A
política econômica neodesenvolvimentista do PT resgatou o povo não das misérias
do capitalismo moderno, mas das misérias herdadas do passado
colonial-escravista da Casa Grande e Senzala. Por isso, a sociedade do consumo,
a precarização do trabalho e a ideologia meritocrática chocaram o ovo da
serpente cujos filhotes surgem agora, polarizando o cenário político. Esses
filhotes vão reeditar a mesma psicogênese da chamada “personalidade
autoritária” encontrada em pesquisas empíricas feitas pela Universidade de
Bekerley, Califórnia, coordenadas pelo pesquisador alemão Theodor Adorno há 64
anos. Naquela oportunidade a pesquisa descobriu uma conexão entre o
conservadorismo político e o “caráter neurótico” marcado por nove traços de
personalidade como “convencionalismo”, “submissão acrítica”, “destruição” e
“cinismo”. Em um contexto diferente, o Brasil estaria repetindo o mesmo cenário
psicossocial daquela época, a concepção fascista de vida?
O que há em
comum nessas três cenas abaixo?
(a) Um jovem
profissional, imerso e confinado numa dessas baias dos modernos ambiente corporativos,
alterna páginas do Facebook, pesquisas profissionais e consulta ao calendário
buscando as datas dos próximos feriados e os dias que poderão ser “enforcados”.
Um pequeno devaneio em meio à estressante ordem meritocrática em busca de
desempenho, resultados e promoções;
(b) Manifestação
pelo impeachment da presidenta Dilma na avenida Paulista em São Paulo na semana
passada. “Não queremos o vermelho na nossa bandeira!”, bradam enfurecidos
manifestantes trajando amarelo, muitos deles com a bandeira brasileira sobre os
ombros. Pouco depois na mesma manifestação, agora gritam “São Paulo é o meu
país!”… porem, há a cor vermelha na bandeira desse Estado…;
(c) Um
jovem universitário lê na coluna do filosofo Luiz Pondé na Folha a defesa da necessidade de uma “secessão política” entre os
que votaram em Dilma Rousseff e os que não votaram: “uma militância de secessão
para que os bolivarianos durmam inseguros”, escreveu o filósofo. Beneficiado
por um programa público do Governo Federal, este jovem está em uma universidade
cujo discurso é o do talento individual como o caminho para o sucesso
profissional.
O ovo da serpente foi chocado nas baias das modernas corporações? |
Na cena
(a) temos a submissão acrítica ou uma
orientação ambígua em relação à autoridade e poder: nutre ódio e desprezo pelo
sistema no qual está imerso (o sintoma são as fantasias escapistas) e, ao mesmo
tempo, sabe que depende desse sistema para ascender na meritocracia. O
resultado psíquico é o ressentimento;
Na cena
(b) vemos a lógica estereotipada onde
se pensa por categorias rígidas, sem perceber a contradição entre elas – Brasil
X São Paulo X cor vermelha;
E na
cena (c) o fenômeno psíquico da projeção,
isto é, acreditar que coisas perigosas e violentas ocorrem no mundo, projetando
para o exterior contradições emocionais internas – contradição inerente à
própria contradição do jovem universitário beneficiado por uma política pública
de inserção educacional que o insere em uma vida acadêmica cuja motivação é o discurso
do sucesso profissional baseado em características inatas individuais.
O que há
em comum nessas cenas é aquilo que há 64 anos o pesquisador Theodor Adorno,
associado a psicólogos da Universidade de Berkeley na Califórnia, denominou personalidade autoritária.
Adorno,
Frenkel e Sanford, através de pesquisas empíricas em psicologia social que
resultaram nas mil páginas do livro The
Authoritarian Personality, tentavam compreender não só como era possível a
maioria da população em países industrializados agir num sentido favorável a um
sistema que o oprimia mas, principalmente, detectar a gênese psicológica do
surgimento do preconceito etnocêntrico, conservadorismo político e disposições
latentes de uma “concepção fascista da vida”. O temor deles era reprodução de
traços psicológicos proto-fascistas que
poderia conduzir à repetição do nazi-fascismo europeu em pleno território
norte-americano.
Se lá em
1950 o cenário era o crescimento econômico e a sociedade de consumo do
pós-guerra, aqui no Brasil temos os filhotes da serpente cujos ovos foram
chocados pela chamada política econômica neo-desenvolvimentista dos governos do
PT – e muitos deles pudemos ver nas furiosas expressões fisionômicas e
xingamentos nas manifestações na avenida Paulista.
