terça-feira, setembro 22, 2015

A ingenuidade semiótica das suásticas brasileiras

Era o que faltava! Em meio a atual atmosfera politicamente pesada de polarização e intolerância, eis que suásticas começam a se espalhar não só em cartazes de grupelhos neofascistas, mas agora também em instituições que deveriam trazer a esperança civilizatória em meio à barbárie: escolas públicas e universidades. Cheios de boas intenções (conscientizar, debater e denunciar), estudantes desfilam com suásticas e um estande de uma feira universitária transforma-se num bizarro parque temático nazista com prisioneiros judeus com camisas listradas com a estrela de Davi e alunas felizes e elegantes em seus uniformes da SS e braçadeiras com a indefectível suástica, posando para selfies. Nas suas ingenuidades semióticas, falam que as suásticas são apenas “expositivas”, com as melhores intenções pedagógicas,  como se as imagens pudessem ser neutras e apenas ilustrativas. Sem saberem, estão manipulando cepas de ícones-índices de alto poder viral com efeitos imprevisíveis em redes sociais e opinião pública.

Como se já não bastasse a pesada atmosfera atual de polarização que domina a opinião pública no País, de forma surpreendente o setor educacional (que deveria ser uma referência civilizatória em meio à barbárie) dá também sua contribuição à turbulência política, de forma ingênua e desajeitada.


Em um desfile promovido pela Prefeitura da cidade de Taboão da Serra, para comemorar o Dia da Independência, alunos representando uma escola municipal traziam nas mãos suásticas nazistas para representar os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim. O tema do desfile era “Olimpíadas” (alusão aos jogos olímpicos que serão disputados no Brasil no próximo ano) e para cada escola foi sorteada uma edição das Olimpíadas.


Em nota, a secretaria de educação do município justificou que a suástica teve apenas um “teor de representação de fatos históricos ocorridos na Alemanha”.

Das boas intenções ao inferno


De Taboão da Serra para a cidade de Bauru. Pouco tempo depois das pichações racistas com desenhos de suásticas nazistas no campus da Unesp com dizeres como “A Unesp está cheia de macacos” e “as mulheres negras fedem”, a USC (Universidade Sagrado Coração) promoveu a semana da Feira das Profissões 2015 onde mais uma vez suásticas foram expostas por uma instituição de ensino.

A feira da USC chamou a atenção ao apresentar os estudantes de História utilizando bandeiras com a suásticas e felizes alunos trajando o uniforme da SS e outros com a vestimenta dos prisioneiros judeus em campos de concentração, listrada e com a estrela de Davi – o que transformou o estande do curso de História da universidade em um mórbido parque temático nazista.

Repleto de boas intenções, a resposta da USC à polêmica falava que o estande era “expositivo” e que o propósito das imagens era “ensinar, conscientizar e abrir espaço para debates” e a “importância da Democracia, da Justiça e da Igualdade”.

Na prática, o resultado foram inacreditáveis selfies que se espalharam na redes sociais de estudantes alegres, felizes, sorridentes, confortáveis e elegantes em seus uniformes da SS e empunhando braçadeiras com a suástica. É inegável que houve alguma contradição entre forma e conteúdo, intenções e resultado.


O que há em comum nos episódios de Taboão da Serra e Bauru é uma concepção semioticamente ingênua de que as imagens podem ser meramente ilustrativas, como se existisse um grau zero da representação – as imagens como simples decalques da realidade.

Tabu e idolatria das imagens


Em toda História, a imagem nunca foi neutra: ela pode fascinar e exigir ser tocada (a chamada “imagem-índice”), pode inspirar somente prazer como na arte (“imagem-ícone”) ou ainda produzir distanciamento e reflexão – “imagem-símbolo”.

Por isso a imagem foi motivo de tabu e idolatria: das advertências do Velho Testamento bíblico sobre a idolatria por imagens à utilização propagandística da Igreja Católica com seus vitrais e afrescos com “imagens-índices” que produziam fascínio e temor.

Os designers do III Reich certamente compreendiam isso ao pegarem um símbolo esotérico (a “swastika”, na Índia associado ao “auspicioso”, Buda, ou a Ganesh, divindade da sabedoria) e converter em um ícone – com sua forma invertida, ganhou dinamismo com a nova apresentação em sinistrogira: como se girasse em sentido anti-horário.


Qualquer símbolo transformado em ícone ganha força viral de disseminação. Isso porque a imagem jamais é neutra (“ilustrativa” ou “expositiva”) – ela tem a força da intenção. Imagem é propaganda.

