segunda-feira, maio 04, 2020

A construção midiática da mitologia da pandemia


Vírus são pequenos agentes infecciosos do reino submicroscópico. Assim como o vírus possui uma cápsula proteica para aderir na célula hospedeira, também a sociedade possui uma, digamos assim, cápsula semiótica (de discursos, sentidos e significações midiáticas) que adere aos eventos naturais, dando-lhes um sentido e significado através da ideologia do momento. E nesse momento é o da Biopolítica, cujo projeto é destruir as bases da democracia liberal – direitos individuais, equilíbrio dos poderes e parlamento. Diferente da epidemia da meningite na ditadura militar, encoberta pela censura do regime, agora a pandemia é mostrada. Porém, dentro da construção semiológica que o linguista francês Roland Barthes chamava de “mitologia”: a narrativa da letalidade do COVID-19 como uma fatalidade do mundo natural dos micro-organismos. Uma fatalidade que apenas joga sobre a população o peso das omissões deliberadas e irresponsabilidades dos governos comprometidos com a agenda das reformas econômicas neoliberais. Transformando o isolamento social em imperativo moral. Ocultando a ação biopolítica: controle social e garantia da liquidez da banca financeira.

Em 1974 uma epidemia de meningite meningogócica assolou o País e pegou as autoridades sanitárias despreparadas em plena ditadura militar brasileira. O número de casos crescia, ao mesmo tempo que o Governo era incapaz de importar, em curto prazo, a quantidade necessária de doses de vacina.
O regime militar censurava qualquer menção à doença nos meios de comunicação. Enquanto a moléstia eclodia nas áreas mais carentes e periféricas dos grandes centros urbanos, a censura funcionava. Até que os números de óbitos começaram a serem relatados nos bairros nobres do Rio e São Paulo. Então, já não era mais possível fingir que nada estava acontecendo. Mas já era tarde: os números já eram exponenciais, resultando em mais um desastre humanitário na ditadura militar.
Hoje, com a globalização midiática e a circulação das informações em tempo real, seria impossível esconder uma catástrofe sanitária. O mundo vem acompanhando, passo a passo, as informações do crescimento da pandemia COVID-19 desde o seu surgimento no início desse ano.
Porém, informar não significa necessariamente comunicar. Ou melhor, num cenário midiático monopolizado por grandes corporações midiáticas quase nunca informação e comunicação coincidem.
Essa desarticulação informação/comunicação é produzida por complexas operações semióticas. Na verdade, operações paradoxais: nada pode ser escondido, a informação deve fluir livremente como “conteúdo” em portais, sites, blogs, telejornais e jornalões. Como é possível deformar, esconder ao mesmo tempo em que se mostram imagens e áudios? 


Os tempos de censura eram mais simples: bastava esconder, dissimular, dizer que nada estava acontecendo. Agora, as estratégias semióticas são mais complexas: é necessário simular, deformar, enquanto os acontecimentos são relatados. 
Estamos entrando no campo das construções das mitologias, tal como descrita pelo linguista e semiólogo francês Roland Barthes: transformar a realidade em signos esvaziados da sua contingência, evaporando a história e sociedade num discurso despolitizado. Retira os acontecimentos da História e da Sociedade para inseri-los na Natureza.
Como realizar esse aparente paradoxo, mostrar ao mesmo tempo em que esvazia?
Uma prestidigitação inverteu o real, esvaziou-o de história e encheu-o de natureza (...) O mito não nega as coisas; a sua é, pelo contrário, falar delas; simplesmente purifica-las, fundamenta-as na natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza não de explicação, mas de constatação. (...) Passando da história à natureza, o mito faz economia: abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, organiza um mundo sem contradições: as coisas parecem significar sozinhas, por elas próprias – BARTHES, Roland. Mitologias, Difel, p.163-164.
                   Transformar fenômenos sociais em naturais e políticos em posições polarizadas (a crítica “ném-ném”, como dizia Barthes) não é, senão, operações semióticas de construção das mitologias. E nesse momento de crise sanitária, a nova mitologia da biopolítica.

Giorgio Agamben

Legitimar a janela de oportunidades

Uma pista para entendermos esse discurso que se sobrepõe a atual crise do novo coronavírus são as reflexões do filósofo italiano Giorgio Agamben. Para ele, estamos vivendo o fim das democracias liberais fundadas em direitos, parlamentos e equilíbrio dos poderes, para dar lugar uma nova forma de despotismo – por razões de “saúde pública” qualquer limite pode ser imposto sobre as liberdades individuais – clique aqui
Para Agamben, “o controle que é exercido através de câmeras de vídeo e agora, como foi proposto, através de telefones celulares excede, em muito, qualquer forma de controle exercido sob regimes totalitários como o fascismo ou o nazismo”. É aquilo que o filósofo Zizek chama de “sonho erótico totalitário”.
Como legitimar essa janela de oportunidades que se abre para o totalitarismo na atual pandemia? A mitologia biopolítica, como destaca Agamben: 
“Surge a dúvida legítima de que, espalhando pânico e isolando as pessoas em suas casas, queríamos jogar sobre a população as sérias responsabilidades dos governos, que primeiro desmantelaram o serviço nacional de saúde e depois, na Lombardia, cometeram uma série de erros não menos graves no enfrentamento da epidemia”.
Vírus são pequenos agentes infecciosos acelulares do reino submicroscópico. Assim como o vírus possui uma cápsula proteica para aderir na célula hospedeira (de bactérias, fungos ou animais), também a sociedade possui uma, digamos assim, cápsula semiótica (de discursos, sentidos e significações) que adere aos eventos naturais, ressignificando-os na biopolítica.
                  Como fenômenos biológicos que eclodem na sociedade, o grau de letalidade é ampliado ou minimizado por vetores sócio-políticas: políticas sanitárias, desigualdade social, agenda das políticas econômicas etc.



