Uma francesa casou-se com a Torre Eiffel. Mais tarde, divorciou-se do famoso monumento e, atualmente, vive um relacionamento com um guindaste. Uma norte-americana casou-se com uma roda gigante na Flórida, depois de um longo namoro de décadas. Esse é a estranha subcultura do “objectum” ou “objetofilia”: pessoas atraídas amorosamente por objetos. O filme francês “Jumbo” (2020) se inspira nesse universo ao acompanhar uma jovem que se apaixona pela nova atração de um parque temático de um vilarejo: uma enorme roda giratória multicolorida em neon com cadeiras cheias de turistas aos gritos. Um filme estranho que mergulha no psiquismo do desejo e do erotismo com placas de metais e óleo viscoso. Como todo filme estranho, é um sintoma do atual zeitgeist: uma sociedade mercadologicamente organizada para explorar neuroticamente nossas fantasias e desejos mais profundos. No caso, o animismo do chamado “objeto transicional” descrito pela psicanálise de Winnicott.
Erika Eiffel, operadora de guindaste da Torre Eiffel e ex-arqueira premiada, ficou famosa com o documentário Married to the Eiffel Tower (2008). Ela é uma das poucas que torna pública sua peculiar orientação amorosa: ela é “objectum”, pessoa atraída afetiva e sexualmente por objetos. Também conhecido como “objetofilia”.
Além de realizar uma cerimônia de casamento com a famosa torre francesa (para mais tarde se “divorciar” do monumento – ter um coração partido por uma pessoa imprevisível, indisciplinada ou imperfeita é compreensível; mas é totalmente diferente perder algo tão estável e constante como a Torre Eiffel...), Erika teve relacionamentos com arco e flechas, uma espada de esgrima e, atualmente, vive um relacionamento com um guindaste.
Orgulhosa pela sua orientação sexual, administra um site especializado chamado Objectùm-sexuality Internationale. Orgulhosa, divulga cases, como o de uma mulher na Flórida que em 2013 casou-se com uma roda gigante chamada Bruce, após um namoro de três décadas.
Não confundir objetofilia com fetiche. Objetos-fetiche são acessórios de alguma perversão sexual na qual vivemos uma forma de prazer fragmentada ou parcial (sado-masoquismo, podólatras, dominatrix, voyeurismo etc.). Objetofilia trata-se de se apaixonar por um objeto como fosse o parceiro integral de um relacionamento.
Não se sabe quantos objectum existem no mundo já que, compreensivelmente, estas pessoas são bem diferentes de Erika Eiffel. São relutantes em exibir essa opção sexual – muitos veem a objetofilia como sintoma de doença mental. Afinal, pensar em alguém excitado passando a mão suada num corrimão, parede ou em um caminhão é ridículo – e às vezes perigoso.
Esse é o estranho tema tratado pelo filme francês Jumbo (2020). Aqui, transformado numa fábula, na qual acompanhamos a protagonista, zeladora de um parque de diversões, que se apaixona pela nova atração chamada “Move It” – que ela afetuosamente apelida de “Jumbo”. Com seus olhos arregalados cheios de desejo, observa a espiral giratória de multicolorido neon da atração que joga para cima e para baixo moradores e turistas de uma pequena cidade do interior da França.
“As coisas têm uma alma que adere à nossa e nos obriga a amá-las” é a linha de diálogo recorrente ao longo do filme. Há uma aproximação com o premiado A Forma da Água (2017), um filme sobre um casal criatura/humano. Mas em Jumbo, o anfíbio antropomórfico é substituído por alguma coisa entre o transformer Optimus Prime e uma roda gigante psicodélica. Capaz até de se comunicar com a protagonista através da cor das suas lâmpadas: vermelho para “não”, e verde para “sim”.
Jumbo é uma fábula sobre tolerância e uma alegoria de como qualquer forma de amor vale a pena. Mas também é mais um sintoma do espírito do nosso tempo.
Para quem conhece “O Capital”, de Karl Marx, não dá para deixar de lembrar a conhecida alegoria de que os preços são como “olhares amorosos” lançados sobre o dinheiro – a relação de troca entre nós e a mercadoria como um jogo de sedução. As mercadorias se insinuam umas para as outras procurando intercâmbio.
Marx não viveu para tanto, mas sua alegoria transformou-se na literalidade do design, marketing e toda economia da atenção e da sedução que envolvem os objetos. Desde um prosaico celular até a voz da IA de um sistema operacional – o filme Ela tematiza isso, quando acompanhamos um cara que se apaixona pela voz de um sistema operacional.
Quando a sociedade de consumo se encontra com a tecnológica, temos um match: mercadorias e objetos abandonam o campo da necessidade para ingressar na profundidade das fantasias e dos desejos. Para explorar um antigo impulso mimético e animista da infância e revivido na vida adulta através da tecnologia aliada ao marketing da sedução dos objetos.
A estranheza de Jumbo deve ser assistida tendo como pano de fundo esse espírito de época do chamado “capitalismo tardio”: os objetos não têm apenas preço: eles querem nos seduzir.
O Filme
Jeanne (Noémie Merlant) é uma introvertida garota que mora numa pequena cidade francesa. Por não ser muito interessada em se relacionar com pessoas, prefere trabalhar no turno da noite limpando um parque de diversões que visita desde a sua infância.
Certa noite, solitária, descobre a nova atração giratória: o “Movie It”. Enquanto limpa as suas lâmpadas com cuspe, descobre que o gigantesco aparelho tem vida. E que, literalmente, irá iluminar sua vida.
