domingo, maio 24, 2020

Suposto vídeo devastador revela aliança oculta entre o Brasil Renitente e o Brasil Profundo


“Conteúdo devastador!”. Seria a bala de prata para as pretensões de Bolsonaro. Finalmente o STF liberou o “fatídico” vídeo da reunião ministerial. Mas a decepção foi diretamente proporcional às expectativas criadas em relação à divulgação. Nesse momento, a grande mídia faz esforço hercúleo para manter a narrativa das “provas” do ex-ministro Sérgio Moro. E manter Paulo Guedes afastado da “ala ideológica”, poupando-o (e também a agenda neoliberal) da contabilidade dos palavrões e xingamentos. Virou uma peça de propaganda do “Bolsonaro-raiz”. Porém, o tiro de festim do vídeo acertou naquilo que não mirou: revelou a aliança oculta entre o “Brasil Profundo” e o “Brasil Renitente” (a elite obstinada em manter a ordem “Casa Grande e Senzala”) com o apoio da grande mídia. Graças à guerra híbrida, o “Brasil Profundo” de seitas ao estilo Jim Jones e David Koresh ganharam tradução política e chegaram ao Estado. Lances de guerra criptografada como esse vídeo são jogadas do “Brasil Renitente” - com um roteiro de teledramaturgia traçado pela grande mídia, mantém o distinto público eletrizado pela montanha russa dos acontecimentos. 

Nos últimos dias, trechos do vídeo da reunião ministerial eram vazados enquanto a mídia batia bumbo: “vídeo confirma integralmente as denúncias de Moro”; “extrema relevância”; “vídeo pode comprometer Bolsonaro”; “o vídeo que pode resultar em impeachment”; “conteúdo devastador” e assim por diante em crescentes superlativos.
Suspense! O ministro Celso de Mello vai liberar o vídeo na integralidade ou apenas partes? Na tarde de sexta-feira, apresentadores e analistas dos canais de notícias CNN e Globo News faziam uma espécie de vigília e não se continham consumidos pela ansiedade, contando os minutos para o STF liberar o “fatídico” vídeo.
Pedida pela defesa do ex-ministro Sérgio Moro como prova da interferência do presidente na Polícia Federal para proteger seu clã e apaniguados, finalmente vídeo e transcrição foram liberados quase na íntegra no final daquela tarde... e a montanha pariu um rato!
A decepção foi diretamente proporcional às expectativas criadas em relação à divulgação. Sobre a questão central do vídeo (Bolsonaro cometeu crime?), tudo acabou se diluindo numa guerra semântica de versões.
De um lado, o empenho hercúleo dos jornalistas, principalmente da Globo, em sustentar a narrativa de Moro: agora, as imagens do vídeo seriam apenas a primeira peça de uma investigação mais profunda que se inicia... de bala de prata virou primeiro capítulo de uma novela. Nunca se viu tanto usar a palavra “contexto” para dar sentido as expressões de Bolsonaro como “segurança minha lá do Rio”.



E do outro, aqueles que avaliaram o conteúdo como inofensivo e até benéfico para o presidente: ao final, o vídeo foi uma peça de propaganda: mostrou o “Bolsonaro-raiz” em flor – linguagem tosca, recheada de palavrões e xingamentos - o JN ocupou parte do seu tempo para contar o número: 37 palavrões, sendo 29 só do presidente e oito dos ministros.

Freak show

Nenhuma surpresa. Até aqui, o vídeo apenas confirmou o “ethos” da fauna que ocupa o Governo: Paulo Guedes arrogante dizendo que leu Keynes antes de ser traduzido e gritando que “tem que privatizar essa porra aí!”; o raivoso Weintraub ameaçando prender vagabundos, “prá começar o STF!”; Bolsonaro chamando governadores de “bosta” e “estrume”; enquanto Damares Alves histericamente gritava “VALORES!, VALORES!” – freak show total.


Tudo isso apenas soou como música aos ouvidos do núcleo duro dos bolsomínios. Só faltou Bolsonaro ter um porrete na mão para bater violentamente na mesa, como fazia o finado jornalista policial e deputado estadual Luiz Carlos Alborghetti: nos anos 1990,  no programa Cadeia Nacional, tinha na mão direita um porrete que usava para descontar sua raiva contra “corruptos, bandidos, políticos, criminosos dadores de bundas e governadores bundões” – destruía ao vivo qualquer objeto que estivesse à sua frente, principalmente a mesa.
Alborghetti era ainda uma voz folclórica do Brasil Profundo, que ainda não possuía uma tradução política. Política cuja hegemonia era ainda do Brasil Renitente:  daquela elite que obstinadamente sempre tentou perpetuar os privilégios do passado escravagista da divisão Casa Grande e Senzala, mesmo com a modernização da agenda neoliberal que inseriu o País no capitalismo global.

Tradução política

Em outras palavras, as únicas provas que o vídeo nos ofereceu foram as de que o País é governado por aquela parte profunda na Nação que de forma inédita ganhou tradução política através da democracia formal: “sicofantas e teóricos, pessoas ideológicas, sem pragmatismo ou mesmo experiência prática em resolver problemas igualmente práticos da população... governar para a minoria, auxiliares agressivos e que não fazem o menor esforço para ampliar o apoio político”, como muito bem definiu o cientista político Alberto Carlos Almeida – clique aqui.
No passado, porções profundas de qualquer país, representadas por figuras emblemáticas como Alborghetti, sempre foram circunscritas a seitas ou pequenos grupos de recalcitrantes ou negacionistas que se isolavam da civilização em algum grupo religioso ou messiânico à espera do fim do mundo ou de alguma forma de justiça escatológica.
Por exemplo, Jim Jones ou David Koresh foram profetas que arrastaram seguidores para algum lugar perdido, respectivamente, nas Guianas (1978) ou no interior do Texas (1993), onde encontrariam a morte seja pelo suicídio em massa (no “Templo do Povo”, de Jim Jones) ou num incêndio – na seita do “Ramo Davidiano”, de Koresh.