O Neodesenvolvimentismo deixou rolar a miséria do capitalismo moderno
A personalidade autoritária descrita há 64 anos mantém-se atual |
Como coloca o professor da Unesp Giovanni
Alves, ao buscar redistribuir a renda e diminuir a desigualdade social por meio
de programas estatais de transferência de renda (bolsas, salário-mínimo etc.) o
neodesenvolvimentismo tenta resgatar o povo não das misérias modernas do
capitalismo, mas das misérias herdadas do nosso passado colonial-escravista. Na
verdade, um modelo de desenvolvimento que modernizou o capitalismo brasileiro
ao normalizar as funções de reprodução da força do trabalho e consumo ótimas
para o capital, além da manutenção da financeirização - sobre isso leia ALVES, Giovanni. “Neodesenvolvimentismo e precarização do trabalho no Brasil” In: Blog da Boitempo..
Porém,
como dizia Marx “somos atormentados não só pelos vivos, como também pelos mortos”.
Assim como o Nazismo trouxe os antigos mitos nacionalistas da família, terra e
pureza do sangue como respostas ao ressentimento das massas imersas no caos
hiperinflacionário, da mesma forma no Brasil os preconceitos, ódio e
intolerância ainda presentes como herança atávica da Casa Grande e Senzala (o
“quarto de empregada” e o “elevador de serviço” são uma dessas pequenas
tragédias) são o combustível para o ressentimento por ser projetado.
Um
ressentimento cuja origem está paradoxalmente na modernização capitalista que o
neodesenvolvimentismo estimulou: o acirramento da ideologia meritocrática (seja
por meio da publicidade ou consumo, seja pelas universidades privadas e cultura
corporativa) combinado com a precarização do trabalho.
A
“modernização” das mazelas do capitalismo globalizado como precarização e
flexibilização das relações trabalhistas (trabalhadores terceirizados,
estagiários, temporários etc.) ocorre
paralela à sofisticação do discurso meritocrático: o fracasso somente
pode ter causa na fraqueza do indivíduo. O resultado é aquilo que Adorno
chamava de “dureza da vida” ou “vida prejudicada” e a valorização da “educação
pela dor” como moralmente necessária para o indivíduo enfrentar a rudeza do
dia-a-dia.
A concepção fascista de vida
Essa é a
gênese da concepção fascista da vida, cuja fórmula Adorno sintetizou da seguinte
maneira: “aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra
os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que
precisou reprimir” (“Educação após Auschwitz”In: Theodor W. Adorno – coleção
grandes cientistas sociais, São Paulo: Ática, p.39).
O
resultado é a personalidade autoritária que pesquisadores à época da pesquisa
da Universidade de Berkeley como Fromm e Reich descreviam como de “caráter
neurótico”: fixações sadomasoquistas, superego punitivo fonte de exigências
impossíveis e de um sentimento extremo de culpabilidade, resultando num ego
fraco que esgota toda sua energia na defesa contra pulsões reprimidas.
A
pesquisa The Authoritarian Personality
de Adorno, Frenkel e Sanford demonstrou como esse caráter neurótico cria nove
traços de personalidade que compõem a personalidade autoritária. Sessenta e
quatro anos depois, podemos encontrar no atual quadro de polarização política
brasileira e nas oposições políticas suicidas (rejeição à política e golpismo) esses mesmos traços.
Os 9 traços da personalidade autoritária
(1)
Convencionalismo – a inclinação para o fascismo é característica de quem
gravita em torno das classes médias, com rígida adesão ao convencional ou ao
“bom senso” seja estética ou intelectualmente. Do “coxinha” de um ambiente
corporativo com extrema convenção no modo de se vestir e falar a uma figura
como a do cantor Lobão que, incapaz de se reinventar na sua carreira persegue o
papel convencional de “oposição aloprada” desde os tempos em que posava com
camiseta do MST.
(2)
Submissão acrítica – atitude remissiva e acrítica nas relações de autoridade
moral, idealizada no âmago do próprio grupo. Assim como a concepção nazista de
poder exigia “forte” direção e dedicação dos indivíduos ao Estado, o
proto-fascismo atual pede intervenção militar e faz petição Anti-Dilma no site
da Casa Branca clamando por “urgente posicionamento” do governo Obama à “ameaça
bolivariana” no Brasil. Essa submissão acrítica é uma projeção ressentida da
submissão descrita na cena (a) acima que abre essa postagem.