Entre limpar os rebites do aparelho com sua própria saliva, Jeanne prefere chamá-lo carinhosamente de “Jumbo” (um nome evidentemente hiper sexual) que passa a se comunicar com movimentos circulares e piscadas de luz vermelha e verde que os adornam. Os jogos amorosos entre o casal rapidamente evoluem para uma peculiar interpretação de intimidade sexual: Jumbo secreta um viscoso e vigoroso líquido escuro – certamente o lubrificante do maquinário.
O auge é uma cena erótica na qual Jeanne nua se lambuza no óleo escuro, numa referência à cena de Sob a Pele, com Scarlett Johansson.
Por outro lado, seus relacionamentos com os humanos não são nada satisfatórios. Mora com sua mãe, Margarette (Emmanuelle Bercot), uma mãe separada e promíscua que vive com seu novo namorado. Margarette lamenta que o seu vibrador seria um pai melhor do que o misterioso pai de Jeanne. Se a mãe se satisfaz com um objeto fetiche, por que censurá-la por se apaixonar pelo maquinário de Jumbo?
Enquanto isso, o seu chefe e diretor do parque temático chamado Marc (Bastien Bouillon) acha que o relacionamento metalúrgico de Jeanne é porque ela nunca teve uma atenção masculina. Grosseiro e abusivo, tenta provar para ela que um homo sapiens é melhor do que uma roda giratória.
O objeto transicional
A dualidade colocada na narrativa é evidente: enquanto os humanos são instáveis e à mercê dos seus próprios desejos, Jumbo existe para dar prazer aos outros.
O filme está menos interessado em diagnosticar Jeanne do que em registrar as suas emoções, os encontros em neon psicodélico com Jumbo e o seu cotidiano de apego a objetos em seu quarto: pacientemente, confecciona miniaturas das atrações mecânicas do parque.
A chave de compreensão de Jumbo está no apego pelo parque de diversões que a protagonista tem desde a infância – parece que toda a economia, empregos e relacionamentos daquele vilarejo giram em torno do parque.
Erika Eiffel faz uma interessante incursão pela infância para justificar o seu amor objectum:
Acredito que todo mundo é animus quando criança, que é inato. As crianças estão captando todas essas sensações de tudo ao seu redor. Mas, à medida que envelhecem, isso é esquecido. Quando criança, sempre fui muito conectada a objetos. Mas conforme você envelhece, sua visão muda. Para muitas pessoas objectum, sua orientação amorosa particular não é algo que surge durante algum trauma da adolescência - é algo que o mundo ao seu redor faz crescer (clique aqui).
Essa afirmação é literalmente um sintoma do atual zeitgeist: “algo que o mundo ao redor faz crescer”, que descreve Erika, é nada mais do que atual sociedade tecnológica e de consumo na qual mercadologicamente os objetos nos seduzem porque são desenhados e promovidos como extensões ou expressões na nossa própria identidade.
Porém, essa sedução não é mentirosa ou pura manipulação. “Toda ideologia tem o seu momento de verdade”, dizia Theodor Adorno. É claro que essa promoção mercadológica vai explorar regressivamente o impulso mimético e animista infantil, sintetizado no conceito de “objeto transicional”, conceito criado pelo psicanalista Donald Winnicott. O objeto que, dentro do “espaço transicional”, substituirá o lugar da mãe, o objeto que acompanha a criança na ausência da mãe, mas não é a mãe – desde o “sujinho” ou o “paninho” que acompanha a criança até bichinhos de pelúcia e carrinhos . É a transição para a descoberta do não-eu, a base sobre a qual se constrói o pensamento simbólico.
É claro que essa descrição do espaço transicional é evolutiva, na qual o pensamento mimético (egocentrismo, centralismo, no qual através do animismo criança tem a tendência a dar vida a seres não vivos) se desloca para o simbólico. No qual descobrimos o não-eu, o Outro, a alteridade.
O que faz a sociedade de consumo é regredir e nos fixar compulsivamente numa fase do desenvolvimento do psiquismo para daí tirar a energia impulsiva para o consumo.
Assim como os impulsos orais da primeira infância são associados ao prazer, por exemplo, do amor (a campanha “First Love” da Rede McDonald’s é um bom exemplo – comer compulsivamente como uma forma de repetir neuroticamente a sensação do primeiro amor que acaba a cada final de um Burger – sobre isso clique aqui), a sedução pelos objetos através do design e marketing explora esse impulso animista infantil. É como se retornássemos a nossa experiência mais prazerosa da infância através da publicidade. Para ali ficarmos compulsivamente repetindo uma cena.
Lembre-se do filme clássico Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, no qual acompanhamos a trajetória política de uma vida inteira cujo protagonista nada mais procurava do que resgatar uma cena de prazer da infância que lhe marcou para sempre: um trenó infantil.
Freud falava que o adulto não passava de uma criança crescida, sempre em busca de substitutos, verdadeiras próteses, daquilo que deixamos na infância, perdido no mundo do simbólico.
E aí entra a sociedade de consumo para explorar essa nostalgia do objeto transicional perdido.
Jumbo é mais uma produção que na verdade é um documento primário do espírito do nosso tempo: Publicidade, tecnologia e marketing se unem para mergulhar nas nossas fantasias e desejos mais profundos do nosso psiquismo.
Ficha Técnica |
Título: Jumbo |
Diretor: Zoé Wittock |
Roteiro: Zoé Wittock |
Elenco: Noémie Merlant, Emmanuel Bercot, Bastien Bouillon, Sam Louwyck |
Produção: Insolence Productions, Les Films Fauves |
Distribuição: Dark Star Pictures |
Ano: 2020 |
País: França |
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