Indo muito além da Disney e das funções pedagógicas atuais, os contos de fadas são duros e cruéis: são menos lições de moral e muito mais guias de sobrevivência numa época em que não se acreditava na inocência das crianças. Eram tratadas de forma grosseira como adultos em miniatura. Foi pensando nisso que “Maria e João: O Conto das Bruxas” (Gretel & Hansel, 2020) faz uma adaptação do conto clássico que, como nos informa o título, promete uma subversão feminista. Mas vai além: busca uma interpretação mais universal, cósmica e gnóstica do drama de duas crianças perdidas e famintas numa floresta escura. Não é mais um conto de crianças que tentam voltar para casa, mas buscam autoconhecimento através da magia – a bruxa e o Sagrado Feminino como aliados para subverter as trevas que estruturam nossa realidade. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.
Segundo o historiador francês Philippe Ariès, no livro clássico História Social da Infância e da Família, nos séculos XVI e XVII a infância era ignorada. Crianças eram tratadas com liberdades grosseiras e brincadeiras indecentes. Não havia sentimento de respeito e nem se acreditava na inocência delas. Vestiam-se como fossem pequenos adultos e eram qualificados como enfants – aqueles que não sabem falar.
Essa dura e cruel realidade em um mundo vasto e implacável dos enfants é retratada pelos contos de fadas que tinham uma função menos educativa ou moral e muito mais como um verdadeiro guia de sobrevivência: quem sou eu? Como posso resolver meus problemas? Como devo agir?
A realidade infantil não era nada inocente, como nas estórias de princesas da Disney. E muito menos educativa – a pedagogia atual vê nos contos de fadas funções educativas e cognitivas. Releituras e mais releituras são feitas dos contos de fadas, sempre procurando abstrair deles a brutalidade original de um mundo no qual a noção de “infância” não existia.
Maria e João: O Conto das Bruxas (Gretel & Hansel, 2020), do diretor Oz Perkins, é mais uma releitura do conto de fadas mais sombrio e brutal dos irmãos Grimm. Como o leitor deve perceber, a releitura já começa pelo rearranjo do título, dando destaque a Maria.
Perkins muda completamente a história e os objetivos da mensagem do conto. De forma mais sombria do que violenta, Maria e João faz uma tradução feminista do conto: não há figuras masculinas salvadoras, culpabilização das vítimas ou princesas, sejam boas ou más.
Aliás, definir Maria e João como “feminista” seria uma redução grosseira. O filme aspira a uma interpretação mais universal, cósmica e, por que não dizer, arquetípica ou gnóstica do drama de duas crianças perdidas e famintas numa floresta escura.
Principalmente, porque a trajetória de Maria não é a de salvar a si mesma e a seu irmão para depois retornarem para casa: é uma jornada de amadurecimento e autoconhecimento, na qual se descobrirá como uma mulher livre e independente. Mas não apenas para superar uma ordem patriarcal – essa ordem é apenas a superfície de uma Criação imperfeita, suja e cruel dominada pela Escuridão.
Num explícito viés gnóstico, o dom e a magia que Maria deve descobrir em si mesma é o autoconhecimento para se libertar da Criação dominada pelas trevas. Aqui, o papel desempenhado pela bruxa é matizado, bem longe do maniqueísmo das releituras Disney dos contos de fadas: o Bem e o Mal são dois lados de uma mesma moeda – a bruxa tem as suas más intenções, como um adulto cruel em um mundo onde a infância não existe. Mas também quer iniciar Maria na magia para que possa transcender as trevas. Missão que na qual a bruxa fracassou.
O Filme
Maria (Sophia Lillis) é retrata no filme alguns anos mais velha do que o irmão João (Samuel Leakey) – mais velha o suficiente para procurar trabalho para sustentar seu irmão e sua mãe e se deparar com um empregador em potencial lascivo que, na entrevista de emprego, pergunta: “você se manteve intocada?”.
Esse é um pequeno preâmbulo do mundo cruel que está à espera de Maria e do pequeno João. Recusando-se a ser empregada por um patrão abusivo, Maria volta para casa com o irmão para encontrar sua mãe enlouquecida pela privação material: sem como sustentar os filhos, os expulsa para a floresta escura: “cavem alguns pequenos túmulos bonitos para vocês e para sua mãe também!”, é tudo o que a mãe tem a dizer a seus filhos.
Nessas cenas de abertura, percebemos que o roteiro de Rob Hayes insere de forma sutil os elementos do conto original – por exemplo, logo de início as famosas migalhas de pão do conto original são aludidas quando Maria diz a João que se encontrar alguma migalha de bolo (na entrevista com o lascivo empregador) trará para ele que fica à espera do resultado da entrevista.
