sinônimo de iluminação ou união mística, é equivalente a marifah (árabe) ou irfan (persa) no Islão esotérico, por exemplo. No entanto, embora possamos supor que o estado de consciência significado pelo termo "gnose" é universalmente acessível (ou pelo menos potencialmente), não é de todo certo que aqueles que usam o termo se referem sempre à mesma coisa.

Por exemplo, a gnose dos místicos Sufi do Islã não inclui o reconhecimento da existência de um Deus Demiurgo ou falso, mais baixo. Na verdade, Tawhid, a Unidade de Deus e da Criação, é fundamental paraessa suposição do Islã, de que uma realização espiritual que aponta para um Deus maior do que o Criador seria imediatamente rejeitado como uma ilusão. Por outro lado, os iogues hindus podem facilmente concordar com muitos gnósticos que este mundo é um véu ou a ilusão (Maya, em sânscrito), e que existe um Deus absoluto por trás ou acima de deuses menores. Mas os iogues poucos compartilham da avaliação gnóstica que indica uma falha moral no universo.

Qual é exatamente a natureza do conhecimento divino que os gnósticos e outros místicos têm buscado? É impossível descrever com precisão, devido à natureza não-discursiva do seu conhecimento. Frithjof Schuon refere-se a gnosis como "a nossa participação na perspectiva do Sujeito divino, que, por sua vez, está além da polaridade de separação sujeito-objeto" (1). GEH Palmer se refere a ele como "Sabedoria composta do Conhecimento e da santidade ", e sublinha a distinção "entre o conhecimento adquirido pela mente ordinária e discursivas de conhecimento maior que vem da intuição do intelecto, o intelecto prazo com o mesmo sentido que em Plotino ou Eckhart " (2).

Em outras palavras, a gnose, de acordo com esta definição, é uma experiência do "saber" que resulta da expansão da consciência gnóstica ao nível do divino intelecto, onde a ilusão do self separado (ego) é eliminada - ao menos temporariamente - na perspectiva ampla do Eu Superior. Esse estado não pode, naturalmente, ser mantido indefinidamente. O que sobe tem que descer. Mas, tendo se elevado a essas alturas, o ego, que é montado em cima de sua descendência, é permanentemente afetado. Ele já "sabe" o seu lugar no esquema cósmico das coisas.

Tal conhecimento não é facilmente comunicado a outros, em parte porque os pontos de referência comuns são poucos, e porque qualquer tentativa de descrever a experiência é obrigado a diminui-la e reifica-la. Assim, aqueles que foram abençoados com a gnose usam estratégias oblíquas para conferir o inefável: a poesia, em vez de prosa, mitos em vez de análise clara; afirmações paradoxais, em vez de declarações.

Há ainda outro fator que contribui para a proliferação da gnose e gnosticismos: enquanto a experiência da gnose pode ser ahistórica, isto é, além do tempo e espaço, o gnóstico obviamente não é. Um budista tibetano nos recessos do Himalaia, que toma a reencarnação como um dado adquirido e acredita em muitos deuses, não vai vestir a sua gnose com as vestes de um muçulmano sufi na Andaluzia, que acredita em uma vida e um só Deus. E vice-versa.

Um gnóstico, cujo histórico e cultura é marcado pela guerra e perseguição, provavelmente tal situação influenciará sua explicação da gnose pós-realidade. Pode ainda haver uma realidade maior para além dos conflitos e da violência que ele experimenta em gnose, mas sua versão mítica da jornada para a verdade como um duro esforço, poderia ser apresentado de forma diferente numa outra situação.

Finalmente, há a personalidade e condição psicológica do gnóstico deve ser considerada. Ao contrário do contemporâneo pressuposto holístico de que a combinação de uma boa alimentação, uma vida boa e uma boa atitude torna alguém mais susceptível de conduzir a uma consciência espiritual mais elevada, isso nem sempre é assim. Estados superiores também podem ser acionados pelo ascetismo, substâncias psicoativas, a prática disciplinada ou mera casualidade. A ausência de desejos e obsessões pode tornar mais fácil a prática da meditação, mas a gnose pode também surgir em alguém que está longe de ser um santo. Nesse caso, sua compreensão da gnose pode muito bem ser atingida pela predisposição neurótica.


A Invasão Divina

O que nos traz de volta a Philip K. Dick.

Em fevereiro de 1974, Dick estava vivendo em Fullerton, Califórnia, uma cidade medíocre em Orange County. Ele fugiu de sua residência fixa no norte da Califórnia com medo de sua vida e sua sanidade Ele havia se envolvido com drogas ilícitas por longo tempo, recusava-se a pagar impostos em protesto contra a Guerra do Vietnam, e a pobreza era crônica. Em 1971, o seu lar anterior, em San Rafael, ao norte de San Francisco, havia sido arrombado por pessoas desconhecidas. Ele tentou o suicídio, internou-se num centro de reabilitação de drogas em Vancouver, e em 1972 voou de lá para Fullerton.

Em 1974, ele casou com a sua quinta esposa, Tessa, e teve um novo filho, Christopher. Mas, logo depois, em fevereiro, extraiu dois dentes do siso e estava aguardando a entrega da farmácia dos medicamentos prescritos.

