terça-feira, agosto 09, 2016
Wilson Roberto Vieira Ferreira
A série de TV “Mr. Robot” (2015-) de San Esmail é vista pela crítica como um mix
de “Matrix” com “Clube da Luta” onde a violência de socos e Kung Fu é
substituída pela cultura do cyber-ativismo hacker. Mas a série vai mais além.
Entra nos temas principais do gnosticismo sci-fi do escritor Philip K. Dick:
paranoia, amnésia, esquizofrenia e identidade em um sistema onde a mentira é a
base de toda a confiança: um sistema econômico onde débitos e dívidas se
sustentam na crença de que, apesar de toda a virtualidade das transações
financeiras, o dinheiro existe em algum lugar como base moral de todo o valor. E
tudo pode ser destruído da noite para o dia por hackers que pretendem salvar o
mundo através de linhas de programação. Como explicar essa mensagem de rebelião gnóstica em série de TV em uma grande rede dos EUA? Talvez
a chamada “Hipótese Fox Mulder” explique.
“Compramos
coisas que não precisamos com o dinheiro que não temos para impressionar
pessoas que não gostamos”. Essa fala de Tyler Durden no filme O Clube da
Luta (1999) é uma rápida descrição do motor psíquico da economia negativa
atual que se expande por meio de débitos e dívidas.Situação paradoxal: quanto maior a capacidade
de endividamento de uma economia, maior sua “riqueza” com a expansão da financeirização
e a sua base tecnológica: microinformática, conexões rápidas de fibra ótica,
telemática e integração dos bancos de dados das praças financeiras.
Tyler Durden
arquitetava o Plano Caos: mandar para os ares os prédios das empresas de cartão
de crédito para zerar todas as dívidas – sobre o filme Clube da Luta clique aqui.
Mais além, a
cyber-conspiratória série Mr. Robot (2015-16) da USA Network quer
detalhar tecnologicamente esse velho sonho de Durden: interfaces GUI em Visual
Basic para rastrear IPs, discussões sobre interfaces gráficas Gnome versus KDE,
cyber-ataques RUDY e ataques massivos em dDOS contra uma gigantesca corporação
chamada E-Corp.
Sam Esmail,
criador da série, parece fazer um mix entre Matrix e Clube da Luta
mas sem todo kung fu e violência dos socos de um clube fechado masculino. Tudo
através dos olhos de um programador niilista chamado Elliot, patologicamente
introvertido e sociopata que quanto mais pretende “salvar o mundo” por meio de
uma cyber-revolução mergulha no seu “labirinto interior” enfrentando “kern:
fatal error” e “daemons” (demônios internos) que são traduzidos como bugs
psíquicos e toda uma série de jargão de programadores.
Em outras
palavras: tanto o protagonista como o espectador começam a perder as fronteiras
entre delírio químico-psíquico do protagonista e a realidade. Elliot (Rami
Malek) começa a quebrar de forma estranha a linha imaginária da “quarta parede”
– ele conversa com um interlocutor imaginário que pode ser tanto o seu
“daemon”, um amigo imaginário ou o próprio espectador.
Mr. Robot está na segunda temporada. Sam Esmail
divide de forma didática a temática de cada uma delas: na primeira temporada,
acompanhamos a realização dos sonhos do antigo Projeto Caos de Tyler Durden. E
na segunda, o mergulho no inferno íntimo de Elliot e o contra-ataque do império
do mal da E-Corp – ou “Evil-Corp” como chama Elliot.
Na primeira
temporada assistimos à retomada de uma série de temas de Matrix. E na
segunda, as consequências da clivagem esquizofrênica do psiquismo do
protagonista, no melhor estilo de Clube da Luta.
A série evoca
uma série de temas gnósticos e herméticos, difíceis de serem limitados a uma
única postagem. Por isso, vamos primeiro abordar a primeira temporada, dominada
por temas Valentinianos (de Valentim, filósofo gnóstico do início da Era Cristã):
a descida através do buraco do coelho até a paranoia e a melancolia. Para
Valentim, paranoia e melancolia eram estados de consciência ideais para a busca
da Verdade, a Gnose.
