quinta-feira, fevereiro 04, 2016
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Brilhante jogo de “narrativa em abismo” (um filme
dentro de outro filme e dentro de outro filme e assim por diante), o curta “O
Sanduíche” (2000) do brasileiro Jorge Furtado quer trazer o espectador dos
simulacros da tela para a realidade de um set cinematográfico – o que um
espectador acostumado a ver os filmes prontos na sala do cinema acharia de ver
ao vivo o filme sendo produzido no próprio set de filmagem? É o que Furtado
propõe: cair em um abismo narrativo até encontrar no final um prosaico sanduíche. Curta sugerido pelo leitor Rafael Mori.
Jorge Furtado é sem dúvida o cineasta brasileiro que mais profundamente
explorou a linguagem do formato curta-metragem. Ilha da Flores (1989) é o curta mais lembrado do cineasta e o mais
visto na história do cinema brasileiro – considerado pela crítica europeia um
dos 100 curtas mais importantes do século passado.
Em 2000 Jorge furtado lançou o curta O
Sanduíche, unindo experimentalismo e simplicidade e iniciando a sua
temática documental e metalinguística sobre as mídias que iria desenvolver de
forma cômica nos longas Saneamento Básico
(2007, analisado pelo blog, clique aqui) e séria em O Mercado de Notícias (2014) sobre as
mazelas do jornalismo brasileiro atual.
O curta O Sanduíche é um
exercício que em narrativa cinematográfica chama-se “narrativa em abismo”: um
filme dentro de outro filme e dentro de outro filme e assim por diante. Curta
instigante: imagens que, como se estivessem projetadas num espelho, refletem
outras imagens de si mesmas.
O curta começa com uma singela cena de separação, que revela-se ser
outra coisa. Sempre o final de alguma coisa é o início de outra – encontros,
separações e descobertas que procura levar às últimas consequências o princípio
metalinguístico de filmes dentro de filmes: um ensaio de uma peça de teatro
revela-se um filme dirigido por outro ator que está em outro set de filmagem
sendo dirigido por outro até tudo se converter em documentário onde espectadores
dão depoimentos sobre porque gostam do cinema.
O Sanduíche vai além da dualidade ficção e realidade,
mas como esses dois planos se confundem e se refletem até se tornarem uma coisa
só. Percebemos a desconstrução não só da técnica cinematográfica (diretor,
gruas, câmeras, refletores, cenários etc.) mas também da própria atuação do
ator – não sabemos mais quando vemos o personagem representado por um ator ou
um ator possuído pelo personagem.
O curta possui duas características presentes nos filmes gnósticos: a
ironia e o multifacetamento da realidade – a realidade como um constructo
artificialque se abre em múltiplos
níveis, ao estilo de filmes como O Décimo
Terceiro Andar (1999), O Império dos
Sonhos (Inland Empire, 2006)ou Um
Sonho Dentro de Um Sonho – Slipstream, 2007. Este último, mais próximo da
proposta de Jorge Furtado – onde um roteirista é contratado para reescrever um
filme de mistério e real, o roteiro, a mente e a filmagem do filme que o
protagonista roteiriza e do próprio filme que assistimos se confundem – sobre o
filme clique aqui.
Porém, falta um elemento decisivo que tornaria o curta O Sanduíche uma narrativa gnóstica: a
angústia de que perdemos a relação plena com a realidade, a desconfortável
sensação de hiato entre homem/mundo e, o mais importante, a situação dos
protagonistas prisioneiro em um desses mundos sem saber a existência dos demais
– cuja descoberta levaria à gnose. Ou no caso do curta de Furtado, uma bizarra
experiência dos personagens presos em um dos filmes e se deslocando
esquizofrenicamente pelos outros filmes, produzindo estados paranoicos ou
alterações de consciência.
O curta é muito mais um brilhante jogo formal, uma homenagem não só ao
cinema como também a transição da cena do teatro para a cena cinematográfica. E
também uma desmistificação do próprio cinema: os espectadores no final não assistiram
ao curta, mas a filmagem (a captação de imagens no set) do curta. O que é decepcionante
para o espectador médio, acostumado a ver o resultado final no cinema: “chato”,
“repetitivo”, “não sabia que demorava tanto”, são algumas percepções das
pessoas que viram no set o curta sendo produzido.
No final, Jorge Furtado quer trazer o espectador para a realidade: dos
simulacros da tela onde tudo é espelho refletindo outro espelho, cópia da
cópia, reflexo de outro reflexo, o curta quer nos conduzir para a mesma
realidade onde está o sanduíche – o único elemento do filme que se mantém constante,
está sempre lá atravessando todos os planos ficcionais.
E lá no final dessa narrativa em abismo, está a realidade e um
sanduíche.
Ficha
Técnica
Título: O
Sanduíche
Diretor: Jorge Furtado
Roteiro: Jorge Furtado
Elenco: Janaina Kremer Mota, Felipe
Mônaco, Nélson Diniz, Milene Zardo
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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