A campainha tocou e Dick abriu a porta. A menina da entrega da farmácia estava diante dele, usando um colar delicado do qual pendia um peixe dourado, símbolo de Cristo, muitas vezes usado por cristãos evangélicos.

Como Dick relatou mais tarde que - possivelmente na forma mitológica - foi como um tiro de laser cor-de-rosa a partir do peixe atingindo terceiro olho de Dick. Isso teve um efeito extraordinário:

"De repente, experimentei, aprendi mais tarde, o que é chamado de anamnese - a palavra grega que significa, literalmente, "perda do esquecimento". Lembrei-me quem eu era e onde estava. Num instante, num piscar de olhos, tudo voltou para mim. E não só eu podia lembrar, mas eu podia ver. A menina era um cristão secreto e assim como no passado. Nós vivemos com medo de sermos descobertos pelos romanos. Nós temos que nos comunicar por meio de sinais enigmáticos. Ela tinha acabado de me contar tudo isso, e era verdade" (3).

Havia muito mais a seguir. Nos anos que se seguiram, Dick sentia que seu psiquismo fora invadido por uma "mente racional transcendental, "como se toda a minha vida tivesse sido uma loucura, e de repente tornei-me são"(4). Ele experimentou visões hipnagógicas, audições, sonhos tutelares, e toda a visão de milhares de gráficos coloridos lembrando "a pintura não-objetiva de Kandinsky e Klee" (5).

Dick nomeou essa mente racional invasiva como VALIS (para Vast Active Living Intelligence System), que se tornou o nome do seu romance 1981, contando sua experiência boggling mente em forma de ficção.

Talvez mais significativamente, ele percebeu que o "tempo real cessou em 70 dC com a queda do templo em Jerusalém.” Tudo recomeçou em 1974. O período de intervenção foi uma espúria interpolação perfeita imitando a criação da mente ...."(6).

A preocupação ao longo da vida PKD com as questões de "o que é realidade?" e "o que é o homem?" não lhe permitiria resolver sua experiências de 1.974 em uma única explicação fácil. Ele vislumbrou diversas formas de se comunicar com Deus como um satélite em órbita da Terra, ou, num estilo barroco, como a cortesia das invasões psíquicas da Academia de Ciências Soviética a partir de transmissores psicotrônicos. Esses insights alimentaram vários romances antes de sua morte prematura aos 53 anos em 1982.

A questão que pode ser bastante questionado se as experiências de Philip K. Dick em 1974 se constituíram numa forma de gnose. A julgar pelas suas muitas histórias e romances, Dick conviveu ao longo de sua vida, com uma sensação de que a realidade, como costumamos percebê-la, é uma fachada. Ele sentiu que havia algo de moralmente errado em um universo onde um inocente gato de um amigo podia andar na rua e ser alegremente atropelado por um carro que passava. Seus romances recorrentemente abordaramcom o tema do homem aprisionado no interior dasmaquinações de um poder além de seu controle. Dick pode ter sido nominalmente um episcopal, mas ele era constitucionalmente um gnóstico.

Mas, aqui está o paradoxo: nem todos os gnósticos recebem a gnose de forma completa. Alguns gnósticos, como os cátaros do sul da França, reconheceram isso e dividiram seus membros entre os crentes simples e os eleitos (perfecti), e é seguro assumir que nem todos os perfecti tinham conseguido plena consciência mística (7).

Os gnósticos ensinavam que há diversos planos ou esferas entre o mundo material e o reino puramente espiritual do Pleroma, "morada" do Deus desconhecido. Esses planos eram governados por Arcontes, e parte do desafio para a alma do gnóstico é, no momento da morte, navegar passando por essas autoridades cósmicos sem ser ludibriado.

O gnóstico que percebeu gnose completa antes de sua morte, (a consciência que se refere o Sufi terminologia como "a morrer antes de você morrer"), foi abençoado com a chave de segurança para fazer essa viagem pós-morte. Mas a gnose nem sempre é completa para todos e algumas experiências podem fornecer somente uma realização parcial - talvez de um reino Archonic intermédio que mais se assemelhe ao mundo velado do Pleroma.

Embora incompleta, esta gnose Archonica ainda poderia ser útil em lançar luz sobre a nossa situação atual -, enquanto suas descobertas não foram tomadas como a última palavra ou a imagem total.

Sugiro que a gnose de Philip K. Dick foi parcial deste tipo: pertubadora, convincente, ambígua, e tão política como espiritual. Sua predisposição para a paranóia - agravada pelo abuso de anfetaminas, e do temperamento da era do McCarthismo e a agitação política dos anos 60 - levou a escrever dezenas de romances anteriores a 1974 que foram amplamente gnósticos em sua exploração da realidade alucinógena, a luta do indivíduo hostil com autoridades superiores e, em seu questionamento da moralidade convencional.

A gnose de Dick em fevereiro-março '74 - que ele experimentou, de forma dissociada, como a intrusão de um maior mente racional em sua consciência - passou a ser entendida por ele como uma revelação de profundas implicações políticas. Dadas as suas preocupações políticas, que já estavam presentes, não é uma surpresa.