Os “déficits da imagem”


Para a Semiótica, quatro “déficits” impediriam a imagem de atingir essa suposta neutralidade ou representação objetiva da realidade:

a) A imagem ignora o enunciado negativo. Toda imagem é afirmativa, auto-suficiente e completa. É impossível negar um objeto por meio da apresentação da sua imagem em uma proibição, um programa ou um projeto. Dessa maneira, como conscientizar sobre os horrores do nazismo expondo publicamente a suástica e uniformes? Como proibir mostrando publicamente o que é negado?

b) A imagem só pode mostrar o particular em um contexto particular e não categorias ou tipos. Toda imagem descontextualiza por ser auto-suficiente. Por isso, bandeiras e cartazes com suásticas e uniformes negros da SS fora do contexto transformam-se em parques temáticos afirmativos. Operadores linguísticos de negação ou de contextualização existem apenas nos símbolos – no texto, na palavra etc. Porém, o símbolo é impotente diante da força viral da imagem, principalmente exposta publicamente. O símbolo é consumido individualmente, enquanto a imagem tem uma força coletiva.

c) A imagem ignora operadores sintáticos de disjunção (ou... ou) e da hipótese (se... então).  A imagem só procede por adição e justaposição sobre um único plano da realidade. Toda imagem é alógica. Por isso que negar o nazismo apresentando suas imagens propagandísticas é impossível. Isso somente é possível no audiovisual onde as imagens são editadas e montadas em uma narrativa lógica. Por isso soa ingênuo montar estandes ou desfilar com cartolinas expondo suásticas.

d) A imagem ignora marcadores de tempo. Toda imagem aspira ao eterno. Por isso ela é sempre contemporânea – o futuro ou o passado não têm equivalente visual. A imagem sempre é presente, a não ser em um audiovisual onde uma voz em off descreva temporalmente a imagem. Por isso, a força propagandística das imagens: arranca-las do passado para serem expostas no presente as ressuscita, tornam-nas atuais – sobre esses “déficits da imagem” leia mais em DEBRAY, Regis. Vida e Morte da Imagem, Vozes, 1992.


Imagem é magia, fetichismo e vírus


Talvez todos os tabus e proibições em relação às imagens em diversas culturas e religiões (como, por exemplo, na lei mosaica – “Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra ou nas águas debaixo da terra”, Êxodo 20:4-6) não sejam meras crendices ou superstições.

Há algo de magia e fetichismo nas imagens que as tornam perigosamente indiciais, assim como na idolatria o ícone se transforma no próprio corpo e sangue santificados. Convertendo-se em imagens-índices produzem efeitos físicos e virais.

Assim como nenhuma feira de ciências escolar colocaria alunos em um estande manipulando cepas do vírus ebola ou da gripe espanhola, da mesma forma nenhum trabalho escolar ou feira universitária deveria colocar estudantes manipulando imagens com alto poder semiótico viral.

Principalmente no momento atual onde a atmosfera é altamente condutora para a disseminação dos efeitos dessas imagens-índices. Basta ver o exemplo de cartazes espalhados na cidade de Niterói-RJ com ícones inspirados na Ku Kux Klan ameaçando homossexuais, muçulmanos e comunistas e pregando a intolerância religiosa e sexual.

Persistindo na metáfora viral sobre o poder dessas imagens-índices, tal como no mundo das pesquisas bio-científicas as imagens como suásticas e uniformes da SS apenas deveriam ser manipuladas e estudadas em grupos fechados de pesquisas ou salas de aula com a assistência de professores especialistas. Expor essas imagens publicamente, mesmo com as melhores intenções de conscientização e denúncia, corresponderia a mesma ingenuidade de alertar sobre os riscos de um determinando vírus expondo publicamente cepas da doença para mostrar quão horrível é o aspecto do mal.

E mesmo sob ambiente controlado, ainda assim são perigosas e sujeitas a acidentes como o relatado pelo filme A Onda (2008), baseado em caso real ocorrido em 1967 em uma escola secundária nos EUA: discutindo a atualidade dos regimes autoritários, um professor propõe um exercício pedagógico de recriar um movimento político em sala de aula, baseado em símbolos, saudações e uniformes. O movimento foge ao controle do professor, criando uma onda de intolerância e autoritarismo na localidade.

Essa ingenuidade semiótica demonstrada por professores e alunos tanto de uma rede municipal como de uma Universidade comprova o atual analfabetismo visual, em grande parte responsável pelo próprio analfabetismo político.

Seria o caso de sugerir para a USC de Bauru uma disciplina como Semiótica da História ou um curso  de alfabetização visual tanto para alunos como professores da rede municipal de ensino não só do Taboão.

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