domingo, maio 31, 2020

Na série "The Midnight Gospel" zen-budismo é a filosofia perfeita para nosso universo simulado


Cada episódio da série de animação “The Midnight Gospel” (2020-) é um intensivo exercício pop de meditação: tentamos acompanhar os longos diálogos sobre vida e a aceitação da morte sobre o ponto de vista zen-budista, enquanto os protagonistas estão em mundos de colorido intenso e muitas vezes com violência gráfica pesada que tenta desviar nossa atenção. Como se a narrativa nos obrigasse a buscar o silêncio interior perante o caos barulhento da realidade. O protagonista Clancy faz entrevistas para um “spacecast” em um Universo dentro de simuladores cuja interface é análoga a games de computadores. É exatamente essa a ironia metalinguística central do filme: seres de um universo simulado cujas reflexões zen-budistas de que “tudo é um vazio de qualidade inerente” ou de que “vivemos em uma ilusão” é a filosofia perfeita para entidades digitais vazias e sem alma. A série flerta com o niilismo e solipsismo: seriam as filosofias orientais perfeitas para a nossa condição existencial de vivermos num Universo simulado análogo aos mundos de “Midnight Gospel”?

Nos anos 1980, o psicólogo e neurocientista considerado o papa do LSD, Timothy Leary, ficou tão fascinado com os computadores que acreditava que em pouco tempo o ciberespaço substituiria as drogas alucinógenas: a própria experiência virtual e os games digitais substituiriam o barato químico. Seria a própria realização do conceito de ciberespaço, do imaginário ciberpunk do livro do escritor William Gibson, Neuromancer.
Mundos virtuais como fossem uma alucinação consensual - o ápice da chamada geração paz e amor dos anos 60-70 – drogas, paz e comunhão tecnológica.
Assistindo pela primeira vez a animação na plataforma de streaming Netflix, The Midnight Gospel (com um visual selvagem, surreal e psicodélico com universos compostos por personagens polimórficos), é impossível não lembrar dos seres fantásticos que habitavam os mares do Tempo, dos Buracos e dos Monstros, na animação dos Beatles Yellow Submarine, de 1968. 
Porém, lá na década de 1960, o submarino amarelo dos fab four era impulsionado pela lisergia do LSD. E aqui, no século XXI, The Midnight Gospel (2020-) pretende ser uma experiência ao mesmo tempo sensorial e filosófica. Só que, dessa vez, impulsionada pela cultura geek computacional que tanto impressionou Thimoty Leary, a ponto de acreditar que o LSD estava superado como forma de experiência mística de autodescoberta.

Mas lá no começo dos anos 1980 era tudo seminal, e Leary ainda via os computadores como uma ferramenta tecnológica que substituiria a via química sintética. Bem diferente do século XXI, onde o paradigma digital (mundos telemáticos e virtuais de games, redes sociais etc.) chegou a um nível ontológico e até mesmo cosmológico – seria o próprio Universo um gigantesco game de computador? E nós, apenas avatares que desesperadamente buscam senciência por meio de religiões, filosofias e da própria tecnologia? Hipótese cada vez mais levada a sério por físicos e filósofos – clique aqui e aqui.

Exercício de meditação

The Midnight Gospel, criação da dupla Pedleton Ward (Hora de Aventura) e Duncan Trussell, é uma adaptação de conversas selecionadas do podcast “The Duncan Trussell Family Hour”, no qual Duncan entrevistava uma série de personalidades sobre suas filosofias de vida em torno de religião, morte, além, reencarnação, budismo, magia, tristeza, imortalidade etc. 