A história humana pode parecer uma série interminável de ciclos recorrentes: poder detido pelos poucos se consolida, segue a corrupção, o regime cai e é substituído, e assim por diante. PKD, no entanto, escravo da sua gnose do raio rosa, chegou a uma conclusão urgentemente mítica: o tempo real fora interrompido em 70 dC, um falso sonho temporal foi imposto bre nós por dezenove séculos e, em seguida, através de intervenções externa,s tempo real começa novamente. Sob a aparência normal de nosso mundo moderno, Dick (e outros selecionados) eram como cristãos secretos em conflito com o Império Romano, que ainda estava no poder.

Esta é realmente uma grande verdade cósmica? Acho que não. Mesmo na década de 1970 teve seu lado trivial, como a noção de Dick de que a renúncia do Presidente Nixon após o Watergate foi um evento de significado cósmico.

Mas, de uma forma metafórica ou mesmo arquetípica a gnose de PKD fez revelar uma realidade político-espiritual que está cada vez mais relevante para nós, vinte anos após sua morte. "O Império nunca terminou", escreveu o Dick, e ainda vemos a superpotência reinante bradando seus sabres e seus asseclas contra inimigos designados. O colosso cultural dos conglomerados de mídia e de Hollywood têm girado uma névoa de sonhos que absorve o passado eo futuro num presente perpétuo de novidade e de distração. Para pensar com clareza e sem clichés é necessário um esforço heróico, semelhante ao esquivar-se dos Arcontes em cada um dos mundos pelos quais passamos.

Dick pensou que 1974 fora um ponto de viragem - um momento em que a verdade estava começando de novo e penetrava o véu das aparências. Desejava que isso fosse verdade, mas o choque de 11/09 e a guerra psíquica subsequente, leva à conclusão de que há uma abundância de velamentos - talvez mais do que nunca.

À medida em que partes do véu vão sendo retiradas, Minority Report dá uma lufada de gnose política de Philip K. Dick. Mas nenhum filme - e nenhum livro - é um substituto para um encontro com próprio com o Deus desconhecido.

Qualquer verdadeira gnose - parcial ou completa, seja ela política ou espiritual - é mais valiosa do que todas as palavras que foram escritas sobre ela. Acima de tudo fique alerta, e quando baterem à porta faça uma oração rápida, de que seja uma menina com o colar de peixe e não o policial do Departamento de Pré-Crime.

Notas

1. Frithjof Schuon, Gnosis: Divine Wisdom (Bedfont, Middlesex: Perennial Books, 1990) p. 2.
2. Ibid, GEH Palmer, “Translator's Forward,” p. Ibid, GEH Palmer, "Forward Translator's", p. 83. Veja: Larry Sutin, Divine Invasions: A Life of Philip K. Dick (New York, NY: Harmony Books, 1989).
3. De “How to Build a Universe that Doesn't Fall Apart Two Days Later,” published as an introduction to I Hope I Shall Arrive Soon (New York, NY: Doubleday, 1985.)
4. From interview in Charles Platt, Editor, Dream Makers: The Uncommon People Who Write Science Fiction (New York, NY: Berkeley Books, 1980) p. De entrevista em Charles Platt, Editor, Dream Makers: The Uncommon Pessoas que escrevem Science Fiction (New York, NY: Berkeley Books, 1980) p. 155. 155.
5. PKD carta a Peter Fitting, Junho de 1974.
6. Philip K. Dick, VALIS (New York, NY: Bantam Books, 1981) p. 228. 228.
7. Yuri Stoyanov, The Hidden Tradition in Europe (London: Penguin/Arkana, 1994) p. 162.

© Copyright 2002 by New Dawn Magazine and the respective authors.

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DE PHILIP K. DICK
Por Robert Crumb

(clique nas imagens para ampliá-las)








sexta-feira, junho 25, 2010

O Cadáver da Teologia e o Resumo Recusado pelo Encontro Científico

Nessa semana, voltando de bicicleta após mais uma manhã de aulas na Universidade Anhembi Morumbi (vou de bicicleta dar aulas na Universidade todas as manhãs) e pensando na próxima pauta para esse humilde Blog (sim! Meus melhores insights e idéias ocorrem entre as pedaladas), veio à lembrança um resumo expandido de um artigo recusado que fora submetido a um encontro científico.

Esse resumo expandido foi enviado por mim no ano passado para o Terceiro Encontro ESPM de Comunicação e Marketing, realizado na Escola Superior de Propaganda e Marketing aqui de São Paulo. O tema geral era “Comunicação e Consumo na Sociedade de Acesso”. O resumo submetido ao Encontro intitulava-se “Cinegnose: Imaginário Cinematográfico e a desmaterialização econômica e tecnológica global” (logo abaixo o leitor poderá ler esse resumo)

Entre alguns argumentos de ordem metodológica que justificavam a recusa, um chamou-me a atenção: o texto submetido ao Encontro era muito “místico”! Logo pensei: É! ... O tema “gnosticismo e cultura” é místico demais para um evento “científico”.

É curioso o destino que a Teologia e o “misticismo” tiveram na história do pensamento ocidental. A Teologia, a primeira das ciências, que possuía o maior estatuto, o pai poderoso das origens da Universidade, com o processo de desenvolvimento do racionalismo foi sistematicamente atacada, desacreditada e marginalizada. Sendo a universidade laica, as ciência humanas tornaram-se também laicas e a Teologia, religiosa.