E na segunda
temporada, dominada por temas basilidianos: a busca do estado de suspensão e a gnose através do silenciamento da consciência.
A Primeira
Temporada
Elliot Anderson
(referência a Neo – Thomas Anderson – de Matrix?) é um engenheiro de segurança
de TI que trabalha na AllSafe durante o dia. Insone, durante a noite é um
hacker, vigilante e justiceiro: hackeia pedófilos, golpistas e outros pecadores
para depois fazer justiça chantageando-os.
Usando de sua perspicaz engenharia
social para descobrir fraquezas pessoais, descobre senhas e fuça na vida de
todo mundo. Depois, guarda a vida e os pecados de todo mundo em CDs arquivados
no seu “cemitério digital”.
Até que um dia,
o principal cliente da AllSafe, a gigantesca E-Corp, sofre um massivo ataque
cibernético. Ao analisar o ataque, Elliot determina que é necessário derrubar
todos os servidores da empresa para restabelecer os back-ups. Em um desses
servidores descobre um arquivo *.txt com uma mensagem solicitando não ser
apagado. Algo no seu íntimo faz Elliot obedecer a mensagem.
Na verdade
aquele ataque foi um teste para ele: estava sendo recrutado por um líder hacker
anarquista do grupo F*Society (“Fuck Society”). O grupo pretende incriminar um
executivo da empresa chamado Terry Colb, para convencer o FBI de que o ataque
partiu de dentro da corporação.
E-Corp é uma
corporação de importância global – um conglomerado de empresas que fabricam
computadores, celulares, tabletes e possui um banco e uma linha de crédito aos
consumidores. E-Corp domina 70% do crédito global industrial e de consumo.
Portanto, um ataque dessa natureza coloca em risco a economia mundial.
Christian Slater
faz o líder anarquista Mr. Robot, uma espécie de Morpheus que pretende abrir os
olhos de Elliot para a irrealidade do mundo: toda a economia do mundo é virtual
e o valor do dinheiro baseado na crença ingênua dos consumidores da existência
de algum lastro produtivo na sociedade. Como Mr. Robot afirma, “a mentira é a
base da confiança” – sobre a virtualização do dinheiro e da economia clique aqui.
F*Society quer criar o “maior evento de
redistribuição de renda da História” – apagar todas as dívidas derrubando todos
os servidores e apagando os back-ups. Na verdade, apenas abrir os olhos das
pessoas, mostrando que dívidas e dinheiro jamais existiram.
O Viajante e a
Meta-paranoia – Atenção: Spoillers à frente
O plot da
primeira temporada é essencialmente maniqueísta. Mas não no sentido
hollywoodiano (Bad Guys contra Good Guys), mas no sentido mais ontológico
original do antigo pensamento do filósofo persa gnóstico Mani: a luta do Bem
contra o Mal pertence à própria estrutura do mundo. Acabar com essa luta
significa revelar a própria irrealidade do mundo a mentira que inspira a
confiança nos serviços da E-Corp.
Por isso Elliot
é niilista e melancólico. Não vê o menor sentido nas convenções sociais como,
por exemplo, assistir a um jogo de basquete em um parque público.
Tal como Neo em
Matrix, é um profissional bem sucedido que teria tudo para se dar bem na
carreira. Mas decide se isolar e sentir-se atraído por losers do underground de
uma casa de diversões em ruínas no parque de Coney Island, os hackers da
F*Society. Elliot é o clássico personagem gnóstico do Viajante: como Alice de
Carrol, entendiado e melancólico, segue o coelho até a sua toca: a “Wonderland
“da casa de diversões abandonada chamada “Funny Society”.
Lá está a sua
espera o “Chapeleiro Maluco” Mr. Robot, pronto para abrir seus olhos para a
Verdade.