Jim Jones e David Koresh: quando as profundezas de um país vivia fora do sistema político

A Primavera do Brasil Profundo

O problema é que a guerra híbrida que produziu a “primavera” política necessária para apear do poder os governos trabalhistas abriu a janela de oportunidades inédita para, finalmente, esse Brasil Profundo ganhar tradução política.
Desde 2011 esse Cinegnose já vinha alertando para a escalada do Brasil Profundo como movimento que, pouco a pouco, ganhava significado político: ciclistas atropelados intencionalmente em Porto Alegre, bullying digital e redes sociais invadidas por mensagens de ódio de grupos como o “Orgulho Paulista”, organizadores de acampamentos pró-impeachment em 2016 na Avenida Paulista acusados de estelionato e assédio sexual - pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que confundiam militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas de toda sorte – clique aqui e aqui.
A natureza desses movimentos profundos sempre foi antissistema, negacionista, anticivilizatória – sintomas daquilo que Freud chamava de “mal-estar da civilização”. E de forma coerente, sempre se isolaram, viveram à margem da sociedade, tentando anunciar para todos a proximidade do final dos tempos.
Mas dessa vez, conseguiram uma paradoxal tradução política: agora são antissistemas dentro do sistema. São negacionistas e anticivilização dentro das próprias instituições civilizatórias democráticas: representatividade, Estado laico, equilíbrio e separação dos poderes, partidos políticos, opinião pública etc.

Lance na guerra criptografada

Mas esse episódio do vídeo que abalaria a República, mas que não passou de tiro de festim, é mais revelador do que parece à primeira vista. Por um outro motivo.
As expectativas insufladas e a espiral de interpretações semântica e de “contextos” é claramente mais um lance na guerra criptografada feita para embaralhar a percepção do respeitável público – em última instância, para salvar a agenda neoliberal da catástrofe humanitária da pandemia COVID-19: a culpa da letalidade está no vírus e não na austeridade fiscal que desmontou o atendimento público de saúde.

Provas de Moro? Informações "sigilosas" em uma reunião filmada e telas de um aplicativo popular?

Afinal, que reunião “secreta” foi essa, com um material supostamente tão sigiloso e devastador, que tinha garçons servindo ministros e ainda por cima foi filmada? Lembra outras “provas” de Moro: telas de conversas por WhatsApp – como? Conversas sigilosas através de um popular aplicativo de mensagens? 
Será então que tudo não passa de produção deliberada de telecatchs políticos para ocultar o essencial?
Porém, o vídeo foi um tiro de festim que acertou naquilo que não mirou: revelou não só os intestinos do Brasil Profundo que está no poder, mas principalmente como o Brasil renitente tenta se equilibrar nessa corda bomba. Através do auxílio luxuoso da grande mídia.
Se não vejamos:
(a) Aquela elite política do Brasil renitente ainda vê em Bolsonaro, o líder do Brasil profundo, a única oportunidade de impor reformas que ao mesmo tempo cumpra a agenda neoliberal imposta pela guerra híbrida do Deep State norte-americano (Big Money e Big Pharma) e, também, mantenha seus privilégios de uma persistente ordem escravocrata. Por isso apaixonadamente atuam nesse telecatch: mordem e assopram, apertam a corda até um certo ponto para depois afrouxar... eletrizando a opinião pública que se diverte nessa montanha russa;
(b) É sintomático como Paulo Guedes está sendo poupado na contabilidade dos palavrões, bravatas e grosserias que a grande mídia está pacientemente fazendo. Apesar de ter na reunião mostrado toda a sua arrogância entremeada de baixo calão e ameaças, a grande mídia tenta separá-lo da “ala ideológica”.  Suas “reformas estruturantes” são levadas tão à sério quanto eram as ponderações do “cientista” Mandetta – logo ele, que deu início ao desmonte do SUS. Junto com Moro, tentam sustentar a narrativa que são o núcleo de racionalidade num governo de malucos. Mas que está prestando relevantes serviços ao Brasil renitente;

A esquerda assume o personagem no roteiro da guerra criptografada: o wishiful thinking

 (c) Ingenuamente, a esquerda acredita que a grande mídia está arrependida de ter apostado suas fichas no Brasil profundo. “Toma que o filho é teu!”, ironiza a esquerda. Porém, é o contrário: nunca antes a grande mídia, através do seu jornalismo corporativo, atirou-se de forma tão apaixonada numa guerra criptografada – deliberadamente alimenta telecatchs, como fosse o núcleo de teledramaturgia das suas novelas, febrilmente escrevendo roteiros dos próximos capítulos.
Obviamente, a esquerda pratica seu indefectível wishiful thinking: o PT, junto com aliados, entra com pedido de impeachment. Como cumprimento de um ritual, entra no papel determinado pelo roteiro do telecatch – faz o que se espera dela... se não dar em nada, pelo menos pode dizer que fez alguma coisa...
Portanto, esse vídeo é menos devastador e muito mais revelador: encontramos ecos de Jim Jones e David Koresh. O problema é que eles estão no Governo e, até aqui, de forma bem-sucedida continuam a escalada da conquista da máquina do Estado. E não temos um FBI que faça um cerco, como em Waco, no Texas.

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