Mas, por meio da Metafísica moderna, a Teologia secretamente secularizou-se. Sem saber, ainda as ciências humanas nutrem-se dos pedaços do cadáver esquartejado da Teologia. Ainda mais nesse campo da Publicidade e do Marketing, ciências sociais aplicadas, onde se busca desesperadamente racionalizar ou dar bases “científicas” a processos puramente místicos, carismáticos ou espirituais: vender sonhos, explorar motivações, narrar temas arquetípicos. Desde há muito tempo quando o consumo se desprendeu do valor de uso, o consumo é basicamente feitiço e fantasia.

Tentando dar um estatuto de ciência, erradicam-se temas “místicos” que partam de categorias do próprio campo teológico ou metafísico. O “místico” das ciências humanas (principalmente as aplicadas) deve ser denegado para, mais tarde ressurgir como sintoma: a obsessão pela cientifização para justificar o status laico e racional de uma área que, certamente, é constituída pelos novos padres, monges e sacerdotes da nova Teologia pós-moderna, criadores de liturgias paras os novos templos chamados de “Shopping Centers”. A homilia dessa nova liturgia é o texto publicitário.

Abaixo, o texto “místico” recusado:



CINEGNOSE
Imaginário cinematográfico e a desmaterialização
econômica e tecnológica global

Wilson Roberto Vieira Ferreira

RESUMO EXPANDIDO


Nos últimos vinte e cinco anos, uma série de filmes do mainstream hollywoodiano vem extraindo imagens e idéias de antigas correntes filosóficas, religiosas e culturais conhecidas como gnósticas: Vanilla Sky (2001), eXistenZ (1999), Matrix (1999), Cidade das Sombras (Dark City, 1998), Show de Truman (Truman Show (1998), A Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998), Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), Coração Satânico (Angel Heart, 1987), Dead Man (1995), Amnésia (Memento,2000) , O Jogo (The Game, 1997).


Neste pequeno grupo de filmes citados há preocupações básicas que os unem: (a) o tema do colapso da distinção entre aparência e realidade provocado tanto pelas recentes tecnologias quanto pela condição humana; (b) instabilidades naquilo que conhecemos como realidade e o seu multifacetamento em instâncias supra e para-reais; (c) experiências da perda da memória e a sua reminiscência como fator de recuperação da identidade.

Este texto procurará discutir exatamente esta conexão entre gnosticismo e cinema, mas num aspecto particular, a saber: como os filmes que abordam temas e símbolos gnósticos vêm na última década insistindo no tema do artificialismo da realidade. Não a realidade ideológica, política ou econômica, mas no seu aspecto último, metafísico ou ontológico: a realidade tal como a entendemos existe? Por que essa espécie de guinada metafísica na temática da produção hollywoodiana recente? A forma como esses temas são abordados nos aspectos de narrativa, iconografia e construção de personagens parecem apontar para a influência dos temas e narrativas do gnosticismo histórico e dos seus ressurgimentos no campo da literatura e no imaginário das novas tecnologias (gnosticismo tecnológico).

Se há uma conexão entre cinema e sociedade, ou seja, se o filme pode ser considerado um repositório do imaginário social contemporâneo e se sabemos que este imaginário atual é fortemente marcado pelo desenvolvimento tecnológico computacional e a crescente liquidez da financeirização global, é a partir daí que devemos analisar essa produção fílmica. Esta crescente recorrência de elementos gnósticos no cinema hollywoodiano corre paralelo à euforia da globalização e o fortalecimento de seus dois pilares: de um lado, o desenvolvimento da microinformática e, a partir do bombástico lançamento do Windows 95, o crescimento especulativo das potencialidades da Internet e das tecnologias computacionais; e, do outro, a extraordinária aceleração da expansão do capital por meio da financeirização do sistema econômico global.

Esses dois processos são interdependentes, pois o desenvolvimento da microinformática e da nanotecnologia surge na hora certa quando a globalização do capitalismo passou a exigir uma pilotagem mais complexa: dominar a complexidade das interconexões simultâneas, o cálculo probabilístico das transações financeiras e da equalização das caóticas tendências nas jogadas em bolsas de valores e na análise dos tensos cenários econômicos. As tecnologias da informação permitem a integração complexa das praças financeiras de todo o mundo em tempo real.

Em ambos os movimentos que fortalecem a ordem mundial da Globalização encontramos o caráter constitutivo da desmaterialização, isto é, o primado do imaterial sobre o físico, do virtual sobre o real e assim por diante. No plano da ciência e tecnologia, diversos autores detectaram e mapearam a semente do misticismo nas comunidades científicas, sejam acadêmicos ou tecnófilos: a princípio entre físicos, cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas, principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação. Diversos pesquisadores vão caracterizar este imaginário ciberutópico com o conceito de “gnosticismo tecnológico”.

O gnosticismo histórico (conjunto de seitas sincréticas combinando idéias cristãs, neoplatonismo e as religiões de mistérios pagãs que florescem nos primeiros tempos da difusão do Cristianismo) caracteriza-se pelo horror ao orgânico e a uma aversão ao natural. Tais elementos seriam inimigos do espírito na sua busca por iluminação. A tecnociência atual se aproximaria de tal filosofia ao propor a superação dos parâmetros básicos da condição humana: finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação existencial.