Na mente de Maria está a mensagem do pequeno conto que abre o filme, a estória de “chapeuzinho rosa”. Uma mensagem que podem salvar as crianças: “cuidado com os presentes! Cuidado com aqueles que os oferecem. Cuidado ao ficarem felizes por recebê-los.”
A primeira desconfiança vem com um bondoso lenhador que as acolhe por uma noite em sua casa: lhes dá comida, orientações e conselhos sábios – ele as orienta a chegarem a uma comunidade de lenhadores em algum lugar idílico onde a “bondade é a recompensa por direito”.
Um trajeto no qual terão uma experiência psicodélica após comerem cogumelos para depois chegarem ao desespero absoluto. Apenas quando tudo parece perdido na fome e cansaço, tropeçam em uma casa no meio do nada. Espiam pela janela, lá dentro, um grande banquete deixado aparentemente para ninguém.
É claro que para nós espectadores é uma vitrine exposta como isca para os irmãos. Sabemos o que os espera: uma bruxa com intenções de transforma-los em parte do banquete. Mas as coisas não serão tão simples assim.
Conhecerão a misteriosa Holda (Alice Krieg) – uma artesã idosa, de língua afiada com interesses óbvios aparentemente apenas com o pequeno João. Com Maria, há algum interesse mais além, nebuloso.
Coisas estranhas acontecem: a casa por dentro parece ser maior do que vista de fora. E a enorme quantidade de comida, pratos e quitutes parece surgir do nada: a casa não dispõe de jardins, animais para abate ou amplas instalações como cozinhas ou dispensas.
O Mal é a própria Criação
O roteiro de Rob Hayes pega a narrativa familiar e encontra uma nova abordagem, inclinando-se para uma releitura do conto a princípio feminista. Que às vezes não é exatamente sutil - sua passagem simbólica da infância para a feminilidade é figurada pelo aparecimento de uma longa vara de madeira e uma cuba de uma misteriosa gosma viscosa.
Por mais que se trate de uma história de horror, essa perspectiva permite que o filme também funcione como uma história de amadurecimento de uma jovem que gradualmente percebe que tem, afinal de contas, poder e pode usá-lo na sua trajetória.
Maria resiste ao convite de Holda de despertar nela seus poderes mágicos. O custo do presente é abandonar o seu irmão ao impulso antropófago da bruxa. A chave de compreensão da ambiguidade gnóstica entre o Bem e o Mal está no críptico diálogo de Holda com Maria:
Maria: Não farei o que você quer que eu faça... eu não sou nem um pouco parecida com você.Holda: Somos feitas da mesma matéria... da mesma sujeira... Caso contrário, como você conheceria a minha história? Sem eu ter que contá-la para você? Nos foi dado o mesmo dom, a mesma magia...
O Mal está na própria Criação, na sujeira com a qual foi feita a matéria que construiu esse cosmos. Aqui a mensagem feminista de Maria e João transcende a luta do feminismo contra a ordem do patriarcado. Vai mais além, numa batalha cósmica contra a escuridão que estrutura a própria Criação.
Holda sugere que todo conto de fadas possui um conteúdo arquetípico, pelo qual as crianças são fascinadas e repetem, apesar de toda violência e crueldade – como guias para a gnose final: encontrar a magia interior que nos faça transcender a escuridão que domina esse mundo.
A mitologia das bruxas e o sagrado feminino possuem íntimas ligações: a bruxa não só subverte a ordem patriarcal como também cósmica – desafia a própria Criação ao transmutá-la, desafiando Deus.
Não é à toa que o simbolismo do triângulo (representação do masculino, o falo e, principalmente, o fogo) é onipresente na estória. Em momentos que lembram a subversão ocultista do filme de Alejandro Jodorowsky A Montanha Sagrada (1973, clique aqui), é sob as formas triangulares que as bruxas habitam – tanto a bruxa do conto do “chapeuzinho rosa” quanto a casa de Holda.
Aliás com um primoroso trabalho de fotografia em matiz amarelo-âmbar, produzindo uma atmosfera ao mesmo tempo aconchegante e asfixiante. O amarelo-âmbar do fogo masculino, essência do triângulo, cuja magia subverte e transforma-se no autoconhecimento e redenção feminina.
Nesse plano do simbolismo, em última instância, está o desafio contra o próprio Deus transformado em Demiurgo – aquele que criou um cosmos estruturado pela escuridão.
Ficha Técnica
|
Título: Maria e João: O Conto da Bruxa
|
Diretor: Oz Perkins
|
Roteiro: Rob Hayes
|
Elenco: Siphia Lillis, Samuel Leakey, Alice Krige, Jessica De Gouw
|
Produção: Orion Pictures
|
Distribuição: Imagem Filmes
|
Ano: 2020
|
País: EUA, Canadá
|
Postagens Relacionadas |