Mas ainda o plot
é muito simplista. É necessário uma pitada da paranoia sci fi do escritor
gnóstico Philip K. Dick do seu livro O Pagamento – um técnico em
engenharia reversa presta serviço secreto a uma corporação. Em troca de uma
fortuna em pagamento aceita que sua memória dos anos de serviço prestados seja
apagada. Voltando a si, descobre que no envelope não há pagamento algum: apenas
uma mensagem cifrada que deixou para si mesmo como pista inicial para a solução
de um enigma – sobre o filme O Pagamento inspirado no livro de Philip K.
Dick clique aqui.
Melancólico e
paranoico, Elliot descobrirá que criou uma espécie de meta-paranoia: na sua
missão de salvar o mundo, ele criou a paranoia mais radical – desconfiar de si
mesmo. Elliot apagou detalhes da sua própria vida ao ponto de não saber mais
quem é na verdade ele próprio.
Isso explicará a
estranha relação paternal que Mr. Robot criará com Elliot ao longo dos
episódios.
Temos aqui a
paranoia no seu sentido mais gnóstico: não se trata mais de uma conspiração
narcísica (o mundo contra você), mas da desconfiança consigo mesmo. Afinal, o
mundo da E-Corp cria uma série de tentações ilusórias para seduzi-lo. Assim
como a Matrix seduziu o traidor Cypher no filme dos Wachowski. Por isso, a meta-paranoia
é a proteção contra o maior inimigo, o próprio Ego.
Mr. Robot e a “Hipótese Fox Mulder”
Como explicar
que uma série comercial de uma rede de TV norte-americana (USA Network é uma
subsidiária da NBC Universal Cable que, por sua vez, é uma divisão da NBC
Universal, subsidiária da corporação Comcast, receita de 65 bilhões de dólares)
traga mensagens gnósticas de rebelião e desconfiança em relação ao sistema?
Mais um exemplo
de como o Capitalismo é capaz de absorver sua própria crítica e ainda assim atrair
público e anunciantes?
Mr. Robot
apresenta o verdadeiro terrorismo. Não aquele patrocinado pelo Estado e OTAN
como Al-Qaeda ou ISIS que apenas cometem atentados para a repercussão midiática
em alvos civis, com o objetivo de criar o medo que legitime arbítrios contra os
direitos individuais.
Aqui temos o
cyber-terrorismo que atinge a essência do turbo-capitalismo: as redes
telemáticas que mantêm a virtualidade da riqueza e do poder.
O fato de uma
grande rede do establishment das comunicações dos EUA produzir uma série com
tema tão anarquista talvez seja explicado pela hipótese conspiratória que
chamamos de “Hipótese Fox Mulder”: em um dos episódios da
série Arquivo X o agente especial do FBI, Fox William Mulder, participa como
convidado de um congresso de ufólogos.
A
certa altura lhe perguntam o motivo pelo qual o governo dos EUA, ao mesmo tempo
que esconde o fenômeno UFO, incentiva que Hollywood produza tantos filmes sobre
o tema . E Mulder responde: “para que todos pensem que os contatos com UFOs e
aliens são do mundo da ficção, coisas de cinema. Por isso, quando surgem
notícias verdadeiras, ninguém acredita”.
Talvez a mesma
lógica possa ser aplicada a filmes da estirpe de Matrix, Clube da Luta e
de séries como Mr. Robot: banalizar a crítica ontológica radical contra
a irrealidade da economia, da política e sobre a própria fragilidade de um
sistema que se mantém sobre bases tão frágeis – a confiança e credibilidade
baseadas em mentiras.
Através da
ficcionalização, transformar a crítica séria em coisas de nerds arrogantes ou
posturas pseudo-radicais.
Ficha
Técnica
Título: Mr.
Robot
Criador:
San Esmail
Roteiro:San Esmail
Elenco: Rami Malek, Carly Chaikin,
Portia Doubleday, Martin Wallström, Christian Slater
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
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Coleção Curtas da Semana
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Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes d...
Domingo, 30 de Março
Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>