Essas tecnologias rompem com o antigo paradigma moderno, ao criar uma ambiência tecnológica computacional onde o sujeito humano é desnaturalizado: da tecnologia como extensões do homem ao momento atual de ruptura onde a tecnologia virtualiza o humano. O resultante é um mundo viscoso, menos estruturado, flutuante que pode ser sintetizado em três palavras-chave: destemporalização, destotalização e desreferencialização. Ao mesmo tempo, no plano econômico, temos a interconexão de economias por um novo modo comandado pelas novíssimas tecnologias integradoras como a microinformática, mídia, marketing e publicidade transnacional. Estas tecnologias vão sustentar o chamado “turbo-capitalismo”: a extraordinária aceleração da expansão do capital por meio da financeirização do sistema econômico global.

Esta "desmaterialização" da economia corresponde ao fato de, cada vez menos, a fonte do lucro ou da riqueza ter sua origem no circuito da produção. Deixa de ser visivelmente localizável, para encontrar formas flexíveis de acumulação: a princípio em novos vínculos trabalhistas, como a terceirização, porém, quanto mais o capital migra da produção para a esfera da circulação (financeira, midiática, etc.), mais se impõe uma nova forma de riqueza "fora do chão". É a base da constituição de um novo imaginário: redes descentralizadas, como a Internet, criando ciber-identidades pulsantes e variadas, assim como a moda efêmera e superficial traria a liberdade a um indivíduo que não mais se prenderia a certezas eternas.

Um indivíduo pós-moderno radiante, desenvolto, integrado à tecnologia (que, afinal, é a promotora desta verdadeira emancipação das identidades fixas), identidade móvel, sedutor, assumindo múltiplas personas em blogs e chats, sentindo as novas pulsações e tendências. Uma identidade tão líquida quanto os fluxos financeiros globais. Mas um imaginário paradoxal, mesclado com elementos místicos ou gnósticos, tal como representado pelo imaginário cinematográfico hollywoodiano recente. Este imaginário refletiria a própria imaterialidade da percepção do real e da identidade originada pelos processos que constituíram a Globalização?

quinta-feira, junho 24, 2010

Uma Pequena História Gnóstica da Espontaneidade na Indústria do Entretenimento (parte 2)

Depois do Star System, Celebridades, pin ups, crianças e animais, a indústria do entretenimento vai buscar a espontaneidade em formas mais invasivas e perniciosas onde as perversões privadas transformam-se em virtudes públicas.

Terminamos a primeira parte da postagem sobre indústria do entretenimento e espontaneidade abordando a armadilha que as próprias mídias acabaram criando para si mesmas: o ciclo vicioso dos pseudoeventos. Celebridades e eventos políticos e econômicos replicam imagens, temas e linguagens desenvolvidos pelas mídias, criando um gigantesco efeito que autores como Baudrillard chamariam de hiperrealismo: a realidade passa a copiar as imagens, isto é, a precessão das imagens diante todos os eventos reais presentes e futuros (as quedas das torres nos atentados de 11 de setembro de 2001 nada mais fizeram do que materializar o imaginário das catástrofes hollywoodianas sobre Nova York – afinal, quantas vezes NY já foi destruída no cinema?)

O resultado desse ciclo vicioso é o tédio diante da mídia que não consegue mais mostrar eventos espontâneos, mas pessoas produzindo eventos, gestos, atitudes para atrair a atenção das mídias, seguindo roteiros e linguagens elaborados por elas próprias.

Estrelas, celebridades, pin-ups, crianças e animais no cinema, TV e publicidade já não bastavam para injetar algo de espiritual e espontâneo nas estruturas-clichê dos diversos gêneros midiáticos.

Mas uma novidade despontava no horizonte da cultura com a tradição literária do realismo norte-americano. F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway já apresentavam em suas obras a rebelião intelectual com a desilusão provocada pelas guerras e depressão econômica: personagens que experimentam esplendor e desespero como em “O Grande Gatsby” de Fitzgerald e, em Hemingway, protagonistas durões (soldados, toureiros, atletas) e intelectuais desiludidos.

Essa busca por autenticidade e realismo desemboca no desabrochar do indivíduo na literatura norte-americana com nomes como Tennessee Williams e Allen Ginsberg. Distúrbios emocionais no seio da família em Williams e a “prosa bop espontânea” de Ginsberg com relatos de vidas errantes, personagens antenados e ao mesmo tempo místicos e a rejeição às convenções incendiaram a imaginação de jovens leitores, preparando o terreno para a contracultura que viria na década de 60.

Essas mudanças do cenário cultural fazem a indústria do entretenimento buscar o espontâneo na “autenticidade”, não mais na representação de emoções, mas nas “emoções autênticas”, “brutas”, colocando em xeque todos os paradigmas do Star System e das celebridades. Talvez o embrião dessa mudança de paradigma esteja no famoso “Método” da Actors Studio.
A indústria do entretenimento criará a forma mais invasiva e perniciosa de prospecção e captura da espontaneidade: a diluição das fronteiras entre público e privado

Criada em Nova York em 1947, a partir de uma leitura particular da teoria do ator em Stanislawsky, a Actors Studio cria a proposta de que o ator não deve apenas representar, mas ser o próprio personagem a partir de um complexo método composto por exercícios físicos e psicológicos. Para dar espírito e autenticidade às verdadeiras formas-pensamento que são os personagens, o ator deve arrancar do seu psiquismo diversas personas arquetípicas. O brilho e magnetismo revolucionários de Marlon Brando e James Dean (egressos da Actors Studio) nos anos 50 expõem uma espécie de animismo do ator: assim como no Espiritismo se chama de animismo a interferência do espírito e sentimentos do médium na comunicação (na verdade, são as personas do médium que falam e não algum espírito), vemos em filmes e teatros personagens cuja força vêm do próprio psiquismo do ator. Temos aqui o modelo gnóstico do aprisionamento das energias da alma (“espontaneidade produtiva”) para por em movimento as formas-pensamento e estruturas criadas pelo Demiurgo.