(3)
Agressividade autoritária – facilidade de espreitar, punir, repelir, condenar
ou punir quem violar as normas convencionais. É a resultante dos itens (1) e
(2): não podendo atuar na causa diretas daquilo que exigem do indivíduo o
convencionalismo e a submissão, acaba descontando no grupo minoritário que
sempre apresentará “boas” razões para ser o objeto do ódio e ressentimento. O
gosto por “soluções finais” é marcante: dos campos de concentração nazis aos
golpes militares , separatismo, construções de muros que dividam o Brasil ou o
clamor para que médicos “controlem” o crescimento populacional do Nordeste.
(4)
Destruição e cinismo – esse apego a soluções finais somente é possível porque
existe uma hostilidade difusa, um desprezo por tudo que é humano. Um pessimismo
universal que vê o mundo como uma selva onde os seres humanos são considerados
essencialmente egoístas, maus e estúpidos. A presença do recém-eleito deputado
federal Eduardo Bolsonaro armado no ato Anti-Dilma na Avenida Paulista
simbolicamente demonstra isso. Sua justificativa (“sou policial federal e
possuo porte legal de armas”) sintomaticamente reforça esse traço de cinismo e
destruição: a necessidade de andar armado confirma essa visão de mundo de que a
vida é mesmo uma desprezível selva – demonstração prática da concepção fascista
de vida.
(5)
Poder e rudeza – a consequência dessa concepção fascista de vida é a
importância exagerada com as relações assimétricas entre forte-fraco,
líder-liderado, domínio-submissão etc. As demonstrações exteriores de força
(andar armado, tatuagens agressivas, corpo meticulosamente “sarado” e musculoso
e demais expressões de agressividade – cabeça raspada, linguagem agressiva
etc.) parecer esconder a falta de força interior, a fraqueza do ego que se
submete acriticamente ao Convencionalismo e à submissão acrítica vistos acima.
Isso
explica o item (4) e o porquê da adoção de uma espécie de darwinismo social (a
lei do mais forte) ao atacar os programas sociais como Bolsa Família como
assistencialista, “bolsa vagabundo” e assim por diante. O ressentimento da
dureza da vida da ordem meritocrática e do trabalho precarizado é projetado
como ódio ao socialmente mais fraco, lembrando a fórmula de Adorno citada
acima para explicar a concepção fascista de vida.
(6) Estereotipia
– reduzir a complexidade dos problemas mediante reduções simplistas. Slogans
absurdos, mas que têm o mérito de ser claros, são os preferidos. A repetição
como um mantra garante a proteção do indivíduo diante da ambiguidade e
complexidade do real. Essa repetição chega ao ad absurdum: Impeachment contra a Dilma! Ao receber como resposta
que o vice (Michel Temer) e não Aécio que assumirá, os proto-fascistas
respondem: “então vamos encontrar alguma culpabilidade do Temer no
Petrolão!...”. Veja abaixo um exemplo absurdamente divertido desse tipo de
raciocínio baseado em estereótipos e slogans:
(7)
Superstição – é uma decorrência do item anterior: a repetição dos estereótipos
funcionam como um mantra, raciocínio mágico de que categorias rígidas ou
esquemas pré-elaborados protegem ou produzem acontecimentos como um amuleto.
Isso cria um halo místico em torno de líderes, além de produzir o discurso
supersticioso mais bem elaborado: o do “destino manifesto”. Como, por exemplo,
de que o Estado de São Paulo teria o destino de liderar, de ser “a locomotiva
da nação” etc.
(8)
Anti-intracepção – como o proto-fascista possui um ego frágil e, por isso,
dotado de um espírito gregário de se submeter ao grupo e a líderes, tem medo da
introspecção e ódio a tudo que é associado à imaginação, fantasia, utopia, o
delicado e o meigo. Na verdade, tem medo de ficar a sós consigo mesmo. Por
isso, não tem hábito de leitura - a não ser de publicações que repetem os
mantras e estereótipos que partilha.
(9) Sexo
– os autores de The Authoritarian
Personality encontraram uma atitude exageradamente precupada no
proto-fascista em relação à sexualidade: na verdade o conservadorismo político
e a agressividade autoritária de expande para a repressão sexual (ou a prática
culpada da sexualidade por meio do sado-masoquismo), a visão dicotômica dos
papéis sexuais e a punição dos supostos “desvios” desses papéis sexuais
convencionais. A manifestação social é a intolerância.
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