Mas, principalmente, sobre as práticas de meditação dos convidados. Aliás, essa parece ser a qualidade que os episódios exigem do espectador, enquanto o protagonista viaja para diferentes mundos num multiverso simulado (lembrando muito a série Rick e Morty) e trava conversas orgânicas com cada anfitrião: profundos diálogos filosóficos como, por exemplo, o comparativo dos métodos de busca de Iluminação entre a magia ocidental e as religiões orientais como Budismo e Taoísmo.
Essas conversas intermináveis são travadas enquanto os personagens enfrentam jornadas muitas vezes violentas e ultrajantes: uma discussão sobre drogas e iluminação espiritual num mundo que está sendo destruído por um apocalipse zumbi; ou uma discussão sobre Magia e Budismo no “Planeta dos Palhaços” onde um lote de novos palhaços robóticos está devorando todos os habitante do planeta – somos obrigados a nos concentrar na essência dos diálogos, enquanto mundos de colorido intenso e muitas vezes com violência gráfica pesada tentam nos desviar a atenção. 
Midnight Gospel é a própria prática da meditação – nos afastar do barulhento caos do mundo exterior buscando o silêncio interior.
A série partilha de uma característica marcante das animações atuais, seja infanto-juvenis como adultas: a metalinguagem. O protagonista chamado Clancy explicita sua missão: "Existem mundos maravilhosos dentro desses antigos simuladores, cheios de seres inteligentes com histórias para contar. E eu vou entrevistá-los, colocar minhas entrevistas on-line e ganhar muito dinheiro".
Clancy faz um spacecast. Num Universo com planetas e galáxias dentro de simuladores cuja interface é análoga a games de computadores. É exatamente essa a ironia metalinguística central do filme: seres de um universo simulado cujas reflexões zen-budistas são repletas de aforismos como “tudo é um vazio de qualidade inerente” ou de que “vivemos a ilusão de sermos um Eu separado”, e mais ainda: “não existe um Clancy essencialmente verdadeiro, não existe essência de nada... os budistas tibetanos chamam isso de clara de luz...”.
É irônico porque parece que a filosofia zen-budista é a que melhor resumiria a condição ontológica aqueles mundos simulados: de fato, não há essências ou Eus. Todos não passam de nódulos numa rede. Alguns parecem adquirir alguma senciência e tentam entender a própria condição. Outros chegam até se revoltar, e tornando-se prisioneiros em planetas com torres penitenciárias.


A série

Clancy (voz do próprio Duncan Trussell) é um garoto que acabou de chegar da Terra. Ele comprou on line um terreno barato naquela dimensão chamada “The Chromatic Ribbon” onde agricultores cultivam universos inteiros simulados através de poderosos computadores híbridos bio-eletrônicos para arrancar desses mundos novas tecnologias e ganhar muito dinheiro. 
Clancy parece que deu um passo maior do que as pernas, como confessa no episódio 6 (“Mente Superlotada”): possui um computador de simulação que não é lá grande coisa e vive apresentando defeitos, com uma Inteligência Artificial com sucessivos lapsos.
Ele percorre um painel com inúmeros ícones de planetas – muitos deles já extintos, destruídos ou em via de desintegração. Escolhe o planeta e seleciona um avatar, como na interface de qualquer game de computador. Então enfia a cabeça numa espécie de apêndice globuloso que emula uma vagina. 
Da região do terceiro olho é projetado o seu Eu que é disparado à velocidade da luz, passando por incontáveis planetas e cometas, até literalmente despencar em um novo mundo – que sempre está passando por algum tipo de crise apocalíptica ou é regido por algum tipo de sistema sanguinário, como no “Planeta dos Palhaços” (episódio 3 “Vomita Sorvete?”): pequenos habitantes do planeta vão para um matadouro, enquanto Clancy e seu entrevistado conversam sobre a aceitação da morte. Seus avatares passam a metade do episódio como pedaços de carne processada se agitando num elaborado sistema de esgotos.
E lá vai o podcaster, seguido por uma pequena frota de drones com câmeras e microfones. Ele é um aspirante a “astronautas espacial”, hospedando sua série chamada “Midnight Gospel” – assim seria o podcasting de um astronauta do futuro que explorasse todos os cantos perdidos de um Universo computacional finito.