O resultado pode ser tanto a condição esquizofrênica do ator (a identidade se dilui na variedade de personas arquetípicas necessárias para dar vida a diferentes personagens) ou o ator que interpreta a si mesmo.

A indústria do entretenimento criará a forma mais invasiva e perniciosa de prospecção e captura da espontaneidade: a diluição das fronteiras entre público e privado, ficção e realidade. Doravante, as perversões privadas se transformarão em virtudes públicas. Se no esquema das celebridades os escândalos eram eventos metodicamente criados para conquistarem visibilidade na mídia, agora esses escândalos ganham espontaneidade e autenticidade: ao interpretarem a si mesmos, atores, apresentadores e diferentes personagens midiáticos estendem a ficção para a vida privada.

Por exemplo, atores como Jack Nicholson (também egresso da Actors Studio), Mickey Rourkey e Julliete Lewis estendem para vida privada os problemas dos personagens desajustados e potencialmente psicóticos vividos por eles nas telas (e fazem questão de expor isso em canais como E! Entertainment). Ou não será o contrário, a “autenticidade” das suas performances ficcionais sendo alimentada pelos aspectos sombrios dos seus psiquismos?

Reality Show: a última fronteira

Em 1991 a NASA põem em prática o Projeto Oracle. Esse experimento consistiu em colocar em imensos hangares de vidros, erguidos numa área em Tucson, no deserto do Arizona, quatro homens e quatro mulheres, 3.800 espécies animais e vegetais e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra. Lá ficaram durante dois anos monitorados por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil pagantes.

Esse experimento incendiou a imaginação da indústria do entretenimento. É a própria materialização da mitologia gnóstica que narra o Demiurgo aprisionando o homem numa realidade artificialmente construída para monitorá-lo, perscrutá-lo, para sistematicamente acompanhar a manifestação do espontâneo e do autêntico (partículas de Luz) para seduzi-lo e, finalmente, isolá-lo e instrumentalizá-lo.

Tematizado criticamente em filmes gnósticos como Cidade das Sombras (Dark City, 1998) e Show de Truman (Truman Show,1998) o crescimento vertiginoso dos Realities Show (e as variações como “pegadinhas”, “vídeo-cassetadas” ou “o povo fala”), inspirado no Projeto Oracle, expande a tendência de fundir público/privado, ficção/realidade: esquadrinhar todas as perversões privadas para expor publicamente como virtudes, autenticidade, espontaneidade. Compulsão, impulsividade, hipocrisia, alienação, paranóia, psicose etc., que emergem dos indivíduos em ambientes midiáticos artificialmente criados, é a espontaneidade espiritual (partículas de Luz) convertida em formas produtivas e regressivas para a manutenção da indústria do entretenimento.

O complexo midiático encontra, no final, a solução mais barata, rápida e lucrativa para capturar a espontaneidade: nada de atores, Métodos ou complexas estratégias cênicas ou dramatúrgicas. Pegam-se pessoas comuns ou candidatos a celebridades e as confinam ou em ambientes artificialmente construídos ou expostos diante das câmeras, pegas de surpresa.

No final, o público identifica-se e ri sardonicamente dessas situações porque, no fundo, é a materialização de toda a mitologia gnóstica da condição humana nesse mundo: exilados e prisioneiros, observados por um Demiurgo que as seduz com a possibilidade de adquirirem o poder que as retire daquela situação.

Espontaneidade ou Sensacionalismo?

As críticas tradicionais feitas à indústria do entretenimento como “sensacionalista” ou “anti-ética” são, dessa maneira, moralistas e inócuas. O sensacionalismo nada mais é do que a espontaneidade tornada produtiva, isto é, confinada nas estruturas-clichê ou scripts pré-definidos. O sensacionalismo tende a transformar o espontâneo e o autêntico em grotesco. Devem se tornar regressivos e perversos para animar formas-pensamento que nos façam rir de nós mesmos, que confirmem algo que já desconfiamos sobre nossa existência: a de sermos prisioneiros em um gigantesco reality show cósmico. A ironia é que essa confirmação não trás crítica ou indignação, a não ser o riso sardônico.

Ético seria a espontaneidade libertar-se no jogo e no lúdico. Mas isso explodiria a lógica das estruturas do entretenimento que visam canalizar essas energias espirituais a uma finalidade mercantil e lucrativa. Talvez, como provocativamente afirmava o crítico francês Jean Baudrillard, na atualidade a única espontaneidade esteja no terrorismo pela absoluta inutilidade política ou estratégica desses atos: não visam a tomada de poder, a não ser a de atrair as ondas concêntricas da mídia explodindo (literalmente) os scripts das motivações racionais da Política.