Letalidade semiótica

E com o COVID-19 não é diferente. O grau de letalidade varia muito de país para país, dependendo das condições sócio-econômicas. É precisamente esse o ponto sensível para a “capsula semiótica” da sociedade – a causa é biológica, mas os efeitos são sociais e políticos. É precisamente isso que precisa ser mitigado, ocultado por meio de uma mitologia: o vírus tem que se transformar em um signo natural e esvaziado de história.
Antes de salvar os cidadãos, a sociedade tem que salvar a si própria: manter a integridade ideológica que mantém a coesão social na desigualdade e luta de classes. 
Como? Em linhas gerais, através daquilo observado pelo filósofo Giorgio Agambem: jogar sobre os cidadãos a responsabilidade da letalidade da pandemia viral.
O “teaser” foi dado pela própria OMS. Para ela, os fatores que determinam as diferentes taxas de mortalidade são a faixa etária dos infectados, quantos testes o país está fazendo e como sistemas de saúde estão se saindo. Nada a dizer sobre o porquê as maiores taxas de mortalidade estão naqueles países que adotaram a agenda neoliberal de austeridade fiscal e desmontaram seus serviços públicos de saúde, como Brasil (SUS), EUA (o chamado “Obamacare”) e Itália (o SSN).
Tapumes cercando praças, denúncias de pessoas que desrespeitam o isolamento social, monitoramento o movimento de cidadãos por meio dos celulares, bloqueios em grandes vias de circulação tornam-se o foco da cobertura da grande mídia.
Campanhas de conscientização como o #ficaemcasa assumem um ponto de vista das classes privilegiadas: livestreaming dos Rolling Stones, do Dj Alok, crônicas engraçadas nos telejornais sobre “corona maridos” e “corona filhos” (como fazer o marido lavar os pratos e gastar as energias dos filhos), vídeos de cidadãos “conscientes” fazendo circuit training em amplas salas de estar de classe média, o caso do homem que cumpriu uma maratona dando voltas no seu quintal e assim por diante.
                   Em contraste, são apesentando imagens das periferias nas quais não são respeitadas as normas de isolamento social: “pancadões” nas ruas, aglomeração de pessoas em campos de futebol... Uma matéria do Fantástico do último domingo apresenta um sociólogo racionalizando: diz que as periferias possuem “valores diferentes das classes médias e altas”.



O Estado contra os cidadãos

Discurso das “essências” e “naturezas” que ocultam as condições de desigualdade social que as medidas de isolamento encontram a sociedade: como fazer “isolamento” em vielas apinhadas de cubículos com, por exemplo, seis pessoas morando?
Enquanto a equipe econômica gasta pouco menos de 48 horas para injetar liquidez no sistema financeiro, o Governo cria uma verdadeira corrida de obstáculos para os pobres conseguirem por as mãos no auxílio emergencial – enquanto cinicamente as autoridades falam que tudo pode ser resolvido pela Internet, o aplicativo não funciona e filas se comprimem nas agências da Caixa Econômica. 
E vemos apresentadores de telejornais escandalizados pelo descumprimento do isolamento social.
                   O ardiloso jogo semiótico criptografado do jornalismo corporativo embaralha ainda mais a atenção do respeitável público com incessantes falsas polarizações: negacionistas X cientistas, Bolsonaro X OMS, Bolsonaro X governadores e assim ad infinitum...



Bolsonaro, bolsomínios histéricos e negacionistas em geral são os “malvados favoritos” da vez. A cada final de semana vemos um presidente surtado falando que vai fechar Congresso e STF, apoiado pela claque de bandeiras e faixas financiadas pela Havan. 
E tudo que a grande mídia tem a dizer é que o presidente é “negacionista” e desrespeita as medidas sanitárias de isolamento. 
Enquanto isso, a mitologia do COVID-19 construída diariamente pela mídia salvaguarda aquilo que é mais importante para o jornalismo corporativo e a banca financeira: a agenda neoliberal da austeridade fiscal como a esperança iluminista de nos salvarmos após a crise sanitária. 
 A própria política econômica ampliou a letalidade do COVID-19. Mas a mitologia midiática circunscreve o problema ao inescrutável mundo dos micro-organismos, com seus heróis da linha de frente: cientistas, médicos e enfermeiros. 
A pandemia virou uma guerra biológica. Enquanto a cápsula semiótica que adere à sociedade oculta a verdadeira guerra: Governo e Estado estão em guerra contra os próprios cidadãos.

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