A ironia fundamental

O episódio 5 (“O Rei das Colheres”) talvez seja o episódio que sintetize essa ironia fundamental da série: meditação e zen-budismo é a filosofia perfeita para avatares e outras entidades da fauna dos mundos virtuais – filosofia que prega o abandono do Eu e o entendimento da não existência essencial de tudo cai como uma luva. Afinal, como seres virtuais, são apenas pontos em uma rede – “atmans”, uma consciência fractal que, à sua maneira (chama-se isso de “consciência”) reflete a totalidade. 
Atmans perdidos no vício de “Maya”, a ilusão da realidade.
Nesse episódio encontramos prisões verticais (também é impossível não lembrar do filme O Poço – clique aqui) no qual avatares revoltados tiveram sua língua cortada e foram colocados em celas nas quais um tenta matar o outro. 
A morte é uma ilusão, como tudo: faz parte do conceito budista de “bardo” - estados de existência dentro do fluxo contínuo da vida, da morte e da reencarnação. Palavra tibetana que quer dizer “transição” ou “intermediário”. 


A apresentação mais simples no livro budista tibetano Bardo Thodói (“Libertação do Estado Intermediário”), conhecido também como “Livro Tibetano dos Mortos”, descreve quatro bardos: o da vida, o do momento da morte, o bardo da vacuidade (a consciência fundamental da luz do próprio espírito) e o do renascimento.
De forma rápida e simbólica, esses estágios são representados pelas sucessivas mortes de um dos presidiários, cujo atman (representado por uma ave, um “psicopombo”, conectado ao corpo de seu “dono” por um fio prateado – para a projeção astral, o liame que une o corpo físico ao astral) é entrevistado para o spacecast de Clancy.
A luta pela conquista da luz espiritual interior e a gnose do prisioneiro leva à iluminação final: a consciência do seu “vazio” – ele é apenas uma simulação digital num universo computacional.
Toda a curiosidade mística do spacecast de Clancy parece buscar a iluminação espiritual. Enquanto os outros “agricultores de universos simulados” na dimensão Chromatic Ribbon buscam tecnologias rentáveis, Clancy busca a gnose. Paradoxalmente em mundos simulados, entrevistando entidades digitais que desconhecem sua natureza virtual. Discutem fatos da existência como a vida, a morte, medo e solidão sob a perspectiva zen-budista, sem se dar conta que literalmente eles são vazios, sem essência. 
Como fosse uma confirmação irônica, por vias tecnológicas, das milenares filosofias orientais.
Dessa maneira, Midnight Gospel oferece um retrato oportuno da solidão e solipsismo na atual era da cultura digital. Clancy vive um autoexílio, longe de qualquer pessoa, para se enterrar profundamente nos mundos simulados. Seria ele um viciado em videogame?
Nesse jogo, todos os entrevistados aspiram a uma alma. Mas são tão vazios quanto uma simulação. Midnight Gospel, portanto, partilharia da teoria do Universo como uma gigantesca simulação computacional?  
Essa parece ser a mensagem profunda da série: niilismo e solipsismo. No final, nada importa! Estamos em um Universo simulado, assim como os avatares de Midnight Gospel
E o zen-budismo parece ser a filosofia perfeita para nós, para alcançarmos uma iluminação que se assemelharia a uma espécie de senciência metalinguística: a inexistência do Eu não tem a ver com alguma sagrada relação de pertencimento com alguma deidade – seríamos apenas nódulos digitais numa rede de simulação manipulada por agricultores cósmicos: os Demiurgos, dos quais tanto fala os Evangelhos Gnósticos Apócrifos de Nag Hammadi. 

Ficha Técnica 

Título: Midnight Gospel (série de animação)
Criadores: Duncan Trussell
Roteiro: Pendleton Ward
Elenco: Joe Diaz, Ducan Trussell, Phil Hendrie
Produção: Netflix, Titmouse
Distribuição:  Netflix
Ano: 2020-
País: EUA

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