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sexta-feira, junho 18, 2010

Uma Pequena História Gnóstica da Espontaneidade na Indústria do Entretenimento (parte 1)

Se a Indústria do Entretenimento repete o mesmo drama cósmico descrito pelas mitologias gnósticas (o Demiurgo aprisionando seres humanos na tentativa de extrair de nós as partículas de Luz para por em movimento um cosmos desde o início decaído) precisamos traçar essa mesma trajetória no interior das mídias. Procurar fazer uma história das formas como o entretenimento tenta capturar e reter a espontaneidade de forma instrumental.

Em duas postagens anteriores (veja links abaixo) abordamos a questão da espontaneidade na indústria do entretenimento pelo ponto de vista gnóstico. Nossa tese é a de que a busca pela espontaneidade pela indústria do entretenimento para torná-la produtiva no interior das estruturas-clichês (dar “vida” ou “sensações” às formas vazias e inertes que perigosamente tendem à entropia – a apatia do público) reproduz numa escala micro um drama cósmico descrito pelas mitologias gnósticas: a luta do Demiurgo em aprisionar o ser humano para extrair dele as partículas de luz que animem as formas etérias a partir das quais o cosmos físico foi construído. Por ser uma cópia imperfeita da Plenitude (Pleroma), a partir do momento que foi “construído” e não “emanado”, tende à inércia ou entropia.

Pois bem, cabe agora traçarmos uma pequena história da espontaneidade na cultura de massas, procurando mapear as sucessivas fases e estratégias pelas quais a espontaneidade do público é apropriada e representada nos produtos

Mas, antes disso, temos que definir o que entendemos por “espontaneidade”. Para a mitologia gnóstica é a forma pela qual as partículas de luz (memórias das nossas verdadeiras origens não nesse cosmos, mas no Pleroma) se manifestam no cotidiano: alegria, boa-fé, disposição, brilho, vitalidade, confiança etc., isto é, sentimentos e disposições que põem em movimento nossas vidas não em um sentido instrumental (em função de metas, objetivos, eficiência, eficácia ou “pensamento positivo”, como preconiza a literatura de auto-ajuda). Pelo contrário, tomamos a espontaneidade no aspecto do “jogo” e do “lúdico”.

Ao remeter esse conceito a esse universo, lembramos de imediato das brincadeiras infantis, onde a espontaneidade ainda manifesta-se livremente. Mas tomamos o jogo e o lúdico não no sentido que o adulto faz como “irresponsabilidade feliz” ou “algo não sério”. Para Richard Sennett o jogo é uma coisa séria:

“(...) é o princípio que leva a criança a investir muita paixão numa situação impessoal comandada por regras e a pensar a expressão, nessa situação, como uma questão de refazer e aperfeiçoar tais regras para dar maior prazer e promover uma sociabilidade maior junto aos outros” (SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público, S. Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 384.)

No jogo as crianças investem muita paixão em regras absolutamente impessoais, criam um mundo de fantasia para criar prazer e sociabilidade. Levam a sério o jogo não no sentido instrumental ou tático de buscar a vitória procurando entender metodicamente as regras para entender a mecânica do jogo e nunca perder. No jogo aceitamos a experiência, seja boa ou má, vitória ou derrota. A paixão está no desenvolvimento das regras (quando mais prolongado for o jogo, mais prazer) e não no objetivo final Ao contrário do adulto que renega a experiência escondendo-se em estruturas ou estratégias que o mantenha protegido da ameaça da experiência (incerteza, perda, etc.) Esconde-se no clichê para fugir do imprevisível e do perigoso.

Entretenimento e Espontaneidade

Definida a noção de espontaneidade, vamos partir para a história das suas relações com o entretenimento.

Para Neal Gabler no livro “Vida: o Filme” o entretenimento como indústria e, mais do que isso, como fenômeno que vai estruturar a própria experiência, surge nos EUA. Assim como a Suíça exporta chocolate e a Holanda tulipas, os EUA exportarão entretenimento.

Suas origens mais profundas talvez estejam no protestantismo evangélico cuja prática religiosa era em si bastante divertida: fiéis tomados por ataques de catalepsia, convulsões, visões, explosões de riso e cantorias, além de sermões carregados de histórias bizarras, relatos de assassinatos cruéis e deformidades para que os fiéis sentissem nos próprios ossos a esperança, convicção e culpa. Essas histórias, mais tarde massificadas em tablóides e literatura popular, seriam a extensão desse fenômeno religioso tipicamente norte-americano.

Aqui, o entretenimento está associado com as sensações: o inusitado, o bizarro, o inesperado. Estas manifestações espontâneas do cotidiano estão associadas ao Fantástico, ao Mistério. Circos e parques de variedades que expunham deformações humanas serão a base dos arquétipos e iconografia modernas dos filmes de terror e suspense que darão movimento às estruturas-clichê desses gêneros.

Com a entrada da fotografia, cinema e, mais tarde, TV, esse potencial sensacional, teatral e imagético do entretenimento realiza-se tecnologicamente. Nessa primeira fase dos meios visuais e audiovisuais, quando não havia ainda uma linguagem estruturada pelo mundo dos negócios, temos a presença do espontâneo pela relação ainda “desajeitada” ou “disfuncional” do homem com as novas tecnologias de então.

Por exemplo, nas fotografias do século XIX as pessoas parecem ser mais “feias” do que nas fotos atuais por elas ainda não terem em mente a noção de pose e iluminação. Na verdade, eram fotos mais espontâneas do que as atuais.

No cinema ainda havia espaço para uma relação diretor-ator ainda não codificada pelo ritmo da linha de montagem. Por exemplo, na autobiografia da atriz Mae Marsch ela faz um relato das instruções passadas pelo diretor D W Griffith em uma cena em que ela deveria representar medo e pânico. Um diretor convencional diria “Grite!”.

“O Sr. Griffith, ao contrário, perguntou-me se eu já tinha sentido alguma vez na vida medo ou susto. ‘Sim’, eu disse. ‘O que você fez então’,perguntou-me a seguir. ‘Eu comecei a rir’, respondi. Ele soube imediatamente do que se tratava (...) Eu creio que a risada histérica era muito mais expressiva do que os olhos virando ou as lágrimas.” (Citado por PROKOP, Dieter. “O Trabalho com Estereótipos: os filmes de D. W. Griffith”, In: MARCONDES FILHO (org.) Dieter Prokop. Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo: Ática, p.64.)


Com a consolidação do entretenimento como indústria a partir dos anos 30 e o ajuste definitivo do homem e a nova tecnologia temos o desenvolvimento de uma linguagem (estrutura-clichê) específica para cada mídia e gênero, surgindo a necessidade crescente da prospecção da espontaneidade do público.

A primeira estratégia foi a criação do Star System ou a promoção dos atores como “estrelas” (para a visão gnóstica a expressão não é mera coincidência: expressa o desejo secreto de capturar a luz, “estrela”, brilho, para por em movimento o entretenimento). Os produtores logo perceberam que o público reconhecia seus atores preferidos e lhes dava apelidos afetuosos (Mary Pickford a “menina dos cachos” - veja foto ao lado -, Jane Harlow a “vênus platinada”). Não tardou transformar esses atores em estrelas ao explorar o fascínio do público pelas idiossincrasias ou características espontâneas ou únicas, transformando-os em deuses de um Olimpo, isto é, “olimpianos”.

Celebridades e o Ciclo Vicioso da Indústria do Entretenimento

A segunda estratégia foi a da criação das “celebridades”. A exposição das estrelas torna-se mais aprofundada ao procurar no cotidiano delas escândalos, manias, hobbies inusitados, enfim, tudo que desse espontaneidade a atores que já entediavam o público. Logo as estrelas perceberam o mecanismo que produzia a constante exposição nas mídias e passaram deliberadamente, por meio de relações públicas ou jornalistas, a produzir acontecimentos ou eventos para alcançar espaços midiáticos cada vez maiores.

Isso vai criar um ciclo vicioso, uma armadilha para a indústria do entretenimento na busca pela espontaneidade:
“O resultado foi transformar a sociedade num gigantesco efeito Heisenberg, em que a mídia não estava relatando o que as pessoas faziam; estava relatando o que as pessoas faziam para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida que a vida estava sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta estava cada vez mais cobrindo a si mesma e a seu impacto sobre a vida” (GABLER, Neal. Vida, o Filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 97).

A celebridade é tautológica, como definiu nos anos 60 Daniel Boorstin em seu livro seminal "The Image: a guide of pseudoevents in America": “a celebridade é uma pessoa que se caracteriza pela sua notoriedade”. É famosa porque é muito conhecida!

Na verdade, as celebridades, com suas poses, jeito de jogar o cabelo, bocas com os lábios entre-abertos etc., vão reproduzir os clichês imagéticos do cinema e da publicidade.

Se o cinema explorava a espontaneidade por meio do Star System, a Publicidade vai buscar o espontâneo no erotismo, crianças e animais. Quando Marilyn Monroe, talvez uma das primeiras celebridades, se expôs com o seu sex appeal para capturar a atenção das lentes e câmeras, já replicava caras e bocas, outrora espontâneos, do repertório imagético publicitário das pin ups.

A indústria do entretenimento cria uma cilada para ela mesma, um efeito secundário imprevisto: todo esforço em captar a espontaneidade de situações cotidianas no cinema e publicidade (como nas imagens de Norman Rockwell tentando capturar instantâneos da rotina da vida interiorana dos EUA nas capas da “Saturday Evening Post”) resultou num repertório de iconografias, verdadeiras táticas para atrair a atenção de repórteres, promoteurs e produtores. E isso não apenas no campo frívolo das celebridades. Eventos políticos e econômicos surgem em tons exagerados para se igualar ao script dos dramas ficcionais e atrair a atenção das mídias. Os eventos terroristas são aqueles que melhor comprovam essa tese.

A prática jornalista mais preocupada com a “linguagem” do que com o fato demonstra isso: o repórter vira um diretor de cena, conduzindo o entrevistado ou o fato para torná-lo mais “noticiável”, “telegênico” ou “emocionante”.

Em decorrência, a espontaneidade desaparece e a indústria do entretenimento alcança perigosamente o limite do tédio, inércia e perda de interesse. Era necessário renovar as estratégias midiáticas de busca por novos tipos, situações, instantâneos e sensações. Mas isso é assunto para a próxima postagem.

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